Anteriormente publicamos aqui em nosso blog uma série de
postagens analisando os hinos da Liturgia das Horas (LH) - oração oficial da
Igreja para a santificação do dia - para as celebrações em honra de São José, o
último e maior dos patriarcas [1].
Agora gostaríamos de fazer o mesmo com o último e maior dos
profetas: São João Batista, cuja Natividade celebramos no dia 24 de junho com
grau de Solenidade.
Como vimos em nossa postagem sobre a história do seu culto,
João Batista é o único santo cuja celebração principal está fixada na data do
seu nascimento, dada a relação deste com o nascimento do Senhor.
Para a Liturgia das Horas dessa Solenidade a Igreja propõe
um único hino, dividido em três partes: trata-se do célebre Ut queant laxis (Doce, sonoro, ressoe o
canto), composição do século VIII atribuída ao beneditino Paulo, o Diácono, da
Abadia de Montecassino (Itália).
Segundo a lenda, ele deveria cantar o Exsultet na Vigília Pascal, mas foi acometido de afonia. Teria
composto então o hino esperando que, assim como o nascimento de João devolveu a
voz a Zacarias, o mesmo acontecesse com ele.
Posteriormente, os versos da primeira estrofe foram
utilizados por outro beneditino, Guido d’Arezzo (séc. XI), para nomear as
primeiras seis notas musicais:
Ut queant laxis /
Resonare fibris / Mira gestorum / Famuli tuorum / Solve
polluti / Labii reatum / Sancte
Ioannes [2].
São João Batista (Giotto) |
Na Liturgia das Horas as 12 estrofes do hino foram divididas
da seguinte forma, retomando a última estrofe como conclusão nas três partes:
I e II Vésperas: Estrofes
1-4.12 (Ut queant laxis...);
Ofício das Leituras: Estrofes 5-8.12 (Antra desérti...);
Laudes: Estrofes 9-12 (O nimis felix...).
A seguir apresentamos a primeira parte do hino, recitada nas
Vésperas (oração da tarde), em latim e na tradução oficial para o Brasil, com
alguns comentários:
I e II Vésperas: Ut
queant laxis
Ut queant laxis resonáre fibris
mira gestórum fámuli tuórum,
solve pollúti lábii reátum,
sancte Ioánnes.
Núntius caelo véniens suprémo,
te patri magnum fore nascitúrum,
nomen et vitae sériem geréndae
órdine promit.
Ille promíssi dúbius supérni
pérdidit promptae módulos loquélae;
sed reformásti génitus perémptae
órgana vocis.
Ventris obstrúso pósitus cubíli
sénseras regem thálamo manéntem;
hinc parens nati méritis utérque
ábdita pandit.
Láudibus cives célebrant supérni
te, Deus simplex paritérque trine;
súpplices ac nos véniam precámur:
parce redémptis. Amen [3].
I e II Vésperas:
Doce, sonoro, ressoe o canto
Doce, sonoro, ressoe o canto,
minha garganta faça o pregão.
Solta-me a língua, lava-me a culpa,
ó São João!
Anjo no templo, do céu descendo,
teu nascimento ao pai comunica,
de tua vida preclara fala,
teu nome explica.
Súbito mudo teu pai se torna,
pois da promessa, incréu, duvida:
apenas nasces, renascer fazes
a voz perdida.
Da mãe no seio, calado ainda,
o Rei pressentes num outro vulto.
E à mãe revelas o alto mistério
do Deus oculto.
Louvor ao Pai, ao Filho unigênito,
e a vós, Espírito, honra também:
dos dois provindes, com eles sois
um Deus. Amém [4].
Nascimento de São João Batista (Domenico Ghirlandaio - Basílica de Santa Maria Novella, Florença) |
Comentário:
Os domingos e solenidades são celebrações tão importantes
que a Igreja os faz “transbordar” o curso de um dia, iniciando com a oração das
“I Vésperas” na tarde do dia anterior.
Assim, começamos nosso percurso pelos hinos da Solenidade da
Natividade de São João Batista com a composição que abre tanto as I Vésperas,
na tarde do dia 23 de junho, quanto as II Vésperas, na tarde do dia 24.
Como vimos anteriormente, nessa hora recitam-se as primeiras
quatro estrofes do hino Ut queant laxis,
além da sua última estrofe como conclusão.
a) Primeira estrofe:
A primeira estrofe, naturalmente, serve de introdução ao
hino, convidando ao louvor.
Essa estrofe, como vimos, foi usada por Guido d’Arezzo para
nomear as notas musicais. Neste sentido, a tradução oficial para o Brasil faz um
excelente trabalho, recordando as notas musicais e preservando a mensagem:
Doce, sonoro, ressoe o canto, minha garganta faça o
pregão. Solta-me a língua, lava-me a culpa, ó São João!
O texto, dirigido diretamente a João Batista, comporta um
duplo pedido. Primeiramente uma súplica de caráter “físico”: a limpeza das
cordas vocais. Recorre-se ao verbo “laxare”,
afrouxar, no sentido de relaxar as cordas vocais (fibris), para que o hino possa ser entoado com clareza. Recordemos
a lenda de Paulo, o Diácono, que teria composto o hino esperando ser curado da
afonia, como Zacarias foi curado da mudez pelo nascimento de João.
Segue-se outro pedido de caráter mais “espiritual”: “liberta
nossos lábios da corrupção”. Neste sentido, o hino remete às “liturgias de
entrada”, que recordavam aos fiéis as condições para ingressar no templo do
Senhor: “mãos inocentes e coração puro” [cf.
Sl 14 (15) e 23 (24)].
b) Segunda estrofe:
A partir dessa estrofe entramos no corpo do hino, com os
“motivos do louvor”, isto é, os “maravilhosos feitos” (mira gestórum) da vida de João Batista, narrados nos Evangelhos. A segunda estrofe canta o anúncio do nascimento de João
feito por um anjo a seu pai, Zacarias (Lc
1,5-17).
O anjo é referido na versão atual
do hino como “Núntius caelo véniens
suprémo”, isto é, “Mensageiro vindo do mais alto céu”. Porém, em versões
mais antigas o verso era “Núntius celso
véniens Olýmpo” - “Mensageiro excelso vindo do Olimpo”, monte considerado
como a morada dos deuses na Mitologia helênica.
Em seguida o hino recorda a mensagem do anjo ao pai: o
insigne nascimento de um filho na velhice de Zacarias e Isabel, que remete à
promessa feita por Deus a Abraão e Sara; e o nome a ser dado ao menino (Yoḥanan, “Deus é misericordioso”), que
indica já sua missão: anunciar ao povo a conversão, preparando a vinda do
Senhor.
c) Terceira estrofe:
À mensagem do anjo segue-se, na terceira estrofe, a reação
de incredulidade de Zacarias, que ocasiona o sinal da sua mudez, a ser removida
apenas no nascimento do menino (Lc
1,18-22.59-64).
A temática aqui tratada, com efeito, reforça a lenda em
torno à composição do hino: de um lado, a dúvida de Zacarias diante da promessa
divina, à qual se segue a perda imediata do “ritmo” da fala (módulos loquélae); do outro, a
“intercessão” de João, que apenas nascido restitui ao seu genitor “o órgão da
voz destruído” (perémptae órgana vocis).
Cabe ressaltar, porém, que no relato evangélico a
restituição da voz a Zacarias não ocorre no momento do nascimento do menino,
mas sim oito dias depois, na sua circuncisão. Mais do que remeter à antiga
aliança, que a circuncisão representa, o episódio centra seu simbolismo no
número “oito”: o oitavo dia é aquele que inaugura uma nova criação, apontando
já para o cumprimento das profecias em Jesus.
d) Quarta estrofe:
Após a menção ao nascimento de João, o hino dá “um passo
atrás” e retorna ao episódio da Visitação de Maria a Isabel (Lc 1,39-45).
Destaca-se aqui a comparação que o texto original faz do
ventre de Maria a um tálamo, isto é, um leito nupcial (thálamo), remetendo ao v. 6 do Sl 18(19): “sponsus procedens de thalamo suo” (ele sai como esposo do seu leito
nupcial).
O versículo do Salmo faz referência ao sol, mas sempre foi
lido em chave cristológica. No Evangelho, com efeito, Jesus compara diversas
vezes a sua vinda a uma festa de casamento (cf.
Mt 22,2-14; 25,1-13).
Por fim, enquanto na tradução brasileira se indica nos
últimos dois versos da estrofe que João revela o mistério à sua mãe, o original
faz referência a ambos os pais: “Hinc
parens nati méritis utérque ábdita pandit” - “neste momento, pelos méritos
do filho, os genitores revelam o oculto”.
Isabel proclama a maternidade divina de Maria (Lc 1,42-45), enquanto Zacarias, com o
seu cântico, o Benedictus (Lc 1,67-79), celebra as maravilhas que
Deus realizou em favor de Israel e na vida do seu filho.
e) Quinta estrofe:
Como afirmamos anteriormente, nas três partes nas quais o hino está dividido na Liturgia das Horas toma-se sua 12ª e última estrofe como conclusão: Láudibus cives célebrant supérni te...
A tradução oficial para o Brasil oferece duas traduções diferentes dessa estrofe - uma no Ofício e outra nas Laudes -, como veremos nas próximas postagens. Porém, como conclusão do hino das Vésperas encontramos a tradução de outro texto:
Sit decus Patri genitáeque Proli / et tibi, compar utriúsque virtus / Spíritus semper, Deus unus, omni / témporis aevo. Amen.
Trata-se da conclusão do hino Ut queant laxis presente no antigo Rituale Romanum, indicado para a bênção da fogueira na Vigília da Solenidade da Natividade de São João Batista (Benedictio rogi in Vigilia S. Joannis Baptistae).
Essa conclusão, como de costume nos hinos da Liturgia das Horas, é uma doxologia, uma fórmula de louvor, dirigida à Trindade, que em uma tradução mais literal seria: “Seja dada glória ao Pai e ao Filho por Ele gerado, e a vós, Espírito, que dos dois procedeis, único Deus, por todos os séculos eternos. Amém”.
Para acessar a segunda parte dessa pesquisa, com o hino do Ofício das Leituras (Antra desérti), clique aqui.
Para acessar a terceira parte dessa pesquisa, com o hino das Laudes (O nimis felix), clique aqui.
Notas:
[1] Hinos da
Solenidade de São José, Esposo da Virgem Maria (19 de março):
I e II Vésperas: Te, Ioseph, célebrent (Celebre a José a corte celeste);
Ofício das Leituras: Iste, quem laeti cólimus (Hoje um grande triunfo cantamos);
Laudes: Caelitum, Ioseph, decus (São José, do céu a glória).
Hinos da Memória
facultativa de São José Operário (01 de maio):
Ofício das Leituras: Te, pater Ioseph, ópifex (Nossas vozes te celebram);
Laudes: Auróra solis núntia (Anuncia a aurora o dia);
Vésperas: Te, Ioseph,
célebrent, como no dia 19 de março.
[2] No século XVI a sétima nota foi formada com as iniciais
de Sancte Ioannes (SI) e o Ut foi
substituído por Do (inicial de Dominus,
Senhor), para que todas as notas terminassem em vogais.
[4] OFÍCIO DIVINO. Liturgia
das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição
típica. São Paulo: Paulus, 1999, v. III, p. 1369.
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