Após a Festa dos Arcanjos Miguel, Gabriel e Rafael, no dia
29 de setembro, a Igreja de Rito Romano celebra a Memória dos Santos Anjos da
Guarda, no dia 02 de outubro.
Uma vez que já apresentamos aqui em nosso blog os três hinos
da Festa dos Arcanjos para a Liturgia das Horas [1], cabe-nos agora falar dos
hinos indicados para a Memória dos Santos Anjos da Guarda, cuja história também já abordamos aqui em nosso blog.
Os três hinos dessa Memória são:
Ofício das Leituras: Aetérne
rerum cónditor (Eterno Autor do mundo);
Laudes: Orbis patrátor óptime (Ó Deus, criando o mundo);
Vésperas: Custódes hóminum psállimus (Aos anjos cantemos).
Anjo da Guarda - Catedral de Sevilha, Espanha (Bartolomé Esteban Murillo - séc. XVII) |
Começamos pelo hino do Ofício das
Leituras, Aetérne rerum cónditor (Eterno
Autor do mundo), composição anônima do século XV. Confira a seguir seu texto
original em latim e sua tradução oficial para o português do Brasil, além de
alguns comentários sobre a sua teologia.
Ofício das Leituras: Aetérne rerum cónditor
Aetérne rerum cónditor,
qui mare, solum, aethera
gubérnas, iustus rédditor
cunctis secúndum ópera,
Supérbum qui iam spíritum
eiúsque cunctos cómplices
condémnans in intéritum,
veros firmásti súpplices,
Precámur te fidéntius,
hos defensóres dírige,
nobis per quos propítius
salútis dona pórrige.
Nos consolándo vísitent,
purgent, inflámment, dóceant,
ad bona semper íncitent,
vim daemonum coérceant.
O angelórum glória,
secúro gressu pérgere
fac horum nos custódia,
ut te possímus cérnere.
Sint, angelórum Dómine,
honóris tibi cántica,
qui miro praebes órdine
illis nobísque caelica. Amen [2].
Ícone bizantino do Anjo da Guarda (séc. XIX) |
Ofício das Leituras: Eterno Autor do mundo
Eterno Autor do mundo,
que o céu e o mar guiais,
segundo as nossas obras,
Rei justo, nos pagais.
O espírito soberbo
às trevas condenastes
com muitos companheiros,
e aos anjos bons firmastes.
Tais anjos enviai-nos,
e dai-lhes por missão
guiar os nossos passos
até à salvação.
Que venham consolar-nos,
mostrar-nos vosso amor,
guiar-nos para o bem,
vencendo o tentador.
Guiai-nos pelos Anjos,
ó Deus, durante a vida.
Por sua mão nos levem
à glória prometida.
A vós, Deus Uno e Trino,
louvor e todo o bem.
Possamos, com os Anjos,
nos céus vos ver. Amém [3].
Comentário:
Iniciamos esse breve percurso pelos hinos da Memória dos
Santos Anjos da Guarda com o hino do Ofício das Leituras, composição anônima do
século XV. Como vimos em nossa postagem sobre a história do seu culto, é a
partir desse século que as celebrações em honra dos Anjos da Guarda começam a
difundir-se.
O poema é composto por seis estrofes de quatro versos, com
rimas alternadas (os versos ímpares rimam entre si (1-3), assim como os versos
pares 2-4). Na tradução oficial para o português do Brasil, porém, foram
conservadas apenas as rimas entre os versos pares (algo compreensível, uma vez
que é preciso adaptar o texto a outra língua).
a) 1ª estrofe
A 1ª estrofe do nosso hino compõe a “introdução”, na qual
fica claro que a composição é dirigida a Deus como Criador.
Esta é uma escolha bastante compreensível, que será retomada
no hino das Laudes, uma vez que a fé na existência dos anjos é uma consequência
da fé em Deus como “criador do céu e da terra, de todas as coisas visíveis e
invisíveis” (Credo Niceno-Constantinopolitano). Ver, nesse sentido, os nn.
325-336 do Catecismo da Igreja Católica.
Deus cria os anjos (Mosaico da Catedral de Monreale, Itália - séc. XII-XIII) |
Sobre o “tema” de “Deus como criador”, bastante frequente
nos hinos da Liturgia das Horas, é preciso esclarecer que a criação não é um
ato isolado do Pai, mas sim obra da Trindade (cf. nn. 290-292 do Catecismo).
Portanto, o destinatário do hino é o “Deus Uno e Trino”, como indica a última
estrofe.
O Pai e o Filho e o Espírito Santo são invocados aqui como “Aetérne rerum cónditor”, “Eterno criador
(ou autor) das coisas”, isto é, do
mundo (de tudo, segundo a tradução inglesa: “Eternal Creator of all”).
A estrofe, porém, não canta apenas o mistério de Deus como
criador, mas também como “senhor” ou “sustentador” de todo o criado: “qui mare, solum, aethera gubérnas”, “que
governas o mar, a terra e o céu”.
Por fim, a estrofe conclui com uma referência à “justiça
divina”: “iustus rédditor cunctis
secúndum ópera” - “que recompensa a cada um segundo as suas obras” (cf.,
por exemplo, Jr 17,10; Mt 16,27).
Esta afirmação não deve ser entendida segundo a lógica da
“teologia da retribuição”, condenada já no Antigo Testamento (sobretudo no Livro de Jó), mas sim como uma exortação
a refletirmos sobre as consequências das nossas ações. A reflexão se esclarece
melhor na estrofe seguinte, sobre a “queda dos anjos”.
b) 2ª estrofe
A 2ª estrofe inicia o “corpo do hino”, que se estende até a
5ª estrofe. Trata-se sobretudo de uma grande súplica para que Deus nos envie
seus anjos para guiar-nos no caminho.
Antes dessa súplica, porém, como afirmamos, o hino nos
recorda a “queda dos anjos” (cf. Catecismo,
nn. 391-395), unindo-a ao tema da “justiça divina”.
Queda dos anjos rebeldes (Mestre anônimo do séc. XIV) |
O Satanás ou Diabo é chamado aqui de “espírito soberbo” (“supérbum spíritum”) que, com todos os
seus cúmplices (“eiúsque cunctos
cómplices”), rejeitaram a Deus de maneira radical.
Deus, portanto, os condenou à destruição ou à ruína (“condémnans in intéritum”), não como deficiência da sua infinita misericórdia,
mas como consequência da rejeição eterna desses “anjos caídos” a Deus.
Ao mesmo tempo, Deus confirma ou fortalece os anjos fiéis, referidos aqui como “os suplicantes
verdadeiros”, “os que suplicam com coração sincero” (“veros firmásti súpplices”). É a sua intercessão que é invocada nas
próximas duas estrofes.
c) 3ª estrofe
“Precámur te fidéntius”
- “Te suplicamos com confiança”: assim começa a súplica da 3ª estrofe, pedindo
a Deus que “envie-nos esses defensores” ou “guardiões” (“hos defensóres dirige”), isto é, os anjos fiéis mencionados na
estrofe anterior.
Através da intercessão dos anjos, suplicamos que Deus “nos
conceda, benigno, os dons da salvação” (“nobis
per quos propítius salútis dona pórrige”). A tradução brasileira expressa
essa mesma súplica de uma maneira ligeiramente distinta: pede-se a Deus que dê
aos anjos como missão “guiar os nossos passos até à salvação”.
Recordemos a célebre frase de São Basílio Magno, citada no Catecismo (n. 336): “Cada fiel tem ao
seu lado um anjo como protetor e pastor, para conduzi-lo à vida” (cf. Ex 23,20).
d) 4ª estrofe
Prosseguindo com as súplicas, a 4ª estrofe é quase uma
“ladainha” de verbos: que os anjos “visitem-nos consolando, purificando,
inflamando (na caridade), ensinando...” (“Nos
consolándo vísitent, purgent, inflámment, dóceant”). A tradução oficial
para o Brasil, porém, conserva apenas três verbos: “que venham consolar-nos,
mostrar-nos vosso amor”.
Vale recordar aqui a célebre oração “Santo Anjo do Senhor” (Angele Dei), que também comporta uma
série de verbos: “rege, guarda, governa, ilumina”.
O Anjo da Guarda aponta o caminho à alma (representada como uma criança) (Karlovice, República Tcheca) |
Os últimos dois versos dessa estrofe pedem ainda que os
anjos “incitem-nos sempre ao bem” e “reprimam a coerção dos demônios” (“ad bona semper íncitent, vim daemonum
coérceant”). A “força” ou “poder” dos demônios, com efeito, é expressa
através da “coerção”, isto é, da tentação.
e) 5ª estrofe
Concluindo a série de súplicas que constitui o “corpo do
hino”, a 5ª estrofe começa dirigindo-se a Deus como “glória dos anjos” (angelórum glória). Recordemos que no
hino das Vésperas da Festa dos Arcanjos, Angelum
pacis Míchael, Jesus é referido como “decus
angelórum”, isto é, “glória” ou “honra” dos anjos.
A súplica dessa estrofe remete aos dados bíblicos sobre os
anjos da guarda (cf. Ex 23,20; Sl 90,11): “secúro gressu pérgere fac horum nos custódia, ut te possímus cérnere” -
“faz com que, sob a sua proteção (dos anjos), perseveremos no caminho seguro,
para que possamos contemplar-te (a Deus)”.
f) 6ª estrofe
Por fim, como de costume nos hinos da Liturgia das Horas, a
última estrofe compõe a conclusão do poema na forma de uma doxologia, isto é,
uma breve fórmula de louvor.
Como todo o nosso hino, a conclusão é dirigida à Trindade, como
especifica a tradução brasileira: “A vós, Deus Uno e Trino”. No original, por
sua vez, Deus é referido aqui como “Senhor dos anjos”: “Sint, angelórum Dómine, honóris tibi cántica” - “A ti, Senhor dos
anjos, seja dada a honra deste cântico”.
Os dois últimos versos concluem a composição com um alcance
escatológico: “qui miro praebes órdine
illis nobísque caelica” - “que maravilhosamente concedes a eles (aos anjos)
e a nós as moradas celestes”.
A tradução brasileira, por sua vez, exprime essa verdade de
fé como uma súplica: “A vós, Deus Uno e Trino, louvor e todo o bem. Possamos,
com os Anjos, nos céus vos ver. Amém”.
Notas:
[1] Hinos da Festa dos Arcanjos Miguel, Gabriel e Rafael:
Ofício das Leituras: Festíva vos, archángeli (Arcanjos, para vós);
Laudes: Tibi, Christe, splendor Patris (Ó Cristo, Luz de Deus Pai);
Vésperas: Angelum pacis Míchael (Lá do alto enviai-nos, ó Cristo).
[2] CATTOLICI ROMANI: Thesaurus Liturgiae: Inni della
«Liturgia Horarum» - 2. Proprium de Sanctis & Communia.
[3] OFÍCIO DIVINO. Liturgia
das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição
típica. São Paulo: Paulus, 1999, v. IV, pp. 1334-1335.
Obrigada
ResponderExcluir