Nesta
postagem trazemos as Catequeses do Papa João Paulo II sobre os salmos e o cântico das Vésperas da segunda-feira da I semana do Saltério, proferidas nos
dias 28 de janeiro (Sl 10), 04 de fevereiro (Sl 14) e 18 de fevereiro de 2004
(Ef 1,3-10).
97. Confiança inabalável em Deus: Sl 10(11),1-7
28 de janeiro de 2004
1. Continua a nossa reflexão sobre os textos dos Salmos, que constituem o elemento substancial da Liturgia das Vésperas. O que agora fizemos ressoar em nossos corações foi o Salmo 10, uma breve oração de confiança que, no original hebraico, está marcada pelo sagrado nome divino, Adonai, o Senhor. Este nome ressoa na abertura (v. 1), encontra-se três vezes no centro do Salmo (vv. 4-5) e volta no fim (v. 7).
A tonalidade espiritual de
todo o cântico é muito bem expressa pelo versículo conclusivo: “Justo é
nosso Deus, o Senhor ama a justiça” (ibid.).
É esta a raiz de qualquer confiança e a fonte de toda a esperança no dia da obscuridade
e da prova. Deus não permanece indiferente em relação ao bem e ao mal, é um
Deus bom e não um fato obscuro, indecifrável e misterioso.
"O Senhor ama a justiça. Quem tem reto coração há de ver a sua face" (Sl 10,7) (Moisés diante da manifestação de Deus na sarça ardente - Rafael Sanzio) |
2. O Salmo desenvolve-se
substancialmente em dois cenários. No primeiro (vv. 1-3) está descrito o ímpio
no seu triunfo aparente. Ele é caracterizado por imagens de tipos bélico e
venatório: é o perverso que retesa o arco da guerra ou da caça para disparar
com violência contra a sua vítima, isto é, o de coração reto (v. 2). Por isso,
este é tentado pela ideia de fugir e se libertar de uma ameaça tão implacável.
Gostaria de fugir “para os montes”, como as aves (v. 1), longe do vórtice do
mal, do assédio dos malvados, das setas das calúnias lançadas à traição pelos
pecadores.
Há uma espécie de
desconforto no fiel que se sente só e impossibilitado face à irrupção do mal. Parece
que os fundamentos da justa ordem social são abalados e as próprias bases da
convivência humana estão ameaçadas (v. 3).
3. Eis então a mudança,
traçada no segundo cenário (vv. 4-7). O Senhor, sentado no seu trono celeste,
abrange com o seu olhar penetrante todo o horizonte humano. Daquele lugar
transcendente, sinal da onisciência e da onipotência divina, Deus pode
perscrutar e examinar cada pessoa, distinguindo o bem do mal e condenando com
vigor a injustiça (vv. 4-5).
É muito sugestiva e
confortadora a imagem dos olhos divinos, cujas pupilas contemplam e observam as
nossas ações. O Senhor não é um soberano distante, fechado no seu mundo
dourado, mas uma Presença vigilante que se declara da parte do bem e da
justiça. Ele vê e providencia, intervindo com a sua palavra e com a sua ação.
O justo prevê que, como acontecera em Sodoma (cf. Gn 19,24), o Senhor “sobre os maus fará chover fogo, enxofre e vento ardente” (v. 6), símbolos do juízo de Deus que purifica a história, condenando o mal. O ímpio, atingido por esta chuva ardente que prefigura o seu destino último, experimenta fielmente que “há um Deus que faz justiça sobre a terra” (Sl 57,12).
4. Contudo, o Salmo não se conclui com este quadro trágico de punição e de condenação. O último versículo abre o horizonte para a luz e para a paz que se destinam ao justo que contemplará o seu Senhor, juiz justo, mas sobretudo libertador misericordioso: “Quem tem reto coração há de ver a sua face” (v. 7). Trata-se de uma experiência alegre de comunhão e de confiança serena no Deus que liberta do mal.
Fizeram uma experiência como
esta os numerosos justos ao longo da história. Muitas narrações descrevem a
confiança dos mártires cristãos face aos tormentos e a sua determinação que não
evitava a prova.
Nos Atos de Euplo, diácono de Catânia, falecido por volta de 304 sob Diocleciano, o mártir exclama espontaneamente esta sequência de orações: “Obrigado, ó Cristo: protege-me porque sofro por ti... Adoro o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Adoro a Santíssima Trindade... Obrigado, ó Cristo. Vem em meu auxílio, ó Cristo! Sofro por ti, ó Cristo... É grande a tua glória, ó Senhor, nos servos que dignaste chamar a ti!... A ti dou graças, Senhor Jesus Cristo, porque a tua força me confortou; não consentiste que a minha alma perecesse com os ímpios e concedeste-me a graça do teu nome. Agora confirma o que fizeste em mim, para que seja confundida a insolência do Adversário” (A. Hamman, Orações dos primeiros cristãos, Milão, 1995, pp. 72-73).
98. Quem é digno aos olhos
de Deus?: Sl 14(15),1-5
04 de fevereiro de 2004
1. O Salmo 14, que é
oferecido à nossa reflexão, muitas vezes é classificado pelos estudiosos da
Bíblia como parte de uma “Liturgia de entrada”. Como acontece com algumas
composições do Saltério (cf., por
exemplo, os Salmos 23; 25; 94), pode-se pensar numa espécie de procissão de
fiéis que se agrupa às portas do templo de Sião para aceder ao culto. Num
diálogo ideal entre fiéis e levitas, delineiam-se as condições indispensáveis
para ser admitido à celebração litúrgica e, por conseguinte, à intimidade
divina.
De fato, por um lado, surge a pergunta: “Senhor, quem morará em vossa casa e em vosso Monte santo habitará?” (v. 1). Por outro, eis o elenco das qualidades exigidas para cruzar o limiar que leva ao “santuário”, ou seja, ao templo na “montanha santa” de Sião. As qualidades enumeradas são onze e constituem uma síntese ideal dos compromissos morais de base, presentes na lei bíblica (vv. 2-5).
2. Nas fachadas dos templos
egípcios e babilônicos por vezes eram gravadas as condições exigidas para poder
entrar no ambiente sagrado. Devemos notar uma diferença significativa com as
que são sugeridas pelo nosso Salmo. Em muitas culturas religiosas é requerida,
para ser admitido à presença da Divindade, sobretudo a pureza ritual exterior
que comporta purificações, gestos e vestes particulares.
Ao contrário, o Salmo 14 exige a purificação da consciência, para que as suas opções sejam inspiradas no amor pela justiça e pelo próximo. Portanto, sente-se nestes versículos o espírito dos profetas, que convidam repetidamente a conjugar a fé e a vida, a oração e o compromisso existencial, a adoração e a justiça social (cf. Is 1,10-20; 33,14-16; Os 6,6; Mq 6,6-8; Jr 6,20).
Ouçamos, por exemplo, a
veemente repreensão do profeta Amós, que denuncia em nome de Deus um culto separado
da história quotidiana: “Eu detesto e rejeito as vossas festas, e não sinto
nenhum gosto nas vossas assembleias. Se me ofereceis holocaustos e oblações,
não as aceito, nem ponho os meus olhos no sacrifício das vossas vítimas
gordas... Antes, jorre a equidade como uma fonte, e a justiça como torrente que
não seca” (Am 5,21-22.24).
3. Tratemos agora os onze
compromissos enumerados pelo salmista, que poderão constituir a base de um
exame de consciência pessoal todas as vezes que nos prepararmos para confessar
as nossas culpas a fim de sermos admitidos à comunhão com o Senhor na
celebração litúrgica.
Os três primeiros compromissos são genéricos e exprimem uma opção ética: seguir o caminho da integridade moral, da prática da justiça e, por fim, da sinceridade perfeita ao falar (v. 2).
Seguem-se três deveres que
poderíamos definir de relação com o próximo: eliminar a calúnia da linguagem,
evitar qualquer ação que possa prejudicar o irmão, impedir os insultos contra
quem vive ao nosso lado todos os dias (v. 3). Vem depois o pedido de uma opção
clara no âmbito social: desprezar o malvado, honrar quem teme a Deus. Por fim,
enumeram-se os três últimos preceitos sobre o modo como examinar a consciência:
ser fiéis à palavra dada, ao juramento, mesmo que isso nos cause consequências
danosas; não praticar a usura, chaga que ainda nos nossos dias é uma realidade
vil, capaz de aniquilar a vida de muitas pessoas; e, por fim, evitar qualquer
forma de corrupção na vida pública, outro compromisso que se deve saber
praticar com rigor também no nosso tempo (v. 5).
4. Seguir este caminho de decisões morais autênticas significa estar preparado para o encontro com o Senhor. Também Jesus, no Sermão da Montanha, proporá uma “Liturgia de entrada” essencial: “Se fores, portanto, apresentar uma oferta sobre o altar e ali te recordares de que o teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa lá a tua oferta diante do altar, e vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão” (Mt 5,23-24).
Quem age da maneira indicada pelo salmista, conclui-se na nossa oração, “jamais vacilará!” (v. 5). Santo Hilário de Poitiers, Padre e Doutor da Igreja do século IV, no seu Tractatus super Psalmos, comenta assim este final do Salmo, relacionando-o à imagem inicial do templo de Sião: “Agindo de acordo com estes preceitos, mora-se no santuário, repousa-se no monte. Por conseguinte, permanecem salvaguardadas a observação dos preceitos e a obra dos mandamentos. Este Salmo deve estar fundado no íntimo, escrito no coração, anotado na memória; o tesouro da sua rica brevidade deve ser confrontado conosco em todos os momentos. E assim, adquire esta riqueza no caminho rumo à eternidade e habitando na Igreja, poderemos finalmente repousar na glória do corpo de Cristo” (PL 9, 308).
99. O plano divino da salvação: Ef 1,3-10
18 de fevereiro de 2004
1. O maravilhoso hino de “bênção”, que abre a Carta aos Efésios e que é proclamado todas as segundas-feiras na Liturgia das Vésperas, será objeto de uma série de meditações ao longo do nosso itinerário. Por agora contentamo-nos com dar uma visão de conjunto a este texto solene e bem estruturado, quase como uma majestosa construção, destinada a exaltar a maravilhosa obra de Deus, realizada para nós em Cristo.
Parte-se de um “antes” que antecede
o tempo e a criação: é a eternidade divina na qual um projeto que nos supera já
tem vida, uma “pré-destinação”, ou seja, o desígnio amoroso e gratuito de um
destino de salvação e de glória.
2. Neste projeto transcendente,
que inclui a criação e a redenção, o cosmos
e a história humana, Deus tinha pré-estabelecido, “em seu querer benevolente”,
de “recapitular em Cristo”, isto é, de reconduzir a uma ordem e a um sentido
profundo todas as realidades, as celestes e as terrenas (v. 10). Sem dúvida,
Ele é “cabeça da Igreja, que é o seu Corpo” (Ef 1,22-23), mas é também o princípio vital de referência do
universo.
Por isso, o senhorio de
Cristo expande-se quer à criação quer àquele horizonte mais específico que é a
Igreja. Cristo desempenha uma função de “plenitude”, de tal forma que nele se
revele o “mistério” escondido nos séculos (v. 9) e toda a realidade cumpra na
sua ordem e grau específicos o desígnio concebido pelo Pai desde a eternidade.
3. Como teremos ocasião de
ver a seguir, esta espécie de salmo neotestamentário fixa a atenção sobretudo
na história da salvação, que é expressão e sinal vivo do “querer benevolente” (v.
9), da “graça” (v. 9) e do amor divino. Eis, então, a exaltação da “redenção”
mediante o sangue da cruz, a “remissão dos pecados”, a abundante efusão “da
riqueza da graça” (v. 7). Eis a filiação divina do cristão (v. 5) e o conhecimento
do “mistério de sua vontade” (v. 9), mediante a qual se entra no íntimo da
própria vida trinitária.
4. Depois desta visão de conjunto ao hino que abre a Carta aos Efésios, escutemos agora São João Crisóstomo, extraordinário mestre e orador, intérprete agudo da Sagrada Escritura, que viveu no século IV e foi Bispo de Constantinopla entre dificuldades de todos os tipos, submetido até à experiência do dúplice exílio.
Na sua Primeira Homilia sobre a Carta aos Efésios, ao comentar este cântico, ele reflete com reconhecimento sobre a “bênção” com a qual fomos abençoados “em Cristo”: “De fato, que te falta? Tornaste-te imortal, livre, filho, justo, irmão, co-herdeiro, com Ele reinas, com Ele és glorificado. Tudo nos foi dado e como está escrito “como não nos havia de oferecer tudo juntamente com Ele” (Rm 8,32). A tua primícia (cf. 1Cor 15,20.23) é adorada pelos anjos, pelos querubins, pelos serafins: que mais te falta?” (PG 62, 11).
Deus fez tudo isto por nós, continua o Crisóstomo, “segundo a benevolência da sua vontade”. Que significa isto? Significa que Deus apaixonadamente deseja e ardentemente anseia pela nossa salvação. “E por que nos ama desta forma? Por que motivo nos quer tanto bem? Só por bondade: com efeito, a ‘graça’ é própria da bondade” (ibid., 13).
Precisamente por isto, conclui o antigo Padre da Igreja, São Paulo afirma que tudo foi cumprido “para louvor e glória da sua graça que nos concedeu em seu Filho bem-amado”. De fato, Deus “não só nos libertou dos pecados, mas tornou-nos também amáveis... ornamentou a nossa alma e tornou-a bela, desejável e amável”. E quando Paulo declara que Deus fez isto mediante o sangue do seu Filho, São João Crisóstomo exclama: “Nada é maior do que tudo isto: que o sangue de Deus tenha sido derramado por nós. Maior do que a adoção de filhos e de outros dons, é o fato de nem sequer o Filho ter sido poupado (cf. Rm 8,32); com efeito, é grandioso que os pecados tenham sido perdoados, mas ainda mais grandioso é que isto se verificou mediante o sangue do Senhor” (ibid., 14).
"Senhor, quem morará em vossa casa e em vosso Monte santo habitará? É aquele que caminha sem pecado e pratica a justiça fielmente" (Sl 14,1-2) (Ícone da amizade com Cristo) |
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