As três últimas Catequeses do Papa João Paulo II sobre os salmos e cânticos da Liturgia das Horas em 2003 e a primeira de 2004 foram dedicadas aos textos das II Vésperas do domingo
da I semana do Saltério: 26 de novembro (Sl 109), 03 de dezembro (Sl 113A) e 10
de dezembro de 2003 (Ap 19,1-2.5-7) e 14 de janeiro de 2004 (1Pd 2,21-24).
Vale recordar que o cântico da 1ª Carta de Pedro é entoado apenas na Quaresma, uma vez que neste tempo se o omite o Aleluia, central no cântico de Ap 19.
93. O Messias, Rei e Sacerdote:
Sl 109(110),1-5.7
26 de novembro de 2003
1. Escutamos um dos Salmos
mais célebres da história da cristandade. O Salmo 109, que a Liturgia das Vésperas nos
propõe todos os domingos, é citado, de fato, várias vezes pelo Novo Testamento.
Sobretudo os versículos 1 e 4 são aplicados a Cristo, no seguimento da antiga
tradição judaica, que tinha transformado este hino de cântico real davídico em
salmo messiânico.
Deve-se a popularidade desta
oração também ao uso constante que dela fazem as Vésperas do domingo. Por este
motivo o Salmo 109, na versão latina da Vulgata, foi objeto de numerosas e maravilhosas
composições musicais que assinalaram a história da cultura ocidental. A
Liturgia, segundo a praxe escolhida pelo Concílio Vaticano II, retirou do texto
original hebraico do Salmo, que entre outras coisas é formado apenas por 63
palavras, o violento versículo 6. Ele evoca a tonalidade dos chamados “salmos
imprecatórios” e descreve o rei hebraico no momento em que avança para uma
espécie de campanha militar, esmagando os seus adversários e julgando as
nações.
2. Visto que teremos ocasião
de voltar a falar acerca deste Salmo, considerando o uso que dele faz a
Liturgia, limitemo-nos agora a oferecer apenas uma visão de conjunto do mesmo.
Nele podemos distinguir
claramente duas partes. A primeira (vv. 1-3) contém um oráculo dirigido por
Deus àquele que o salmista chama “meu senhor”, ou seja, ao soberano de
Jerusalém. O oráculo proclama a entronização do descendente de Davi “à direita”
de Deus. Com efeito, o Senhor dirige-se a ele dizendo: “Assenta-te ao lado meu
direito” (v. 1). Provavelmente, temos aqui a menção de um ritual, segundo o
qual o eleito se sentava à direita da arca da aliança, de modo que pudesse
receber o poder de governo do rei supremo de Israel, isto é, do Senhor.
"Palavra do Senhor ao meu Senhor: Assenta-te ao lado meu direito" (Sl 109,1) (O Pai convida Cristo a sentar-se à sua direita - Pieter de Grebber) |
3. No fundo intuem-se forças
hostis, que contudo são neutralizadas por uma conquista vitoriosa: os inimigos
são representados aos pés do soberano, que avança solene no meio deles
segurando o cetro da sua autoridade (vv. 1-2). É sem dúvida o reflexo de uma
situação política concreta, que se verificava nos momentos de passagem do poder
de um rei para outro, com a rebelião de alguns subalternos ou com tentativas de
conquista. Mas agora o texto remete para um contraste de índole geral entre o
projeto de Deus, que age através do seu eleito, e os desígnios daqueles que
gostariam de afirmar o seu poder hostil e prevaricador. Tem-se, por
conseguinte, o eterno confronto entre o bem e o mal, que se verifica no âmbito
de vicissitudes históricas, mediante as quais Deus se manifesta e nos fala.
4. A segunda parte do salmo
contém, ao contrário, um oráculo sacerdotal, que tem ainda como protagonista o
rei davídico (vv. 4-7). Garantida por um solene juramento divino, a dignidade
real une em si também a sacerdotal. A referência a Melquisedec, rei-sacerdote
de Salém, ou seja, da antiga Jerusalém (cf. Gn 14), talvez seja o meio para
justificar o sacerdócio particular do rei ao lado do sacerdócio oficial
levítico do templo de Sião. Sabemos também que a Carta aos Hebreus partirá precisamente deste
oráculo: “Tu és sacerdote eternamente segundo a ordem do rei Melquisedec” (v.
4), para ilustrar o sacerdócio único e perfeito de Jesus Cristo. Examinaremos
sucessivamente de maneira mais profunda o Salmo 109, fazendo uma análise atenta
de cada um dos versículos.
5. Mas, para concluir,
gostaríamos de ler o versículo inicial do Salmo com o oráculo divino: “Assenta-te
ao lado meu direito até que eu ponha os inimigos teus como escabelo por debaixo
de teus pés”. E o faremos com São Máximo de Turim (séculos IV-V), que, no seu Sermão sobre o Pentecostes, o
comenta do seguinte modo: “Segundo os nossos costumes, a partilha do trono é
oferecida àquele que, tendo realizado qualquer empreendimento, ao chegar
vencedor merece sentar-se em sinal de honra. Por conseguinte, também o homem
Jesus Cristo, ao vencer com a sua Paixão o diabo, abrindo com a sua Ressurreição
os reinos do abismo e chegando vitorioso ao céu, como que depois de ter
cumprido uma tarefa, ouve de Deus Pai este convite: ‘Senta-te à minha
direita’. Não nos devemos admirar se o Pai oferece ao Filho, que é consubstancial
ao Pai, a partilha do trono... O Filho senta à direita porque, segundo o
Evangelho, à direita estarão as ovelhas e à esquerda os cordeiros. Por
conseguinte, é necessário que o primeiro Cordeiro ocupe a parte das ovelhas e o
Chefe imaculado ocupe antecipadamente o lugar destinado ao rebanho imaculado
que o seguirá” (40,2: Scriptores
circa Ambrosium, IV,
Milão-Roma, 1991, p. 195).
94. Israel liberta-se do
Egito: Sl 113A(114),1-8
03 de dezembro de 2003
1. O jubiloso e triunfal cântico
que acabamos de proclamar recorda o êxodo de Israel da opressão dos egípcios. O
Salmo 113A faz parte daquela coletânea que a tradição judaica chamou “Hallel
egípcio”. São os Salmos 112-117, uma espécie de fascículo de
cânticos, usados sobretudo na Liturgia judaica da Páscoa.
O Cristianismo adotou o
Salmo 113 com a mesma conotação pascal, mas abriu-o à nova leitura derivada da Ressurreição
de Cristo. Por isso o êxodo celebrado pelo Salmo torna-se figura de outra
libertação mais radical e universal. Dante, na Divina Comédia, coloca
este hino, segundo a versão latina da Vulgata, nos lábios das almas do Purgatório: “In
exitu Israël de Aegypto /
cantavam todos juntos em uníssono...” (Purgatório II, 46-47). O que significa que
ele vê no Salmo o cântico da expectativa e da esperança de quantos estão
orientados, depois da purificação de todos os pecados, para a meta derradeira
da comunhão com Deus no Paraíso.
2. Sigamos agora o enredo
temático e espiritual desta breve composição orante. Na abertura (vv. 1-2)
evoca-se o êxodo de Israel da opressão egípcia até a entrada naquela terra
prometida que é o “santuário” de Deus, ou seja, o lugar da sua presença entre o
povo. Aliás, terra e povo são unidos: Judá e Israel, palavras com as quais se
designava quer a terra santa quer o povo eleito, são considerados como sede da
presença do Senhor, sua propriedade e herança especiais (cf. Ex 19,5-6).
Depois desta descrição
teológica de um dos elementos de fé fundamentais do Antigo Testamento, ou seja,
a proclamação das obras maravilhosas de Deus para o seu povo, o salmista
aprofunda espiritual e simbolicamente os seus acontecimentos constitutivos.
3. O Mar Vermelho do êxodo
do Egito e o Jordão da entrada na Terra Santa são personificados e
transformados em testemunhas e instrumentos participantes da libertação
realizada pelo Senhor (vv. 3.5).
No início, no êxodo, eis que
o mar se retira para deixar passar Israel e, no final da marcha no deserto, eis
que as águas do Jordão ficaram completamente separadas, deixando o seu leito
seco para que a procissão dos filhos de Israel o pudesse atravessar (cf. Js 3–4). No centro, recorda-se a
experiência do Sinai: agora são os montes que participam da grande revelação
divina, que se realiza sobre as suas colinas. Semelhantes a criaturas vivas,
como os carneiros e os cordeiros, eles estremecem e saltam. Com uma
personificação muito vivaz, o salmista interroga então os montes e as colinas
acerca do motivo da sua perturbação: “Por que dais pulos como ovelhas, ó
montanhas? E vós, colinas, parecendo cordeirinhos?” (v.
6). Não é referida a sua resposta: é dada diretamente por meio de uma ordem,
dirigida depois à terra, para que trema com a chegada do Senhor, Deus de
Israel, um ato de exaltação gloriosa do Deus transcendente e salvador.
4. É este o tema da parte
final do Salmo 113A (v. 7-8), que introduz outro acontecimento significativo da
marcha de Israel no deserto, o da água que saía da rocha de Meriba (cf. Ex 17,1-7; Nm 20,1-13). Deus transforma a rocha em uma
nascente de água que se torna um lago: na base deste prodígio está a sua
solicitude paterna em relação ao povo.
O gesto adquire, então, um
significado simbólico: é o sinal do amor salvífico do Senhor que ampara e
regenera a humanidade enquanto progride no deserto da história.
Como se sabe, São Paulo
retomará esta imagem e, com base numa tradição judaica segundo a qual a rocha
acompanhava Israel no seu percurso no deserto, lê de novo o acontecimento em
chave cristológica: “Todos beberam da mesma bebida espiritual; pois bebiam de
um rochedo espiritual que os seguia, e esse rochedo era Cristo” (1Cor 10,4).
5. Neste contexto, um grande
mestre cristão como Orígenes, ao comentar a saída do povo de Israel do Egito,
pensa no novo êxodo realizado pelos cristãos. De fato, ele exprime-se do
seguinte modo: “Não penses que só então Moisés tenha guiado o povo para
fora do Egito: também agora o Moisés que temos conosco, isto é, a lei de Deus
quer guiar-te fora do Egito; se a ouvires, quer afastar-te do Faraó... Não quer
que tu permaneças nas ações tenebrosas da carne, mas que vás ao deserto, que
alcances o lugar privado das perturbações e das flutuações do século, que
chegues à tranquilidade e ao silêncio... Por conseguinte, quando chegares a
este lugar, lá poderás imolar ao Senhor, reconhecer a lei de Deus e o poder da
voz divina” (Homilias sobre o Êxodo, Roma, 1981, pp. 71-72).
Retomando a imagem paulina
que recorda a travessia do mar, Orígenes continua: “O Apóstolo chama a isto um
batismo, realizado em Moisés na nuvem e no mar, para que tu, que foste batizado
em Cristo, na água e no Espírito Santo, saibas que os egípcios estão no teu
seguimento e querem chamar-te ao seu serviço, ou seja, aos regentes deste mundo
e aos espíritos malvados dos quais antes foste escravo. Sem dúvida, eles
procurarão seguir-te, mas tu desces à água e salvas-te incólume e, tendo lavado
as manchas dos pecados, sobes como um homem novo preparado para cantar o
cântico novo” (ibid., p.
107).
95. As núpcias do Cordeiro:
Ap 19,1-2.5-7
10 de dezembro de 2003
1. Segundo a série dos salmos
e dos cânticos que constituem a oração eclesial das Vésperas, encontramo-nos diante de um trecho de
hino, tirado do capítulo 19 do Apocalipse
e composto por uma sequência de “aleluias” e de aclamações.
Por detrás destas aclamações
jubilosas está a lamentação dramática entoada no capítulo precedente pelos
reis, mercadores e navegadores face à queda da Babilônia imperial, a cidade da
maldade e da opressão, símbolo da perseguição que se desencadeou em relação à
Igreja.
2. Em antítese a este grito
que se eleva da terra, ressoa nos céus um coro jubiloso de tipo litúrgico que,
além do “aleluia”, repete
também o “amém”. As
várias aclamações semelhantes a antífonas, que agora a Liturgia
das Vésperas une em um
único cântico, na realidade, no texto do Apocalipse,
são colocadas nos lábios de vários personagens. Encontramos antes de tudo uma
“multidão imensa”, constituída pela assembleia dos anjos e dos santos (vv.
1-3). Distingue-se depois a voz dos “vinte e quatro anciãos” e dos “quatro
seres vivos”, figuras simbólicas que se parecem com os sacerdotes desta Liturgia
celeste de louvor e de agradecimento (v. 4). Por fim, eleva-se uma voz solista
(v. 5) que, por sua vez, envolve no cântico a “grande multidão” com a qual se
tinha começado (vv. 6-7).
3. Teremos a ocasião, nas
etapas futuras deste nosso itinerário orante, de ilustrar cada uma das
antífonas deste grandioso e alegre hino de louvor a várias vozes.
Contentamo-nos agora com duas anotações. A primeira refere-se à aclamação de
abertura que diz assim: “Ao nosso Deus a salvação, honra, glória e poder!
Pois são verdade e justiça os juízos do Senhor” (vv. 1-2).
No centro desta invocação
jubilosa encontra-se a representação da intervenção decisiva de Deus na
história: o Senhor não é indiferente, como um imperador impassível e isolado,
em relação às vicissitudes humanas. Como diz o salmista, “o Senhor do Seu trono
celestial, observa com os seus olhos, e com a sua vista examina os filhos dos
homens” (Sl 10,4).
4. Aliás, o seu olhar é
fonte de ação, porque Ele intervém e destrói os impérios prepotentes e opressores,
derrota os orgulhosos que o desafiam, julga todos os que perpetram o mal. É
ainda o salmista quem descreve com imagens pictóricas esta irrupção de Deus na
história (cf. Sl 10,7), assim como o autor do Apocalipse tinha evocado no capítulo
anterior a terrível intervenção divina em relação à Babilônia, desenraizada da
sua sede e lançada ao mar (cf. Ap 18,1-24). O nosso hino menciona esta
intervenção com um trecho que não é retomado na celebração das Vésperas
(cf. Ap 19,2-3).
A nossa oração deve
sobretudo invocar e louvar a ação divina, a justiça eficaz do Senhor, a sua
glória obtida com a vitória sobre o mal. Deus faz-se presente na história,
pondo-se do lado dos justos e das vítimas, precisamente como declara a
aclamação do Apocalipse, breve mas
essencial, e como se repete com frequência no cântico dos Salmos (cf. Sl 145,6-9).
5. Desejamos realçar outro tema do nosso cântico. É desenvolvido na aclamação final e é um dos motivos dominantes do próprio Apocalipse: “Eis que as núpcias do Cordeiro redivivo se aproximam! Sua Esposa se enfeitou, se vestiu de linho puro” (v. 7). Cristo e a Igreja, o Cordeiro e a Esposa, estão em profunda comunhão de amor.
Procuraremos fazer brilhar
este caráter esponsal místico através do testemunho poético de um grande Padre
da Igreja síria, Santo Efrém, que viveu no século IV. Usando simbolicamente o
sinal das Bodas de Caná (cf. Jo 2,1-11), ele introduz a própria
cidade personificada, que louva Cristo pelo grande dom recebido:
“Darei graças juntamente com
os meus hóspedes, porque Ele me considerou digna de convidá-lo: / Ele, que é o
Esposo celeste, que desceu e a todos convidou; / e também eu fui convidada para
participar na sua festa pura de núpcias. / O reconhecerei diante dos povos como
o Esposo, como Ele não há outro. / O seu quarto nupcial está preparado desde há
séculos, / está adornado com riquezas e nada lhe falta. / Não como as Bodas de
Caná, cujas faltas Ele satisfez” (Inni sulla verginità, 33, 3: L'arpa dello Spirito, Roma, 1999, pp. 73-74).
6. Em outro hino, que também
canta as Bodas de Caná, Santo Efrém realça como Cristo, convidado para as
núpcias de outrem (precisamente os esposos de Caná), tenha desejado celebrar a
festa das suas núpcias: as núpcias com a sua esposa, que é qualquer alma fiel.
“Jesus, tu foste enviado a uma festa de núpcias de outrem, dos esposos de Caná,
/ aqui, ao contrário, é a tua festa, pura e bela: alegra os nossos dias, /
porque também os teus hóspedes, Senhor, precisam / dos teus cânticos: deixa que
a tua harpa preencha tudo! / A alma é a tua esposa, o corpo é o teu quarto
nupcial, / os teus convidados são os sentidos e os pensamentos. / E se um só
corpo é para ti uma festa de núpcias / toda a Igreja constitui o teu banquete
nupcial!” (Inni sulla fede, 14,
4-5: op. cit., p. 27).
96. A Paixão voluntária de
Cristo, Servo de Deus: 1Pd 2,21-24
14 de janeiro de 2004
1. Depois da pausa para as
festas de Natal, recomeçamos hoje o nosso itinerário de meditação sobre a
Liturgia das Vésperas. O cântico agora proclamado, tirado da Primeira Carta de Pedro, detém-se
sobre a Paixão redentora de Cristo, já preanunciada no momento do Batismo no
Jordão.
Como ouvimos no domingo
passado, Festa do Batismo do Senhor, Jesus revela-se desde o início da
atividade pública como “Filho predileto”, no qual o Pai pôs todo o seu agrado (cf. Lc 3,22), e o verdadeiro “Servo do Senhor”
(cf. Is 42,1), que liberta o homem do
pecado através da sua Paixão e Morte na Cruz.
Na citada Carta de Pedro, na qual o
pescador da Galileia se define “testemunha dos sofrimentos de Cristo” (1Pd 5,1), a recordação da Paixão é muito
frequente. Jesus é o cordeiro sacrifical sem mancha, cujo sangue precioso foi
derramado para o nosso resgate (cf. 1Pd 1,18-19). Ele é a pedra viva
rejeitada pelos homens, mas escolhida por Deus como “pedra angular” que dá a
sua unidade à “casa espiritual”, isto é, à Igreja (cf. 1Pd 2,6-8). Ele é o
justo que se sacrifica pelos injustos para reconduzi-los a Deus (cf. 1Pd
3,18-22).
2. A nossa atenção fixa-se
agora no perfil de Cristo designado no trecho que acabamos de escutar (1Pd 2,21-24). Ele apresenta-se como o
modelo para ser contemplado e imitado, o “programa”, como se diz no original
grego (v. 21), a ser realizado, o exemplo a ser seguido sem hesitação,
conformando-nos com as suas opções.
Com efeito, usa-se o verbo
grego do seguimento, do discipulado, do encaminhar-se seguindo os próprios
passos de Jesus. E os passos do Mestre divino encaminham-se por uma via difícil
e cansativa, precisamente como se lê no Evangelho: “Se alguém quiser vir
após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me” (Mc 8,34).
Neste ponto, o hino petrino
delineia uma síntese admirável da Paixão de Cristo, moldada nas palavras e nas
imagens de Isaías aplicadas à figura do Servo sofredor (cf. Is 53), relida em chave messiânica
pela tradição cristã antiga.
3. Esta história hínica da
Paixão é formulada através de quatro declarações negativas (vv. 22-23a) e três
positivas (vv. 23b-24) para descrever a atitude de Jesus naquela vicissitude
terrível e grandiosa.
Começa-se com a dupla
afirmação da sua absoluta inocência, expressa com as palavras de Isaías 53,9: “Pecado
nenhum cometeu, nem houve engano em seus lábios” (v.
22). Seguem-se outras duas considerações sobre o seu comportamento
exemplar inspirado na mansidão e humildade: “Insultado, ele não insultava; ao
sofrer e ao ser maltratado, ele não ameaçava vingança” (v. 23). O silêncio
paciente do Senhor não é só um ato de coragem e de generosidade, é também um
gesto de confiança em relação ao Pai, como sugere a primeira das três afirmações
positivas: “Entregava, porém, sua causa Àquele que é justo juiz” (ibid.). A sua confiança na justiça divina que
guia a história rumo ao triunfo do inocente é total e perfeita.
4. Assim, chega-se ao
vértice da narração da Paixão, que realça o valor salvífico do ato supremo da
doação de Cristo: “Carregou sobre si nossas culpas em seu corpo, no lenho da
cruz, para que, mortos aos nossos pecados, na justiça de Deus nós vivamos” (v. 24).
Esta segunda afirmação
positiva, formulada com as expressões da profecia de Isaías (cf. Is
53,12), esclarece que Cristo levou “em seu corpo”, “no lenho da cruz”, “os
nossos pecados”, para poder aniquilá-los.
Por este caminho também nós,
libertados do homem velho, com o seu mal e com a sua miséria, podemos “viver
para a justiça”, ou seja, em santidade. O pensamento corresponde, mesmo se com
palavras em grande medida diversas, à doutrina paulina sobre o Batismo que
nos regenera como criaturas novas, imergindo-nos no mistério da Paixão, Morte e
glória de Cristo (cf. Rm 6,3-11).
A última frase - “Por suas
chagas nós fomos curados” (v. 25) - tem em vista o valor salvífico do
sofrimento de Cristo, expresso com as mesmas palavras usadas por Isaías
para expressar a fecundidade salvífica do sofrimento suportado pelo Servo do
Senhor (cf. Is 53,5).
5. Contemplando as chagas de
Cristo, pelas quais fomos salvos, Santo Ambrósio assim se expressava: “Nada
existe nas minhas obras de que me possa gloriar, nada tenho de que me gloriar,
e por isso me gloriarei em Cristo. Não me alegrarei por ser justo, mas porque
fui redimido. Não me alegrarei porque não tenho pecados, mas porque os meus pecados
foram perdoados. Não me alegrarei porque ajudei, nem porque alguém me ajudou,
mas porque Cristo é meu advogado junto do Pai, porque o sangue de Cristo foi
derramado por mim. A minha culpa tornou-se para mim o preço da redenção,
através da qual Cristo veio a mim. Por mim, Cristo provou a morte. É mais
proveitosa a culpa que a inocência. A inocência tinha-me tornado arrogante, a
culpa tornou-me humilde” (Tiago e a vida bem-aventurada, I, 6, 21: Saemo, III,
Milão-Roma, 1982, pp. 251.253).
"Por sua chagas fomos curados" (1Pd 2,24) (Cristo, o "Homem das Dores" - Dieric Bouts) |
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