quinta-feira, 9 de setembro de 2021

Catequeses sobre os Salmos (33): II Vésperas do domingo da I semana

As três últimas Catequeses do Papa João Paulo II sobre os salmos e cânticos da Liturgia das Horas em 2003 e a primeira de 2004 foram dedicadas aos textos das II Vésperas do domingo da I semana do Saltério: 26 de novembro (Sl 109), 03 de dezembro (Sl 113A) e 10 de dezembro de 2003 (Ap 19,1-2.5-7) e 14 de janeiro de 2004 (1Pd 2,21-24).

Vale recordar que o cântico da 1ª Carta de Pedro é entoado apenas na Quaresma, uma vez que neste tempo se o omite o Aleluia, central no cântico de Ap 19.

93. O Messias, Rei e Sacerdote: Sl 109(110),1-5.7
26 de novembro de 2003

1. Escutamos um dos Salmos mais célebres da história da cristandade. O Salmo 109, que a Liturgia das Vésperas nos propõe todos os domingos, é citado, de fato, várias vezes pelo Novo Testamento. Sobretudo os versículos 1 e 4 são aplicados a Cristo, no seguimento da antiga tradição judaica, que tinha transformado este hino de cântico real davídico em salmo messiânico.
Deve-se a popularidade desta oração também ao uso constante que dela fazem as Vésperas do domingo. Por este motivo o Salmo 109, na versão latina da Vulgata, foi objeto de numerosas e maravilhosas composições musicais que assinalaram a história da cultura ocidental. A Liturgia, segundo a praxe escolhida pelo Concílio Vaticano II, retirou do texto original hebraico do Salmo, que entre outras coisas é formado apenas por 63 palavras, o violento versículo 6. Ele evoca a tonalidade dos chamados “salmos imprecatórios” e descreve o rei hebraico no momento em que avança para uma espécie de campanha militar, esmagando os seus adversários e julgando as nações.

2. Visto que teremos ocasião de voltar a falar acerca deste Salmo, considerando o uso que dele faz a Liturgia, limitemo-nos agora a oferecer apenas uma visão de conjunto do mesmo.
Nele podemos distinguir claramente duas partes. A primeira (vv. 1-3) contém um oráculo dirigido por Deus àquele que o salmista chama “meu senhor”, ou seja, ao soberano de Jerusalém. O oráculo proclama a entronização do descendente de Davi “à direita” de Deus. Com efeito, o Senhor dirige-se a ele dizendo: “Assenta-te ao lado meu direito” (v. 1). Provavelmente, temos aqui a menção de um ritual, segundo o qual o eleito se sentava à direita da arca da aliança, de modo que pudesse receber o poder de governo do rei supremo de Israel, isto é, do Senhor.

"Palavra do Senhor ao meu Senhor: Assenta-te ao lado meu direito" (Sl 109,1)
(O Pai convida Cristo a sentar-se à sua direita - Pieter de Grebber)

3. No fundo intuem-se forças hostis, que contudo são neutralizadas por uma conquista vitoriosa: os inimigos são representados aos pés do soberano, que avança solene no meio deles segurando o cetro da sua autoridade (vv. 1-2). É sem dúvida o reflexo de uma situação política concreta, que se verificava nos momentos de passagem do poder de um rei para outro, com a rebelião de alguns subalternos ou com tentativas de conquista. Mas agora o texto remete para um contraste de índole geral entre o projeto de Deus, que age através do seu eleito, e os desígnios daqueles que gostariam de afirmar o seu poder hostil e prevaricador. Tem-se, por conseguinte, o eterno confronto entre o bem e o mal, que se verifica no âmbito de vicissitudes históricas, mediante as quais Deus se manifesta e nos fala.

4. A segunda parte do salmo contém, ao contrário, um oráculo sacerdotal, que tem ainda como protagonista o rei davídico (vv. 4-7). Garantida por um solene juramento divino, a dignidade real une em si também a sacerdotal. A referência a Melquisedec, rei-sacerdote de Salém, ou seja, da antiga Jerusalém (cf. Gn 14), talvez seja o meio para justificar o sacerdócio particular do rei ao lado do sacerdócio oficial levítico do templo de Sião. Sabemos também que a Carta aos Hebreus partirá precisamente deste oráculo: “Tu és sacerdote eternamente segundo a ordem do rei Melquisedec” (v. 4), para ilustrar o sacerdócio único e perfeito de Jesus Cristo. Examinaremos sucessivamente de maneira mais profunda o Salmo 109, fazendo uma análise atenta de cada um dos versículos.

5. Mas, para concluir, gostaríamos de ler o versículo inicial do Salmo com o oráculo divino: “Assenta-te ao lado meu direito até que eu ponha os inimigos teus como escabelo por debaixo de teus pés”. E o faremos com São Máximo de Turim (séculos IV-V), que, no seu Sermão sobre o Pentecostes, o comenta do seguinte modo: “Segundo os nossos costumes, a partilha do trono é oferecida àquele que, tendo realizado qualquer empreendimento, ao chegar vencedor merece sentar-se em sinal de honra. Por conseguinte, também o homem Jesus Cristo, ao vencer com a sua Paixão o diabo, abrindo com a sua Ressurreição os reinos do abismo e chegando vitorioso ao céu, como que depois de ter cumprido uma tarefa, ouve de Deus Pai este convite: ‘Senta-te à minha direita’. Não nos devemos admirar se o Pai oferece ao Filho, que é consubstancial ao Pai, a partilha do trono... O Filho senta à direita porque, segundo o Evangelho, à direita estarão as ovelhas e à esquerda os cordeiros. Por conseguinte, é necessário que o primeiro Cordeiro ocupe a parte das ovelhas e o Chefe imaculado ocupe antecipadamente o lugar destinado ao rebanho imaculado que o seguirá” (40,2: Scriptores circa Ambrosium, IV, Milão-Roma, 1991, p. 195).

94. Israel liberta-se do Egito: Sl 113A(114),1-8
03 de dezembro de 2003

1. O jubiloso e triunfal cântico que acabamos de proclamar recorda o êxodo de Israel da opressão dos egípcios. O Salmo 113A faz parte daquela coletânea que a tradição judaica chamou Hallel egípcio”. São os Salmos 112-117, uma espécie de fascículo de cânticos, usados sobretudo na Liturgia judaica da Páscoa.
O Cristianismo adotou o Salmo 113 com a mesma conotação pascal, mas abriu-o à nova leitura derivada da Ressurreição de Cristo. Por isso o êxodo celebrado pelo Salmo torna-se figura de outra libertação mais radical e universal. Dante, na Divina Comédia, coloca este hino, segundo a versão latina da Vulgata, nos lábios das almas do Purgatório: In exitu Israël de Aegypto / cantavam todos juntos em uníssono...” (Purgatório II, 46-47). O que significa que ele vê no Salmo o cântico da expectativa e da esperança de quantos estão orientados, depois da purificação de todos os pecados, para a meta derradeira da comunhão com Deus no Paraíso.

2. Sigamos agora o enredo temático e espiritual desta breve composição orante. Na abertura (vv. 1-2) evoca-se o êxodo de Israel da opressão egípcia até a entrada naquela terra prometida que é o “santuário” de Deus, ou seja, o lugar da sua presença entre o povo. Aliás, terra e povo são unidos: Judá e Israel, palavras com as quais se designava quer a terra santa quer o povo eleito, são considerados como sede da presença do Senhor, sua propriedade e herança especiais (cf. Ex 19,5-6).
Depois desta descrição teológica de um dos elementos de fé fundamentais do Antigo Testamento, ou seja, a proclamação das obras maravilhosas de Deus para o seu povo, o salmista aprofunda espiritual e simbolicamente os seus acontecimentos constitutivos.

3. O Mar Vermelho do êxodo do Egito e o Jordão da entrada na Terra Santa são personificados e transformados em testemunhas e instrumentos participantes da libertação realizada pelo Senhor (vv. 3.5).
No início, no êxodo, eis que o mar se retira para deixar passar Israel e, no final da marcha no deserto, eis que as águas do Jordão ficaram completamente separadas, deixando o seu leito seco para que a procissão dos filhos de Israel o pudesse atravessar (cf. Js 3–4). No centro, recorda-se a experiência do Sinai: agora são os montes que participam da grande revelação divina, que se realiza sobre as suas colinas. Semelhantes a criaturas vivas, como os carneiros e os cordeiros, eles estremecem e saltam. Com uma personificação muito vivaz, o salmista interroga então os montes e as colinas acerca do motivo da sua perturbação: “Por que dais pulos como ovelhas, ó montanhas? E vós, colinas, parecendo cordeirinhos?” (v. 6). Não é referida a sua resposta: é dada diretamente por meio de uma ordem, dirigida depois à terra, para que trema com a chegada do Senhor, Deus de Israel, um ato de exaltação gloriosa do Deus transcendente e salvador.

4. É este o tema da parte final do Salmo 113A (v. 7-8), que introduz outro acontecimento significativo da marcha de Israel no deserto, o da água que saía da rocha de Meriba (cf. Ex 17,1-7; Nm 20,1-13). Deus transforma a rocha em uma nascente de água que se torna um lago: na base deste prodígio está a sua solicitude paterna em relação ao povo.
O gesto adquire, então, um significado simbólico: é o sinal do amor salvífico do Senhor que ampara e regenera a humanidade enquanto progride no deserto da história.
Como se sabe, São Paulo retomará esta imagem e, com base numa tradição judaica segundo a qual a rocha acompanhava Israel no seu percurso no deserto, lê de novo o acontecimento em chave cristológica: “Todos beberam da mesma bebida espiritual; pois bebiam de um rochedo espiritual que os seguia, e esse rochedo era Cristo” (1Cor 10,4).

5. Neste contexto, um grande mestre cristão como Orígenes, ao comentar a saída do povo de Israel do Egito, pensa no novo êxodo realizado pelos cristãos. De fato, ele exprime-se do seguinte modo: “Não penses que só então Moisés tenha guiado o povo para fora do Egito: também agora o Moisés que temos conosco, isto é, a lei de Deus quer guiar-te fora do Egito; se a ouvires, quer afastar-te do Faraó... Não quer que tu permaneças nas ações tenebrosas da carne, mas que vás ao deserto, que alcances o lugar privado das perturbações e das flutuações do século, que chegues à tranquilidade e ao silêncio... Por conseguinte, quando chegares a este lugar, lá poderás imolar ao Senhor, reconhecer a lei de Deus e o poder da voz divina” (Homilias sobre o Êxodo, Roma, 1981, pp. 71-72).
Retomando a imagem paulina que recorda a travessia do mar, Orígenes continua: “O Apóstolo chama a isto um batismo, realizado em Moisés na nuvem e no mar, para que tu, que foste batizado em Cristo, na água e no Espírito Santo, saibas que os egípcios estão no teu seguimento e querem chamar-te ao seu serviço, ou seja, aos regentes deste mundo e aos espíritos malvados dos quais antes foste escravo. Sem dúvida, eles procurarão seguir-te, mas tu desces à água e salvas-te incólume e, tendo lavado as manchas dos pecados, sobes como um homem novo preparado para cantar o cântico novo” (ibid., p. 107).

95. As núpcias do Cordeiro: Ap 19,1-2.5-7
10 de dezembro de 2003

1. Segundo a série dos salmos e dos cânticos que constituem a oração eclesial das Vésperas, encontramo-nos diante de um trecho de hino, tirado do capítulo 19 do Apocalipse e composto por uma sequência de “aleluias” e de aclamações.
Por detrás destas aclamações jubilosas está a lamentação dramática entoada no capítulo precedente pelos reis, mercadores e navegadores face à queda da Babilônia imperial, a cidade da maldade e da opressão, símbolo da perseguição que se desencadeou em relação à Igreja.

2. Em antítese a este grito que se eleva da terra, ressoa nos céus um coro jubiloso de tipo litúrgico que, além do “aleluia”, repete também o “amém”. As várias aclamações semelhantes a antífonas, que agora a Liturgia das Vésperas une em um único cântico, na realidade, no texto do Apocalipse, são colocadas nos lábios de vários personagens. Encontramos antes de tudo uma “multidão imensa”, constituída pela assembleia dos anjos e dos santos (vv. 1-3). Distingue-se depois a voz dos “vinte e quatro anciãos” e dos “quatro seres vivos”, figuras simbólicas que se parecem com os sacerdotes desta Liturgia celeste de louvor e de agradecimento (v. 4). Por fim, eleva-se uma voz solista (v. 5) que, por sua vez, envolve no cântico a “grande multidão” com a qual se tinha começado (vv. 6-7).

3. Teremos a ocasião, nas etapas futuras deste nosso itinerário orante, de ilustrar cada uma das antífonas deste grandioso e alegre hino de louvor a várias vozes. Contentamo-nos agora com duas anotações. A primeira refere-se à aclamação de abertura que diz assim: “Ao nosso Deus a salvação, honra, glória e poder! Pois são verdade e justiça os juízos do Senhor” (vv. 1-2).
No centro desta invocação jubilosa encontra-se a representação da intervenção decisiva de Deus na história: o Senhor não é indiferente, como um imperador impassível e isolado, em relação às vicissitudes humanas. Como diz o salmista, “o Senhor do Seu trono celestial, observa com os seus olhos, e com a sua vista examina os filhos dos homens” (Sl 10,4).

4. Aliás, o seu olhar é fonte de ação, porque Ele intervém e destrói os impérios prepotentes e opressores, derrota os orgulhosos que o desafiam, julga todos os que perpetram o mal. É ainda o salmista quem descreve com imagens pictóricas esta irrupção de Deus na história (cf. Sl 10,7), assim como o autor do Apocalipse tinha evocado no capítulo anterior a terrível intervenção divina em relação à Babilônia, desenraizada da sua sede e lançada ao mar (cf. Ap 18,1-24). O nosso hino menciona esta intervenção com um trecho que não é retomado na celebração das Vésperas (cf. Ap 19,2-3).
A nossa oração deve sobretudo invocar e louvar a ação divina, a justiça eficaz do Senhor, a sua glória obtida com a vitória sobre o mal. Deus faz-se presente na história, pondo-se do lado dos justos e das vítimas, precisamente como declara a aclamação do Apocalipse, breve mas essencial, e como se repete com frequência no cântico dos Salmos (cf. Sl 145,6-9).

5. Desejamos realçar outro tema do nosso cântico. É desenvolvido na aclamação final e é um dos motivos dominantes do próprio Apocalipse: “Eis que as núpcias do Cordeiro redivivo se aproximam! Sua Esposa se enfeitou, se vestiu de linho puro” (v. 7). Cristo e a Igreja, o Cordeiro e a Esposa, estão em profunda comunhão de amor.
Procuraremos fazer brilhar este caráter esponsal místico através do testemunho poético de um grande Padre da Igreja síria, Santo Efrém, que viveu no século IV. Usando simbolicamente o sinal das Bodas de Caná (cf. Jo 2,1-11), ele introduz a própria cidade personificada, que louva Cristo pelo grande dom recebido: 
“Darei graças juntamente com os meus hóspedes, porque Ele me considerou digna de convidá-lo: / Ele, que é o Esposo celeste, que desceu e a todos convidou; / e também eu fui convidada para participar na sua festa pura de núpcias. / O reconhecerei diante dos povos como o Esposo, como Ele não há outro. / O seu quarto nupcial está preparado desde há séculos, / está adornado com riquezas e nada lhe falta. / Não como as Bodas de Caná, cujas faltas Ele satisfez” (Inni sulla verginità, 33, 3: L'arpa dello Spirito, Roma, 1999, pp. 73-74).

6. Em outro hino, que também canta as Bodas de Caná, Santo Efrém realça como Cristo, convidado para as núpcias de outrem (precisamente os esposos de Caná), tenha desejado celebrar a festa das suas núpcias: as núpcias com a sua esposa, que é qualquer alma fiel. “Jesus, tu foste enviado a uma festa de núpcias de outrem, dos esposos de Caná, / aqui, ao contrário, é a tua festa, pura e bela: alegra os nossos dias, / porque também os teus hóspedes, Senhor, precisam / dos teus cânticos: deixa que a tua harpa preencha tudo! / A alma é a tua esposa, o corpo é o teu quarto nupcial, / os teus convidados são os sentidos e os pensamentos. / E se um só corpo é para ti uma festa de núpcias / toda a Igreja constitui o teu banquete nupcial!” (Inni sulla fede, 14, 4-5: op. cit., p. 27).

96. A Paixão voluntária de Cristo, Servo de Deus: 1Pd 2,21-24
14 de janeiro de 2004

1. Depois da pausa para as festas de Natal, recomeçamos hoje o nosso itinerário de meditação sobre a Liturgia das Vésperas. O cântico agora proclamado, tirado da Primeira Carta de Pedro, detém-se sobre a Paixão redentora de Cristo, já preanunciada no momento do Batismo no Jordão.
Como ouvimos no domingo passado, Festa do Batismo do Senhor, Jesus revela-se desde o início da atividade pública como “Filho predileto”, no qual o Pai pôs todo o seu agrado (cf. Lc 3,22), e o verdadeiro “Servo do Senhor” (cf. Is 42,1), que liberta o homem do pecado através da sua Paixão e Morte na Cruz.
Na citada Carta de Pedro, na qual o pescador da Galileia se define “testemunha dos sofrimentos de Cristo” (1Pd 5,1), a recordação da Paixão é muito frequente. Jesus é o cordeiro sacrifical sem mancha, cujo sangue precioso foi derramado para o nosso resgate (cf. 1Pd 1,18-19). Ele é a pedra viva rejeitada pelos homens, mas escolhida por Deus como “pedra angular” que dá a sua unidade à “casa espiritual”, isto é, à Igreja (cf. 1Pd 2,6-8). Ele é o justo que se sacrifica pelos injustos para reconduzi-los a Deus (cf. 1Pd 3,18-22).

2. A nossa atenção fixa-se agora no perfil de Cristo designado no trecho que acabamos de escutar (1Pd 2,21-24). Ele apresenta-se como o modelo para ser contemplado e imitado, o “programa”, como se diz no original grego (v. 21), a ser realizado, o exemplo a ser seguido sem hesitação, conformando-nos com as suas opções.
Com efeito, usa-se o verbo grego do seguimento, do discipulado, do encaminhar-se seguindo os próprios passos de Jesus. E os passos do Mestre divino encaminham-se por uma via difícil e cansativa, precisamente como se lê no Evangelho: “Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me” (Mc 8,34).
Neste ponto, o hino petrino delineia uma síntese admirável da Paixão de Cristo, moldada nas palavras e nas imagens de Isaías aplicadas à figura do Servo sofredor (cf. Is 53), relida em chave messiânica pela tradição cristã antiga.

3. Esta história hínica da Paixão é formulada através de quatro declarações negativas (vv. 22-23a) e três positivas (vv. 23b-24) para descrever a atitude de Jesus naquela vicissitude terrível e grandiosa.
Começa-se com a dupla afirmação da sua absoluta inocência, expressa com as palavras de Isaías 53,9: “Pecado nenhum cometeu, nem houve engano em seus lábios” (v. 22). Seguem-se outras duas considerações sobre o seu comportamento exemplar inspirado na mansidão e humildade: “Insultado, ele não insultava; ao sofrer e ao ser maltratado, ele não ameaçava vingança” (v. 23). O silêncio paciente do Senhor não é só um ato de coragem e de generosidade, é também um gesto de confiança em relação ao Pai, como sugere a primeira das três afirmações positivas: “Entregava, porém, sua causa Àquele que é justo juiz” (ibid.). A sua confiança na justiça divina que guia a história rumo ao triunfo do inocente é total e perfeita.

4. Assim, chega-se ao vértice da narração da Paixão, que realça o valor salvífico do ato supremo da doação de Cristo: “Carregou sobre si nossas culpas em seu corpo, no lenho da cruz, para que, mortos aos nossos pecados, na justiça de Deus nós vivamos” (v. 24).
Esta segunda afirmação positiva, formulada com as expressões da profecia de Isaías (cf. Is 53,12), esclarece que Cristo levou “em seu corpo”, “no lenho da cruz”, “os nossos pecados”, para poder aniquilá-los.
Por este caminho também nós, libertados do homem velho, com o seu mal e com a sua miséria, podemos “viver para a justiça”, ou seja, em santidade. O pensamento corresponde, mesmo se com palavras em grande medida diversas, à doutrina paulina sobre o Batismo que nos regenera como criaturas novas, imergindo-nos no mistério da Paixão, Morte e glória de Cristo (cf. Rm 6,3-11).
A última frase - “Por suas chagas nós fomos curados” (v. 25) - tem em vista o valor salvífico do sofrimento de Cristo, expresso com as mesmas palavras usadas por Isaías para expressar a fecundidade salvífica do sofrimento suportado pelo Servo do Senhor (cf. Is 53,5).

5. Contemplando as chagas de Cristo, pelas quais fomos salvos, Santo Ambrósio assim se expressava: “Nada existe nas minhas obras de que me possa gloriar, nada tenho de que me gloriar, e por isso me gloriarei em Cristo. Não me alegrarei por ser justo, mas porque fui redimido. Não me alegrarei porque não tenho pecados, mas porque os meus pecados foram perdoados. Não me alegrarei porque ajudei, nem porque alguém me ajudou, mas porque Cristo é meu advogado junto do Pai, porque o sangue de Cristo foi derramado por mim. A minha culpa tornou-se para mim o preço da redenção, através da qual Cristo veio a mim. Por mim, Cristo provou a morte. É mais proveitosa a culpa que a inocência. A inocência tinha-me tornado arrogante, a culpa tornou-me humilde” (Tiago e a vida bem-aventurada, I, 6, 21: Saemo, III, Milão-Roma, 1982, pp. 251.253).

"Por sua chagas fomos curados" (1Pd 2,24)
(Cristo, o "Homem das Dores" - Dieric Bouts)

Fonte: Santa Sé (26 de novembro, 03 de dezembro e 10 de dezembro de 2003 e 14 de janeiro de 2004 ).

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