segunda-feira, 15 de março de 2021

Hinos da Solenidade de São José: Te, Ioseph, célebrent

Para a celebração da Liturgia das Horas (LH) - oração oficial da Igreja para a santificação das horas do dia - da Solenidade de São José, Esposo da Bem-aventurada Virgem Maria, no dia 19 de março, são propostos três hinos, composições que nos introduzem ao mistério celebrado.

Os três hinos em honra a São José foram aprovados pelo Papa Clemente X em 1671. Não se sabe, porém, quem seria seu autor. São várias as hipóteses apresentadas: Mario Righetti, em sua Historia da Liturgia, menciona o carmelita espanhol Juan Escollar (1624-1700) [1]; outros autores os atribuem a Girolamo Casanate (1620-1700) ou Giovanni Bona (1609-1674), ambos Cardeais italianos; outros, por fim, ao espanhol São Juan Bautista de la Concepción Garcia (1561-1613) [2].

Independentemente do seu autor, essas composições são um tesouro da Igreja, oferecido a todos os fiéis. Nesta postagem e nas próximas duas apresentaremos os três hinos em seu texto original (em latim) e em sua atual tradução oficial para o Brasil, com alguns comentários.

São eles: Te, Ioseph, célebrent (Celebre a José a corte celeste), para as I e II Vésperas; Iste, quem laeti cólimus (Hoje um grande triunfo cantamos), para o Ofício das Leituras; e Caelitum, Ioseph, decus (São José, do céu a glória), para as Laudes.

"Nascido o Senhor, nos braços o estreitas"
(San José con el Niño Jesús  - Clemente de Torres)

Começaremos pelo mais famoso dos três e o primeiro a ser recitado na LH: o hino das Vésperas: Te, Ioseph, célebrent.

I e II Vésperas: Te, Joseph, célebrent

Te, Ioseph, célebrent ágmina caelitum,
te cuncti résonent christíanum chori,
qui, clarus méritis, iunctus es ínclitae
casto foedere Vírgini.

Almo cum túmidam gérmine cóniugem
admírans, dúbio tángeris ánxius,
afflátu súperi Fláminis ángelus
concéptum púerum docet.

Tu natum Dóminum stringis, ad éxteras
Aegýpti prófugum tu séqueris plagas;
amíssum Sólymis quaeris et ínvenis,
miscens gáudia flétibus.

Eléctos réliquos mors pia cónsecrat
palmámque eméritos glória súscipit;
tu vivens, Súperis par, frúeris Deo,
mira sorte beátior.

Nobis, summa Trias, parce precántibus;
da Ioseph méritis sídera scándere,
ut tandem líceat nos tibi pérpetim
gratum prómere cánticum. Amen [3].

I e II Vésperas: Celebre a José a corte celeste

Celebre a José a corte celeste,
prossiga o louvor o povo cristão:
Só ele merece à Virgem se unir
em casta união.

Ao ver sua Esposa em Mãe transformar-se,
José quer deixar Maria em segredo.
Um anjo aparece: “É obra de Deus!”
Afasta-lhe o medo.

Nascido o Senhor, nos braços o estreitas.
A ti tem por guia, a Herodes fugindo.
Perdido no templo, és tu que o encontras,
chorando e sorrindo.

Convívio divino a outros, somente
após dura morte é dado gozar.
Mas tu, já em vida, abraças a Deus,
e o tens no teu lar!

Ó dai-nos, Trindade, o que hoje pedimos:
Um dia no céu, cantarmos também
o canto que canta o esposo da Virgem
sem mácula. Amém [4].

"Só ele merece à Virgem se unir, em casta união"
(Desposorios de la Virgen - Sebastián López de Arteaga)

Comentário:

As Vésperas são a oração da tarde da LH, rezadas geralmente às 18h, próximo ao pôr-do-sol. Ordinariamente, portanto, seriam uma das últimas horas a ser rezadas no dia. Porém, os domingos e solenidades são celebrações tão importantes que a Igreja, fiel à tradição judaica e ao cristianismo primitivo, os faz “transbordar” o curso de um dia, iniciando com a oração das “I Vésperas” na tarde do dia anterior.

Assim, começamos nosso percurso pelo hino das I Vésperas da Solenidade de São José, recitado na tarde do dia 18 de março [5]. Este hino será retomado nas II Vésperas, na tarde do dia 19 de março, e nas Vésperas da Memória de São José Operário, na tarde do dia 01 de maio.

O hino é composto por cinco estrofes, seguindo a estrutura básica dos hinos em geral: uma introdução, com o convite ao louvor; o corpo do hino, com os motivos do louvor; e a conclusão, geralmente uma doxologia (uma fórmula de louvor final).

Nos hinos cristãos da LH a última estrofe é sempre dirigida à Trindade. As quatro primeiras estrofes, por sua vez, no original em latim são dirigidas diretamente a São José: Te, Ioseph, célebrent... (A ti, José, celebrem...).

Na tradução brasileira as primeiras duas estrofes são mais “genéricas”, não sendo dirigidas a ninguém em particular, enquanto a terceira e a quarta sim são dirigidas diretamente a José. Vale destacar também, em relação à tradução, a inserção de rimas alternadas nos versos pares, ausentes no original, tornando o hino mais “musical” em nossa língua.

a) Primeira estrofe:

Os primeiros dois versos do nosso hino compõem o convite ao louvor, dirigido ao céu e à terra: ágmina caelitum (“as fileiras celestes”, entendidas como as fileiras de um exército, indicando os anjos e santos) e christíanum chori (“os coros dos cristãos”; em algumas versões do hino “Christiadum chori”, os coros da Cristandade).

Os dois versos seguintes, por sua vez, iniciam o corpo do hino. No original em latim José é primeiramente louvado como “claro em méritos” (clarus méritis, no sentido de “brilhante” ou “ilustre” em méritos).

O Evangelho, com efeito, sintetiza atestando que José é “justo” (cf. Mt 1,19). Na Ladainha de São José, por sua vez, são referidas uma série de virtudes do nosso santo, o qual reflete em suas atitudes a luz que vem de Deus, fonte de todo bem.

Esta singular virtude de São José está relacionada diretamente ao primeiro dos mistérios do Evangelho celebrado pelo hino: seu matrimônio com a Virgem. Sendo “claro em méritos”, isto é, justo, José é digno de unir-se à Virgem em uma “casta união” (“casto foedere”). Em latim, a Virgem é qualificada como ínclita (palavra geralmente traduzida aqui como “gloriosa”).

b) Segunda estrofe:

A segunda estrofe canta aquela que, na piedade popular, é considerada ao mesmo tempo a primeira dor (ou angústia) e a primeira alegria de São José: a incompreensão diante da gravidez de Maria e o anúncio do anjo, esclarecendo este mistério (cf. Mt 1,18-21).

O primeiro verso dessa estrofe usa uma imagem bastante poética para descrever a gravidez da Virgem: “Almo cum túmidam gérmine cóniugem...”, que poderia ser traduzida como: “Quando a Esposa é fecundada por santa semente...”.

O segundo verso também descreve mui poeticamente (tocando, inclusive, a “psicologia” de José) o drama do Esposo diante do mistério: “Admírans, dúbio tángeris ánxius”, isto é, “Admirado, uma dúvida ansiosa te atinge”. Em português, por sua vez, menciona-se simplesmente a decisão de José: “quer deixar Maria em segredo”.

Os últimos dois versos dessa estrofe, por fim, descrevem a intervenção do Anjo através do sonho de José. No texto latino, em consonância com o Evangelho (Mt 1,18.20; Lc 1,35), o Anjo ensina sobre a concepção da criança (concéptum púerum docet): “Afflátu súperi Fláminis”, “É um sopro do supremo Espírito”.

Afflátus” é um “sopro” no sentido de “inspiração”, enquanto “flámen” é outra palavra para “sopro” ou “brisa”. Assim, a expressão também poderia ser traduzida como “um sopro do supremo Sopro”. Vale lembrar que a palavra para “espírito” tanto em grego (pneuma) como em hebraico (ruah) é “sopro”.

Em português a mensagem do Anjo é mais simples: “É obra de Deus!”. Porém, em seguida o texto menciona a reação de José ao anúncio do Anjo - “Afasta-lhe o medo” -, ausente no original.

"Um Anjo aparece: 'É obra de Deus!'"
(Dream of Saint Joseph - Philippe de Champaigne)

c) Terceira estrofe:

A terceira estrofe é a mais densa de conteúdos, fazendo referência a três acontecimentos do Evangelho: o nascimento de Jesus (Lc 2,1-7), a fuga para o Egito (Mt  2,13-15) e a perda e o reencontro do Menino no Templo (Lc 2,41-50).

Como no Evangelho, o nascimento do Senhor é expresso em poucas mas significativas palavras: “Tu natum Dóminum stringis”, “Nascido o Senhor, nos braços o estreitas”, como corretamente traduz a versão brasileira da LH.

Vale recordar que as representações mais antigas do nascimento do Senhor retratam José de maneira secundária, quase marginal, para que não houvesse dúvidas de que Jesus é “filho de Deus e de Maria”. Assim, ora José está ausente no nascimento porque teria ido a Belém buscar uma parteira (como narrado em alguns textos apócrifos), ora está em um canto dormindo ou mesmo sendo tentado por Satanás (como nos ícones bizantinos da Natividade).

Em nosso hino, em contrapartida, afirma-se a presença de José no nascimento de Jesus com esse singelo “stringis”: José abraça o recém-nascido, estreita-o entre seus braços. Com efeito, embora não fosse seu pai no sentido biológico, José amou Jesus com um coração de pai, como atesta São João Paulo II em sua Exortação Apostólica Redemptoris Custos, afirmando a dimensão afetiva da paternidade de José em relação a Jesus [6].

Na sequência, ainda no primeiro verso dessa estrofe, introduz-se o drama da fuga ao Egito. É curioso que José, como fugitivo ou exilado (prófugus), parte para “as terras estrangeiras do Egito” (ad éxteras Aegýpti plagas) seguindo Jesus (mencionado no verso anterior como Dominus, Senhor, a quem José segue - séqueris).

No sentido literal não faz sentido José seguir Jesus para o Egito, uma vez que este é apenas um recém-nascido. Por isso a tradução brasileira inverte o original: José é o guia de Jesus (“A ti tem por guia, a Herodes fugindo”).

Não obstante, o texto original deve ser entendido à luz de dois versículos do Livro da Sabedoria: “Mas a Sabedoria livrou das provações os seus fiéis. Ela guiou, por caminhos planos, o justo que fugia à ira do irmão” (Sb 10,9-10). Embora no contexto de Sb o “justo” seja Jacó, fugindo da ira de Esaú, nosso hino aplica a expressão ao seu descendente: José é o “justo” guiado pela “Sabedoria”, que é Jesus.

"A ti tem por guia, a Herodes fugindo"
(Flight into Egypt - Eugène Girardet)

Nessa dupla interpretação do episódio, como em outros versos dos hinos em honra a São José que veremos nas próximas postagens, está presente o dogma da dupla natureza de Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Como Deus, é a Sabedoria que guia o justo; como homem, é o recém-nascido conduzido pelos pais.

Por fim, os últimos dois versos da estrofe descrevem o drama da perda e do consequente reencontro do Menino Jesus em Jerusalém. José, juntamente com sua Esposa, o busca e o encontra (“quaeris et ínvenis”) “chorando e sorrindo”, ou “misturando alegria e pranto” (“miscens gáudia flétibus”).

Este tema da alegria e do pranto de José, como vimos em sua postagem própria, deu origem no século XVIII à devoção das “sete dores (ou sete angústias) e sete alegrias de São José”.

d) Quarta estrofe:

A penúltima estrofe exalta o “privilégio” de São José em ter podido conviver com o próprio Deus em sua casa, na pessoa do Verbo Encarnado.

Os primeiros dois versos recordam o destino escatológico dos justos, que será antecipado pelo justo José já em vida: “Eléctos réliquos mors pia cónsecrat palmámque eméritos glória súscipit” - “Aos outros eleitos uma piedosa morte consagra e na glória se recebem os que merecem a palma”.

Em comparação à glória futura dos justos, o hino canta nos próximos dois versos o “privilégio” de José de conviver com o próprio Deus em sua casa: “Tu vivens, Súperis par, frúeris Deo, mira sorte beátior” - “Tu, vivo, como os ‘seres superiores’ [no sentido de ‘seres celestes’, isto é, os anjos] convives com Deus, admirável destino dos bem-aventurados”.

A tradução brasileira, por sua vez, exprime essas verdades tão elevadas com expressões mais “ternas”: “Mas tu, já em vida, abraças a Deus, e o tens no teu lar!”.

e) Quinta estrofe:

A conclusão do nosso hino, por fim, ao invés da tradicional doxologia, é composta por uma súplica à Trindade, pedindo-lhe poder partilhar um dia do convívio com São José no céu e cantar, junto com ele, um hino de gratidão a Deus.

No original em latim a súplica começa com um pedido de perdão, ausente na tradução brasileira: “Nobis, summa Trias, parce precántibus” - “Ó excelsa Trindade, perdoai-nos, a nós, suplicantes”.

Na sequência, invocam-se os méritos de São José que, na comunhão dos santos, são também nossa herança: “Da Ioseph méritis sídera scándere” - “Pelos méritos de José, faz-nos chegar ao céu”.

"Perdido no templo, és tu que o encontras, chorando e sorrindo"
(Jésus retrouvé au Temple - Jacques Stella)

Por fim, conclui-se com o desejo de entoar eternamente no céu um canto de gratidão à mesma Trindade: “Ut tandem líceat nos tibi pérpetim gratum prómere cánticum. Amen” - “Para que possamos cantar eternamente a Ti um canto de gratidão. Amém”.

A tradução brasileira da estrofe, por sua vez, destaca o desejo de unirmo-nos a São José, que também entoa eternamente este louvor a Deus: “Ó dai-nos, Trindade, o que hoje pedimos: Um dia no céu, cantarmos também o canto que canta o esposo da Virgem sem mácula. Amém”.

Confira também o nosso hino cantado em latim e em português (para ouvir mais músicas em louvor a São José, clique aqui):



Notas:

[1] RIGHETTI, Mario. Historia de la Liturgia, v. I: Introducción general; El año litúrgico; El Breviario. Madrid: BAC, 1955, p. 952.
[2] cf. San Giuseppe nella Liturgia, texto divulgado no site da Congregação dos Oblatos de São José (em italiano).
[3] cf.  Preces latinae
[4] OFÍCIO DIVINO. Liturgia das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição típica. São Paulo: Paulus, 1999, v. II, pp. 1479.1562.
[5] Exceto quando o dia 19 de março cai na segunda-feira. Neste caso, na tarde do dia 18 recitam as II Vésperas do respectivo Domingo da Quaresma, uma vez que estes gozam de precedência sobre as solenidades. Se o dia 19 de março cai em um Domingo da Quaresma, a Solenidade de São José é transferida para a segunda-feira, com a mesma regra quanto às I Vésperas.

Imagens: Wikimedia Commons

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