Na
série das Catequeses do Papa João Paulo II sobre os salmos e cânticos, chegamos
às Laudes da quinta-feira da III semana do Saltério. O Papa refletiu sobre seus
textos nas Catequeses de 13 de novembro (Sl 86), 20 de novembro (Is 40,10-17) e
27 de novembro de 2002 (Sl 98).
57. Jerusalém, mãe de todos
os povos: Sl 86(87),1-7
13 de novembro de 2002
1. O cântico a Jerusalém,
cidade da paz e mãe universal, que agora ouvimos ressoar, encontra-se
infelizmente em contraste com a experiência histórica que a cidade está vivendo.
Tarefa da oração é semear confiança e gerar esperança.
A perspectiva universal do
Salmo 86 pode levar a pensar no hino do Livro
de Isaías, que vê convergir para Sião todos os povos para ouvir a Palavra
do Senhor e redescobrir a beleza da paz, transformando “as espadas em relhas de
arados” e “as suas lanças em foices” (Is
2,2-5; cf. Catequese n. 49). Na
realidade, o Salmo coloca-se numa perspectiva muito diferente, a de um
movimento que, em vez de convergir para Sião, parte de Sião; o salmista vê em
Sião a origem de todos os povos. Depois de ter declarado a primazia da cidade
santa, não por méritos históricos ou culturais, mas apenas devido ao amor que
Deus tem por ela (vv. 1-3), o Salmo abre-se precisamente a uma celebração deste
universalismo que irmana todos os povos.
2. Sião é cantada como mãe
de toda a humanidade, não só de Israel. Esta afirmação possui uma audácia
extraordinária. O salmista está consciente disto e o faz notar: “Dizem coisas
gloriosas da Cidade do Senhor” (v. 3). Como pode uma modesta capital de uma
pequena nação ser apresentada como a origem de povos muito poderosos? Por que
pode ter, Sião, esta grande pretensão? A resposta é dada na mesma frase: Sião é
mãe de toda a humanidade, porque é a “Cidade do Senhor”; por conseguinte, está
na base do projeto de Deus.
Todos os pontos cardeais da
terra estão em relação com esta mãe: o Egito, o grande estado ocidental;
Babilônia, a conhecida potência oriental; Tiro, que personifica o povo
comercial do norte, enquanto a Etiópia representa o sul profundo e a Palestina
a área central, também ela filha de Sião.
Na repartição de registo
espiritual de Jerusalém estão inscritos todos os povos da terra: é
repetida três vezes a frase “Ali nasceram / Nasceu nela” (vv. 4-6). É a
expressão jurídica oficial com a qual na época se declarava que uma pessoa
tinha nascido numa determinada cidade e, como tal, gozava da plenitude dos
direitos civis daquele povo.
"Dizem coisas gloriosas da Cidade do Senhor" (Sl 86,3) (Visão da cidade de Jerusalém) |
3. É sugestivo observar que
até as nações consideradas hostis a Israel subiam a Jerusalém e nela eram
recebidas não como estrangeiros mas como “familiares”. Aliás, o salmista
transforma a procissão destes povos rumo a Sião num cântico coral e numa dança
gloriosa: eles encontram as suas “fontes” (v. 7) na cidade de Deus da qual
promana uma torrente de água viva que fecunda todo o mundo, em sintonia com
quanto foi proclamado pelos profetas (cf. Ez 47,1-12; Zc 13,1; 14,8; Ap 22,1-2).
Todos devem descobrir em
Jerusalém as suas raízes espirituais, sentir-se na sua pátria, sentir-se
membros da mesma família, abraçar-se como irmãos, que voltaram para a sua casa.
4. O Salmo 86, página de
verdadeiro diálogo inter-religioso, reúne a herança universal dos profetas (cf. Is 56,6-7; 60,6-7; 66,21; Jó 4,10-11; Ml 1,11; etc.) e antecipa a tradição
cristã que aplica este salmo à “Jerusalém lá de cima”, da qual São Paulo
proclama que “é livre e é a nossa mãe” e tem mais filhos do que a Jerusalém
terrena (cf. Gl 4,26-27). O Apocalipse fala do mesmo modo quando canta a “Jerusalém que desce
do Céu, de junto de Deus” (Ap 21,2.10).
Em continuidade com o Salmo
86 também o Concílio Vaticano II vê na Igreja universal o lugar em que se
encontram reunidos “todos os justos a começar por Adão, desde o justo Abel, até
ao último eleito”. Ela será “consumada na glória no fim dos séculos” (Lumen
Gentium, 2).
5. Esta leitura eclesial do Salmo
abre-se, na tradição cristã, a uma nova leitura em chave mariológica. Jerusalém
era, para o salmista uma verdadeira “metrópole”, isto é, uma “cidade-mãe”,
dentro da qual se encontrava o próprio Senhor (cf. Sf 3,14-18). Sob esta luz, o Cristianismo
canta Maria como a Sião viva, em cujo seio é gerado o Verbo encarnado e, por
conseguinte, são regenerados os filhos de Deus. As vozes dos Padres da Igreja,
de Ambrósio de Milão a Atanásio de Alexandria, de Máximo, o Confessor a João
Damasceno, de Cromácio de Aquileia a Germano de Constantinopla, concordam com
esta nova leitura cristã do Salmo 86.
Ouçamos agora um mestre da
tradição armênia, São Gregório de Narek (950-1010), que no seu Discurso panegírico da
bem-aventurada Virgem Maria assim
se dirige à Virgem: “Refugiando-nos sob a tua digníssima e poderosa
intercessão, estamos protegidos, ó santa Mãe de Deus, encontrando alívio sob a
sombra de tua proteção como protegidos por um muro bem fortificado: muro
ornamentado, embutido graciosamente por brilhantes puríssimos; muro envolvido
de fogo e, por isso, invencível perante os assaltos dos ladrões; muro
resplandecente de centelhas, ao qual os cruéis traidores não podem chegar nem
aceder; muro circundado por todos os lados, segundo Davi, cujas bases foram
lançadas pelo Altíssimo (cf. Sl 86,1.5); muro poderoso da cidade
do alto, segundo São Paulo (cf. Gl 4,26; Hb 12,22), onde recebeste todos como
habitantes, porque mediante o nascimento corporal de Deus fizestes filhos da
Jerusalém lá do alto os filhos da Jerusalém terrena. Por isso, os seus lábios
bendizem o teu seio virginal e todos te proclamam morada e templo d’Aquele que
é consubstancial ao Pai. Por isso, justamente se adapta bem a ti a frase do
profeta: “Foste para nós refúgio e fortaleza, ajuda sempre pronta nas angústias
(cf. Sl 45,2)” (Textos
marianos do primeiro milênio, IV,
Roma, 1991, p. 589).
58. O Bom Pastor é o Deus
Altíssimo e Sapientíssimo: Is 40,10-17
20 de novembro de 2002
1. No Livro do grande profeta Isaías, que viveu no século VIII a. C., encontram-se também reunidas as vozes de outros profetas, seus discípulos e sucessores. É o caso daquele que os estudiosos da Bíblia chamaram “o Segundo Isaías”, o profeta do regresso de Israel do exílio na Babilônia, que se verificou no século VI a. C.. A sua obra constitui os capítulos 40-55 do Livro de Isaías e, precisamente, do primeiro destes capítulos é tirado o cântico que entrou na Liturgia das Laudes, há pouco proclamado.
Este cântico é composto por duas partes: os primeiros dois versículos provêm do final de um belíssimo oráculo de consolação que anuncia o regresso dos exilados a Jerusalém, sob a orientação do próprio Deus (Is 40,1-11). Os versículos seguintes formam o começo de um discurso apologético, que exalta, por um lado, a onisciência e a onipotência de Deus e, por outro, submete os fabricantes de ídolos a uma dura crítica.
2. Por conseguinte, no começo do texto litúrgico aparece a figura poderosa de Deus, que volta a Jerusalém precedido dos seus troféus, assim como Jacó tinha voltado à Terra Santa precedido pelos seus rebanhos (cf. Gn 31,17; 32,17). Os troféus de Deus são os hebreus exilados, que Ele arrancou das mãos dos seus conquistadores. Por conseguinte, Deus é apresentado “como um pastor” (v. 11). Muito frequentemente na Bíblia e noutras tradições antigas esta imagem recorda a ideia de orientação e de domínio, mas aqui as características são sobretudo ternas e apaixonadas, porque o pastor é também companheiro de viagem das suas ovelhas (cf. Sl 22). Ele cuida do rebanho, não só alimentando-o e preocupando-se para que não se tresmalhe, mas também inclinando-se com ternura sobre os cordeiros e as ovelhas-mães (v. 11).
3. Concluída a descrição da
entrada em cena do Senhor rei e pastor, eis a reflexão sobre o seu agir como
Criador do universo. Ninguém pode estar ao seu nível nesta obra grandiosa e
extraordinária: não o homem, sem dúvida, e muito menos os ídolos, seres mortos
e impotentes. O profeta recorre depois a uma série de interrogações retóricas,
nas quais já está incluída a resposta. Elas são pronunciadas numa espécie de
processo: ninguém pode competir com Deus e apropriar-se do seu imenso poder ou
da sua ilimitada sabedoria.
Ninguém está em condições de
medir o imenso universo criado por Deus. O profeta faz compreender como os
instrumentos humanos são ridiculamente inadequados para esta tarefa. Por outro
lado, Deus foi um artífice solitário; ninguém foi capaz de ajudá-lo ou de aconselhá-lo
num projeto tão imenso como o da criação cósmica (vv. 13-14).
Na sua XVIII Catequese batismal, São Cirilo de Jerusalém, com base no nosso cântico, convida a não medir Deus com o metro da nossa limitação humana: “Para ti, homem tão pequeno e frágil, a distância que vai da Gótia à Índia, da Espanha à Pérsia, é grande, mas para Deus, que tem em suas mãos o mundo inteiro, qualquer terra está próxima” (As Catequeses, Roma, 1993, p. 408).
4. Depois de ter celebrado a onipotência de Deus na criação, o profeta traça seu senhorio sobre a história, ou seja, sobre as nações, sobre a humanidade que povoa a terra. Os habitantes dos territórios conhecidos, mas também os das regiões remotas, que a Bíblia chama “ilhas” distantes, são uma realidade microscópica em relação à grandeza infinita do Senhor. As imagens são brilhantes e intensas: os povos são “qual gota d’água na vasilha”, “um grão de areia na balança”, “pesam menos do que o pó” (v. 15).
Ninguém seria capaz de
preparar um sacrifício digno deste grandioso Senhor e rei: não seriam
suficientes todas as vítimas sacrificais da terra, nem sequer todas as
florestas de cedros do Líbano para acender o fogo deste holocausto (v. 16). O
profeta conduz o homem à consciência do seu limite face à grandeza infinita e à
onipotência soberana de Deus. A conclusão é lapidar: “As nações todas são um
nada diante dele, a seus olhos elas são quais se não fossem” (v. 17).
5. Por conseguinte, o fiel é convidado, desde o início do dia, a adorar o Senhor onipotente. São Gregório de Nissa, Padre da Igreja da Capadócia (século IV), meditava assim as palavras do cântico de Isaías: “Todas as vezes que ouvimos pronunciar a palavra ‘onipotente’, pensamos no fato de que Deus mantém unidas todas as coisas na existência, tanto as inteligíveis, como as que pertencem à criação material. De fato, por isso ele mantém o círculo da terra, tem em suas mãos os confins da terra, contém o céu dentro de uma mão cheia, mede a água com a mão, engloba em si mesmo toda a criação intelectual: para que todas as coisas permaneçam na existência, mantidas com força pelo poder que as abraça” (Teologia trinitária, Milão, 1994, p. 625).
São Jerônimo, por seu lado, manifesta-se estupefato em face de outra verdade surpreendente: a de Cristo, que, “era de condição divina... despojou-se a Si mesmo, tomando a condição de servo, tornando-se semelhante aos homens” (Fl 2,6-7). Aquele Deus infinito e onipotente, observa ele, fez-se pequenino e limitado. São Jerônimo contempla-o no presépio de Belém e exclama: “Ele que contém o universo numa mão cheia, ei-lo encerrado numa estreita manjedoura” (Carta 22,39, in: Obras escolhidas I, Turim, 1971, p. 379).
59. Santo é o Senhor nosso Deus: Sl 98(99),1-9
27 de novembro de 2002
1. “Deus é Rei”. Esta aclamação, que abre o Salmo 98, que acabamos de escutar, revela o seu tema fundamental e o seu gênero literário característico. Trata-se de um cântico elevado pelo Povo de Deus ao Senhor, que governa o mundo e a história como soberano transcendente e supremo. Ele relaciona-se com outros hinos análogos - os Salmos 95-97, que já foram objeto da nossa reflexão - que a Liturgia das Laudes coloca como oração ideal da manhã.
Com efeito, o fiel, ao
começar o seu dia sabe que não é abandonado a um poder cego e obscuro, nem deixado
na incerteza da sua liberdade, nem confiado às decisões alheias, nem dominado
pelas vicissitudes da história. Ele sabe que acima de qualquer realidade
terrena se eleva o Criador e Salvador na sua grandeza, santidade e
misericórdia.
2. São várias as hipóteses
feitas pelos estudiosos sobre o uso deste Salmo na Liturgia do Templo de Sião.
Contudo, ele tem um tom de louvor contemplativo que se eleva ao Senhor, sentado
na glória celeste diante de todos os povos da terra (v. 1). E, contudo, Deus
torna-se presente num espaço e no meio da comunidade, isto é em Jerusalém (v.
2), mostrando que é “Deus-conosco”.
São sete os títulos solenes
atribuídos a Deus pelo salmista logo nos primeiros versículos: ele é rei,
grande, excelso, terrível, santo, forte, justo (vv. 1-4). Mais adiante, Deus é
apresentado também com a qualificação de “paciente” (v. 8). A ênfase é posta
sobretudo na santidade de Deus: de fato, por três vezes é repetido quase em
forma de antífona que “Ele é santo” (vv. 3.5.9). A palavra indica, na linguagem
bíblica, sobretudo a transcendência divina. Deus é superior a nós, e
situa-se infinitamente acima de todas as suas criaturas. Mas esta
transcendência não faz dele um soberano indiferente e estranho: quando é
invocado, responde (v. 6). Deus é aquele que pode salvar, o único que pode
libertar a humanidade do mal e da morte. De fato, ele “ama o que é justo” e “garante
o direito, a justiça e a ordem... em Jacó” (v. 4).
3. Sobre o tema da santidade de Deus, os Padres da Igreja fizeram numerosas reflexões, celebrando a inacessibilidade divina. Contudo, este Deus transcendente e santo fez-se próximo do homem. Aliás, como diz Santo Irineu, “habituou-se” ao homem já no Antigo Testamento, manifestando-se com aparições e falando por meio dos profetas, enquanto o homem “se habituava” a Deus aprendendo a segui-lo e a obedecer-lhe. Também Santo Efrém, em um dos seus hinos, realça que, através da Encarnação, “o Santo tomou a sua habitação no seio (de Maria) de forma corpórea, agora Ele toma a sua habitação na mente de maneira espiritual” (Hinos sobre a Natividade, 4, 130). Além disso, pelo dom da Eucaristia, em analogia com a Encarnação, “o Remédio de Vida desceu do alto para habitar naqueles que são dignos d’Ele. Depois de Ele ter entrado, assumiu a sua habitação conosco, assim santificamo-nos a nós próprios dentro d’Ele” (Hinos conservados em armênio, 47, 27.30).
4. Este vínculo profundo
entre “santidade” e proximidade de Deus é desenvolvido também no Salmo 98. De
fato, depois de ter contemplado a perfeição absoluta do Senhor, o salmista
recorda que Deus estava em perene contato com o seu povo através de Moisés e de
Aarão, seus mediadores, como também através de Samuel, seu profeta. Ele falava
e era escutado, castigava os delitos mas também perdoava.
Desta sua presença entre o
povo era sinal “o escabelo dos seus pés”, isto é, o trono da arca do templo de
Sião (vv. 5-8). Por conseguinte, o Deus santo e invisível tornava-se disponível
para o seu povo através de Moisés, o legislador; Aarão, o sacerdote; Samuel, o
profeta. Ele revelava-se em palavras e atos de salvação e de juízo, e estava
presente em Sião através do culto celebrado no templo.
5. Poderemos então dizer que o Salmo 98 se realiza hoje na Igreja, sede da presença de Deus santo e transcendente. O Senhor não se retirou no espaço inacessível do seu mistério, indiferente à nossa história e às nossas expectativas. Ele “vem governar a terra. Governará o mundo com justiça e os povos com equidade” (Sl 97,9).
Deus veio para o meio de nós sobretudo no seu Filho, que se fez um de nós para infundir em nós a sua vida e a sua santidade. Por isso nós agora aproximamo-nos de Deus não com terror, mas com confiança. De fato, temos em Cristo o sumo sacerdote santo, inocente, sem mancha. Ele “pode salvar perpetuamente os que por Ele se aproximam de Deus, vivendo sempre para interceder em seu favor” (Hb 7,25). Então, o nosso cântico enche-se de serenidade e de alegria: exalta o Senhor rei, que habita entre nós, enxugando todas as lágrimas dos nossos olhos (cf. Ap 21,3-4).
"Como o pastor, ele apascenta o seu rebanho" (Is 40,11) (Ícone copta de Jesus, o Bom Pastor) |
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