quinta-feira, 10 de junho de 2021

Catequeses sobre os Salmos (20): Laudes da quinta-feira da III semana

Na série das Catequeses do Papa João Paulo II sobre os salmos e cânticos, chegamos às Laudes da quinta-feira da III semana do Saltério. O Papa refletiu sobre seus textos nas Catequeses de 13 de novembro (Sl 86), 20 de novembro (Is 40,10-17) e 27 de novembro de 2002 (Sl 98).

57. Jerusalém, mãe de todos os povos: Sl 86(87),1-7
13 de novembro de 2002

1. O cântico a Jerusalém, cidade da paz e mãe universal, que agora ouvimos ressoar, encontra-se infelizmente em contraste com a experiência histórica que a cidade está vivendo. Tarefa da oração é semear confiança e gerar esperança.
A perspectiva universal do Salmo 86 pode levar a pensar no hino do Livro de Isaías, que vê convergir para Sião todos os povos para ouvir a Palavra do Senhor e redescobrir a beleza da paz, transformando “as espadas em relhas de arados” e “as suas lanças em foices” (Is 2,2-5; cf. Catequese n. 49). Na realidade, o Salmo coloca-se numa perspectiva muito diferente, a de um movimento que, em vez de convergir para Sião, parte de Sião; o salmista vê em Sião a origem de todos os povos. Depois de ter declarado a primazia da cidade santa, não por méritos históricos ou culturais, mas apenas devido ao amor que Deus tem por ela (vv. 1-3), o Salmo abre-se precisamente a uma celebração deste universalismo que irmana todos os povos.

2. Sião é cantada como mãe de toda a humanidade, não só de Israel. Esta afirmação possui uma audácia extraordinária. O salmista está consciente disto e o faz notar: “Dizem coisas gloriosas da Cidade do Senhor” (v. 3). Como pode uma modesta capital de uma pequena nação ser apresentada como a origem de povos muito poderosos? Por que pode ter, Sião, esta grande pretensão? A resposta é dada na mesma frase: Sião é mãe de toda a humanidade, porque é a “Cidade do Senhor”; por conseguinte, está na base do projeto de Deus.
Todos os pontos cardeais da terra estão em relação com esta mãe: o Egito, o grande estado ocidental; Babilônia, a conhecida potência oriental; Tiro, que personifica o povo comercial do norte, enquanto a Etiópia representa o sul profundo e a Palestina a área central, também ela filha de Sião.
Na repartição de registo espiritual de Jerusalém estão inscritos todos os povos da terra:  é repetida três vezes a frase “Ali nasceram / Nasceu nela” (vv. 4-6). É a expressão jurídica oficial com a qual na época se declarava que uma pessoa tinha nascido numa determinada cidade e, como tal, gozava da plenitude dos direitos civis daquele povo.

"Dizem coisas gloriosas da Cidade do Senhor" (Sl 86,3)
(Visão da cidade de Jerusalém)

3. É sugestivo observar que até as nações consideradas hostis a Israel subiam a Jerusalém e nela eram recebidas não como estrangeiros mas como “familiares”. Aliás, o salmista transforma a procissão destes povos rumo a Sião num cântico coral e numa dança gloriosa: eles encontram as suas “fontes” (v. 7) na cidade de Deus da qual promana uma torrente de água viva que fecunda todo o mundo, em sintonia com quanto foi proclamado pelos profetas (cf. Ez 47,1-12; Zc 13,1; 14,8; Ap 22,1-2).
Todos devem descobrir em Jerusalém as suas raízes espirituais, sentir-se na sua pátria, sentir-se membros da mesma família, abraçar-se como irmãos, que voltaram para a sua casa.

4. O Salmo 86, página de verdadeiro diálogo inter-religioso, reúne a herança universal dos profetas (cf. Is 56,6-7; 60,6-7; 66,21;  4,10-11; Ml 1,11; etc.) e antecipa a tradição cristã que aplica este salmo à “Jerusalém lá de cima”, da qual São Paulo proclama que “é livre e é a nossa mãe” e tem mais filhos do que a Jerusalém terrena (cf. Gl 4,26-27). O Apocalipse fala do mesmo modo quando canta a “Jerusalém que desce do Céu, de junto de Deus” (Ap 21,2.10).
Em continuidade com o Salmo 86 também o Concílio Vaticano II vê na Igreja universal o lugar em que se encontram reunidos “todos os justos a começar por Adão, desde o justo Abel, até ao último eleito”. Ela será “consumada na glória no fim dos séculos” (Lumen Gentium, 2).

5. Esta leitura eclesial do Salmo abre-se, na tradição cristã, a uma nova leitura em chave mariológica. Jerusalém era, para o salmista uma verdadeira “metrópole”, isto é, uma “cidade-mãe”, dentro da qual se encontrava o próprio Senhor (cf. Sf 3,14-18). Sob esta luz, o Cristianismo canta Maria como a Sião viva, em cujo seio é gerado o Verbo encarnado e, por conseguinte, são regenerados os filhos de Deus. As vozes dos Padres da Igreja, de Ambrósio de Milão a Atanásio de Alexandria, de Máximo, o Confessor a João Damasceno, de Cromácio de Aquileia a Germano de Constantinopla, concordam com esta nova leitura cristã do Salmo 86.
Ouçamos agora um mestre da tradição armênia, São Gregório de Narek (950-1010), que no seu Discurso panegírico da bem-aventurada Virgem Maria assim se dirige à Virgem: “Refugiando-nos sob a tua digníssima e poderosa intercessão, estamos protegidos, ó santa Mãe de Deus, encontrando alívio sob a sombra de tua proteção como protegidos por um muro bem fortificado: muro ornamentado, embutido graciosamente por brilhantes puríssimos; muro envolvido de fogo e, por isso, invencível perante os assaltos dos ladrões; muro resplandecente de centelhas, ao qual os cruéis traidores não podem chegar nem aceder; muro circundado por todos os lados, segundo Davi, cujas bases foram lançadas pelo Altíssimo (cf. Sl 86,1.5); muro poderoso da cidade do alto, segundo São Paulo (cf. Gl 4,26; Hb 12,22), onde recebeste todos como habitantes, porque mediante o nascimento corporal de Deus fizestes filhos da Jerusalém lá do alto os filhos da Jerusalém terrena. Por isso, os seus lábios bendizem o teu seio virginal e todos te proclamam morada e templo d’Aquele que é consubstancial ao Pai. Por isso, justamente se adapta bem a ti a frase do profeta: “Foste para nós refúgio e fortaleza, ajuda sempre pronta nas angústias (cf. Sl 45,2)” (Textos marianos do primeiro milênio, IV, Roma, 1991, p. 589).

58. O Bom Pastor é o Deus Altíssimo e Sapientíssimo: Is 40,10-17
20 de novembro de 2002

1. No Livro do grande profeta Isaías, que viveu no século VIII a. C., encontram-se também reunidas as vozes de outros profetas, seus discípulos e sucessores. É o caso daquele que os estudiosos da Bíblia chamaram “o Segundo Isaías”, o profeta do regresso de Israel do exílio na Babilônia, que se verificou no século VI a. C.. A sua obra constitui os capítulos 40-55 do Livro de Isaías e, precisamente, do primeiro destes capítulos é tirado o cântico que entrou na Liturgia das Laudes, há pouco proclamado.
Este cântico é composto por duas partes: os primeiros dois versículos provêm do final de um belíssimo oráculo de consolação que anuncia o regresso dos exilados a Jerusalém, sob a orientação do próprio Deus (Is 40,1-11). Os versículos seguintes formam o começo de um discurso apologético, que exalta, por um lado, a onisciência e a onipotência de Deus e, por outro, submete os fabricantes de ídolos a uma dura crítica.

2. Por conseguinte, no começo do texto litúrgico aparece a figura poderosa de Deus, que volta a Jerusalém precedido dos seus troféus, assim como Jacó tinha voltado à Terra Santa precedido pelos seus rebanhos (cf. Gn 31,17; 32,17). Os troféus de Deus são os hebreus exilados, que Ele arrancou das mãos dos seus conquistadores. Por conseguinte, Deus é apresentado “como um pastor” (v. 11). Muito frequentemente na Bíblia e noutras tradições antigas esta imagem recorda a ideia de orientação e de domínio, mas aqui as características são sobretudo ternas e apaixonadas, porque o pastor é também companheiro de viagem das suas ovelhas (cf. Sl 22). Ele cuida do rebanho, não só alimentando-o e preocupando-se para que não se tresmalhe, mas também inclinando-se com ternura sobre os cordeiros e as ovelhas-mães (v. 11).

3. Concluída a descrição da entrada em cena do Senhor rei e pastor, eis a reflexão sobre o seu agir como Criador do universo. Ninguém pode estar ao seu nível nesta obra grandiosa e extraordinária: não o homem, sem dúvida, e muito menos os ídolos, seres mortos e impotentes. O profeta recorre depois a uma série de interrogações retóricas, nas quais já está incluída a resposta. Elas são pronunciadas numa espécie de processo: ninguém pode competir com Deus e apropriar-se do seu imenso poder ou da sua ilimitada sabedoria.
Ninguém está em condições de medir o imenso universo criado por Deus. O profeta faz compreender como os instrumentos humanos são ridiculamente inadequados para esta tarefa. Por outro lado, Deus foi um artífice solitário; ninguém foi capaz de ajudá-lo ou de aconselhá-lo num projeto tão imenso como o da criação cósmica (vv. 13-14).
Na sua XVIII Catequese batismal, São Cirilo de Jerusalém, com base no nosso cântico, convida a não medir Deus com o metro da nossa limitação humana: “Para ti, homem tão pequeno e frágil, a distância que vai da Gótia à Índia, da Espanha à Pérsia, é grande, mas para Deus, que tem em suas mãos o mundo inteiro, qualquer terra está próxima” (As Catequeses, Roma, 1993, p. 408).

4. Depois de ter celebrado a onipotência de Deus na criação, o profeta traça seu senhorio sobre a história, ou seja, sobre as nações, sobre a humanidade que povoa a terra. Os habitantes dos territórios conhecidos, mas também os das regiões remotas, que a Bíblia chama “ilhas” distantes, são uma realidade microscópica em relação à grandeza infinita do Senhor. As imagens são brilhantes e intensas: os povos são “qual gota d’água na vasilha”, “um grão de areia na balança”, “pesam menos do que o pó” (v. 15).
Ninguém seria capaz de preparar um sacrifício digno deste grandioso Senhor e rei: não seriam suficientes todas as vítimas sacrificais da terra, nem sequer todas as florestas de cedros do Líbano para acender o fogo deste holocausto (v. 16). O profeta conduz o homem à consciência do seu limite face à grandeza infinita e à onipotência soberana de Deus. A conclusão é lapidar: “As nações todas são um nada diante dele, a seus olhos elas são quais se não fossem” (v. 17).

5. Por conseguinte, o fiel é convidado, desde o início do dia, a adorar o Senhor onipotente. São Gregório de Nissa, Padre da Igreja da Capadócia (século IV), meditava assim as palavras do cântico de Isaías: “Todas as vezes que ouvimos pronunciar a palavra ‘onipotente’, pensamos no fato de que Deus mantém unidas todas as coisas na existência, tanto as inteligíveis, como as que pertencem à criação material. De fato, por isso ele mantém o círculo da terra, tem em suas mãos os confins da terra, contém o céu dentro de uma mão cheia, mede a água com a mão, engloba em si mesmo toda a criação intelectual: para que todas as coisas permaneçam na existência, mantidas com força pelo poder que as abraça” (Teologia trinitária, Milão, 1994, p. 625).
São Jerônimo, por seu lado, manifesta-se estupefato em face de outra verdade surpreendente: a de Cristo, que, “era de condição divina... despojou-se a Si mesmo, tomando a condição de servo, tornando-se semelhante aos homens” (Fl 2,6-7). Aquele Deus infinito e onipotente, observa ele, fez-se pequenino e limitado. São Jerônimo contempla-o no presépio de Belém e exclama: “Ele que contém o universo numa mão cheia, ei-lo encerrado numa estreita manjedoura” (Carta 22,39, in: Obras escolhidas I, Turim, 1971, p. 379).

59. Santo é o Senhor nosso Deus: Sl 98(99),1-9
27 de novembro de 2002

1. “Deus é Rei”. Esta aclamação, que abre o Salmo 98, que acabamos de escutar, revela o seu tema fundamental e o seu gênero literário característico. Trata-se de um cântico elevado pelo Povo de Deus ao Senhor, que governa o mundo e a história como soberano transcendente e supremo. Ele relaciona-se com outros hinos análogos - os Salmos 95-97, que já foram objeto da nossa reflexão - que a Liturgia das Laudes coloca como oração ideal da manhã.
Com efeito, o fiel, ao começar o seu dia sabe que não é abandonado a um poder cego e obscuro, nem deixado na incerteza da sua liberdade, nem confiado às decisões alheias, nem dominado pelas vicissitudes da história. Ele sabe que acima de qualquer realidade terrena se eleva o Criador e Salvador na sua grandeza, santidade e misericórdia.

2. São várias as hipóteses feitas pelos estudiosos sobre o uso deste Salmo na Liturgia do Templo de Sião. Contudo, ele tem um tom de louvor contemplativo que se eleva ao Senhor, sentado na glória celeste diante de todos os povos da terra (v. 1). E, contudo, Deus torna-se presente num espaço e no meio da comunidade, isto é em Jerusalém (v. 2), mostrando que é “Deus-conosco”.
São sete os títulos solenes atribuídos a Deus pelo salmista logo nos primeiros versículos: ele é rei, grande, excelso, terrível, santo, forte, justo (vv. 1-4). Mais adiante, Deus é apresentado também com a qualificação de “paciente” (v. 8). A ênfase é posta sobretudo na santidade de Deus: de fato, por três vezes é repetido quase em forma de antífona que “Ele é santo” (vv. 3.5.9). A palavra indica, na linguagem bíblica, sobretudo a transcendência divina. Deus é superior a nós, e situa-se infinitamente acima de todas as suas criaturas. Mas esta transcendência não faz dele um soberano indiferente e estranho: quando é invocado, responde (v. 6). Deus é aquele que pode salvar, o único que pode libertar a humanidade do mal e da morte. De fato, ele “ama o que é justo” e “garante o direito, a justiça e a ordem... em Jacó” (v. 4).

3. Sobre o tema da santidade de Deus, os Padres da Igreja fizeram numerosas reflexões, celebrando a inacessibilidade divina. Contudo, este Deus transcendente e santo fez-se próximo do homem. Aliás, como diz Santo Irineu, “habituou-se” ao homem já no Antigo Testamento, manifestando-se com aparições e falando por meio dos profetas, enquanto o homem “se habituava” a Deus aprendendo a segui-lo e a obedecer-lhe. Também Santo Efrém, em um dos seus hinos, realça que, através da Encarnação, “o Santo tomou a sua habitação no seio (de Maria) de forma corpórea, agora Ele toma a sua habitação na mente de maneira espiritual” (Hinos sobre a Natividade, 4, 130). Além disso, pelo dom da Eucaristia, em analogia com a Encarnação, “o Remédio de Vida desceu do alto para habitar naqueles que são dignos d’Ele. Depois de Ele ter entrado, assumiu a sua habitação conosco, assim santificamo-nos a nós próprios dentro d’Ele” (Hinos conservados em armênio, 47, 27.30).

4. Este vínculo profundo entre “santidade” e proximidade de Deus é desenvolvido também no Salmo 98. De fato, depois de ter contemplado a perfeição absoluta do Senhor, o salmista recorda que Deus estava em perene contato com o seu povo através de Moisés e de Aarão, seus mediadores, como também através de Samuel, seu profeta. Ele falava e era escutado, castigava os delitos mas também perdoava.
Desta sua presença entre o povo era sinal “o escabelo dos seus pés”, isto é, o trono da arca do templo de Sião (vv. 5-8). Por conseguinte, o Deus santo e invisível tornava-se disponível para o seu povo através de Moisés, o legislador; Aarão, o sacerdote; Samuel, o profeta. Ele revelava-se em palavras e atos de salvação e de juízo, e estava presente em Sião através do culto celebrado no templo.

5. Poderemos então dizer que o Salmo 98 se realiza hoje na Igreja, sede da presença de Deus santo e transcendente. O Senhor não se retirou no espaço inacessível do seu mistério, indiferente à nossa história e às nossas expectativas. Ele “vem governar a terra. Governará o mundo com justiça e os povos com equidade” (Sl 97,9).
Deus veio para o meio de nós sobretudo no seu Filho, que se fez um de nós para infundir em nós a sua vida e a sua santidade. Por isso nós agora aproximamo-nos de Deus não com terror, mas com confiança. De fato, temos em Cristo o sumo sacerdote santo, inocente, sem mancha. Ele “pode salvar perpetuamente os que por Ele se aproximam de Deus, vivendo sempre para interceder em seu favor” (Hb 7,25). Então, o nosso cântico enche-se de serenidade e de alegria: exalta o Senhor rei, que habita entre nós, enxugando todas as lágrimas dos nossos olhos (cf. Ap 21,3-4).

"Como o pastor, ele apascenta o seu rebanho" (Is 40,11)
(Ícone copta de Jesus, o Bom Pastor)

Fonte: Santa Sé (13 de novembro, 20 de novembro e 27 de novembro de 2002).

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