quinta-feira, 24 de junho de 2021

Catequeses sobre os Salmos (22): Laudes do sábado da III semana

Concluindo suas Catequeses sobre os salmos e cânticos das Laudes da III semana do Saltério, o Papa João Paulo II refletiu sobre os textos do sábado dessa semana nos dias 15 de janeiro (Sl 118,145-152), 29 de janeiro (Sb 9,1-6.9-11) e 05 de fevereiro de 2003 (Sl 116).

63. Meditação sobre a Palavra de Deus na Lei: Sl 118(119),145-152
15 de janeiro de 2003

1. No nosso já longo itinerário à luz dos salmos que a Liturgia das Laudes nos propõe, chegamos a uma estrofe, precisamente a décima nona da maior oração do Saltério, o Salmo 118 (cf. Catequese n. 21). Trata-se de uma parte do grande cântico alfabético: através de um jogo estilístico, o salmista distribui a sua obra em vinte e duas estrofes, que correspondem à sequência das vinte e duas letras do alfabeto hebraico. Cada estrofe tem oito versículos, sendo o seu início marcado por palavras hebraicas que começam todas com uma mesma letra do alfabeto. A que nós escutamos agora é uma estrofe cadenciada pela letra hebraica qôf, e representa o orante que apresenta a Deus a sua intensa vida de fé e de oração (vv. 145-152).

2. A invocação ao Senhor não conhece repouso porque é uma resposta contínua à proposta permanente da Palavra de Deus. Com efeito, por um lado, multiplicam-se os verbos da oração: Clamo, suplico, imploro: ouvi a minha voz. Por outro, é exaltada a Palavra do Senhor que propõe “os decretos, os ensinamentos, a palavra, as promessas, o juízo, a lei, os preceitos e os testemunhos de Deus. Conjuntamente, formam uma constelação que é como a “estrela polar” da fé e da confiança do salmista. Mas a oração revela-se como um diálogo, que se abre quando já é noite e o alvorecer ainda não despontou (v. 147) e continua durante todo o dia, sobretudo nas dificuldades da vida. De fato, o horizonte é por vezes sombrio e atormentado: “Meus opressores se aproximam com maldade; como estão longe, ó Senhor, de vossa lei!” (v. 150). Mas o orante tem uma certeza inabalável, a proximidade de Deus com a sua Palavra e com a sua graça: “Vós estais perto, ó Senhor, perto de mim” (v. 151). Deus não abandona o justo nas mãos dos perseguidores.

3. Neste ponto, tendo sido delineada a mensagem simples, mas incisiva, da estrofe do Salmo 118 - uma mensagem adequada para o início de um dia - remetemo-nos, para a nossa meditação, a um grande Padre da Igreja, Santo Ambrósio, que no seu Comentário ao Salmo 118 dedica 44 parágrafos para explicar precisamente a estrofe que ouvimos.
Retomando o convite espiritual para cantar o louvor divino desde as primeiras horas da manhã, ele detém-se sobretudo nos versículos 147-148: “Chego antes que a aurora e vos imploro... Os meus olhos antecipam as vigílias”. Nesta declaração do salmista, Ambrósio intui a ideia de uma oração constante, que abrange todos os tempos: “Quem implora ao Senhor, comporte-se como se não conhecesse a existência de qualquer tempo particular a ser dedicado às súplicas do Senhor, mas mantenha sempre aquela atitude de súplica. Tanto quando comemos, como quando bebemos, anunciamos Cristo, rezamos a Cristo, pensamos em Cristo, falamos de Cristo! Cristo esteja sempre no nosso coração e nos nossos lábios!” (Comentário ao Salmo 118/2: Saemo 10, p. 297).

"Chego antes que a aurora e vos imploro,
e espero confiante em vossa lei" (Sl 118,147)

Depois, ao narrar os versículos no momento específico da manhã e aludindo também à expressão do Livro da Sabedoria que prescreve que “se antecipe o sol para dar graças” a Deus (Sb 16,28), Ambrósio comenta: “De fato, seria grave se os raios do sol nascente te surpreendessem a preguiçar na cama em vistoso desaforo e se uma luz mais forte te ferisse os olhos sonolentos, ainda imersos no entorpecimento. Para nós, é uma acusação um espaço tão prolongado de tempo passado sem a mínima prática de piedade e sem a oferta de um sacrifício espiritual, numa noite ociosa” (ibid., op. cit., p. 303).

4. Depois, Santo Ambrósio, ao contemplar o sol que surge, como fizera em outro de seus célebres hinos “ao cantar do galo” - o Aeterne rerum conditor, que entrou na Liturgia das Horas [nas Laudes do domingo nas semanas I e III do Saltério] - interpela-nos assim: “Porventura, tu, homem, não sabes que todos os dias tens uma dívida para com Deus, das primícias do teu coração e da tua voz? A messe amadurece todos os dias; todos os dias amadurece o seu fruto. Portanto, corre ao encontro do sol que nasce... O sol da justiça quer ser antecipado e nada mais espera... Se antecipares o nascer do sol, receberás Cristo como luz. Será precisamente Ele a primeira luz que brilhará no segredo do teu coração. Será precisamente Ele que... fará resplandecer para ti a luz da manhã nas horas da noite, se refletires sobre as palavras de Deus. Enquanto tu refletes, alvorece... Apressa-te, de manhã cedo, vai à igreja e recebe como homenagem as primícias da tua devoção. E depois, se o compromisso do mundo te chama, nada te impede de dizer: ‘Os meus olhos antecipam-se às vigílias da noite para meditar sobre as tuas promessas’, e com a consciência tranquila cumprirás os teus afazeres. Como é bom começar pelos hinos e cânticos, pelas bem-aventuranças que lês no Evangelho! Como é propício que desça sobre ti, para abençoar-te, as palavras do Senhor; que tu, ao repetires, cantando, as bênçãos do Senhor, sintas o compromisso de praticar algumas virtudes, se desejas entrever também dentro de ti algo que te faça sentir merecedor daquela bênção divina!” (ibid., op. cit., pp. 303.309.311.313).
Aceitemos também nós o apelo de Santo Ambrósio e todas as manhãs abramos o olhar sobre a vida quotidiana, sobre as suas alegrias e pesadelos, invocando Deus para que esteja próximo de nós e nos oriente com a sua palavra, que infunde serenidade e graça.

64. Senhor, dai-me a sabedoria: Sb 9,1-6.9-11
29 de janeiro de 2003

1. O cântico agora proposto apresenta-nos a maior parte de uma ampla oração colocada nos lábios de Salomão, que na tradição bíblica é considerado o rei justo e o sábio por excelência. Ela nos é oferecida no capítulo nono do Livro da Sabedoria, um escrito do Antigo Testamento composto em grego, talvez em Alexandria do Egito, no limiar da Era cristã. Nele se entrevê uma expressão do Judaísmo vivaz e aberto da Diáspora hebraica no mundo helênico.
São três substancialmente os percursos de pensamento teológico que este livro nos propõe: a imortalidade feliz como meta final da existência do justo (cap. 1–5); a sabedoria como dom divino e orientação da vida e das escolhas do fiel (cap. 6–9); a história da salvação, sobretudo o acontecimento fundamental do êxodo da opressão egípcia, como sinal daquela luta entre bem e mal, que termina numa plena salvação e redenção (cap. 10–19).

2. Salomão viveu uma dezena de séculos antes do autor inspirado do Livro da Sabedoria, mas foi considerado como o arquétipo e o artífice ideal de toda a reflexão sapiencial posterior. A oração em forma de hino colocada nos seus lábios é uma invocação solene dirigida ao “Deus dos pais” e “Senhor bondoso e compassivo” (v. 1), para que conceda o dom preciosíssimo da sabedoria.
É evidente no nosso texto a alusão à cena narrada no Primeiro Livro dos Reis, quando Salomão, nos princípios do seu reino, sobe ao lugar alto de Gabaon, onde se levantava um santuário, e, depois de ter celebrado um grandioso sacrifício, tem durante a noite um sonho-revelação. Ao próprio pedido de Deus, que o convida a pedir-lhe um dom, ele responde: “Dai, pois, ao vosso servo um coração sábio, capaz de julgar o vosso povo e discernir entre o bem e o mal” (1Rs 3,9).

3. A inspiração oferecida por esta invocação de Salomão é desenvolvida no nosso cântico numa série de apelos dirigidos ao Senhor, para que conceda o tesouro insubstituível que é a sabedoria.
No trecho extraído da Liturgia das Laudes encontramos estes dois pedidos: “Dai-me vossa sabedoria, ó Senhor... Enviai-a lá de cima, do alto céu, mandai-a vir de vosso trono glorioso” (vv. 4.10). Sem este dom tem-se a consciência de estar sem orientação, quase privados de uma “estrela polar” que nos oriente nas escolhas morais da existência: “sou homem fraco e de existência muito breve, incapaz de discernir o que é justo. Até mesmo o mais perfeito dentre os homens não é nada, se não tem vosso saber” (vv. 5-6).
É fácil descobrir que esta “sabedoria” não é a simples inteligência ou habilidade prática, mas antes a participação na própria mente de Deus que com a sua sabedoria “o ser humano modelou” (v. 2). Por conseguinte, é a capacidade de penetrar no sentido profundo do ser, da vida e da história, indo além da superfície das coisas e dos acontecimentos para descobrir o seu significado último, querido pelo Senhor.

4. A sabedoria é como uma lâmpada que ilumina as nossas opções morais de cada dia e nos conduz pelo reto caminho, para “saber o que agrada a vossos olhos, o que é reto e conforme às vossas ordens” (v. 9). Por isso, a Liturgia nos faz rezar com as palavras do Livro da Sabedoria no início de um dia, precisamente para que Deus, com a sua sabedoria, esteja ao nosso lado e nos assista em nossos trabalhos quotidianos (v. 10), revelando-nos o bem e o mal, o que é justo e o que é injusto.
Guiados pela Sabedoria divina nós entramos confiantes no mundo. Apegamo-nos a ela, amando-a com o amor esponsal a exemplo de Salomão que, sempre segundo o Livro da Sabedoria, confessava: “Eu a amei (a sabedoria) e busquei desde a minha juventude, procurei tomá-la como esposa e enamorei-me dos seus encantos” (Sb 8,2).

5. Os Padres da Igreja identificaram em Cristo a Sabedoria de Deus, seguindo o exemplo de São Paulo, que definia Cristo “o poder e a sabedoria de Deus” (1Cor 1,24).
Concluamos agora com uma oração de Santo Ambrósio, que se dirigia assim a Cristo: “Ensina-me as palavras ricas de sabedoria, porque tu és a Sabedoria! Abre o meu coração, tu que abriste o Livro! Abre aquela porta que está no céu, porque tu és a Porta! Se entrarmos através de Ti, não nos enganaremos, porque, quem entra na habitação da Verdade, não se pode enganar” (Comentário ao Salmo 118/1: Saemo 9, p. 377).

65. Louvor ao Deus misericordioso: Sl 116(117),1-2
05 de fevereiro de 2003

1. Dando continuidade à nossa meditação sobre os textos da Liturgia das Laudes, voltamos a considerar um salmo que já foi proposto (cf. Catequese n. 23), o mais breve de todas as composições do Saltério. É o Salmo 116, que acabamos de escutar, uma espécie de pequeno hino, análogo a uma jaculatória que se alarga num louvor universal ao Senhor. O que se proclama é expresso através de duas palavras fundamentais: amor e fidelidade (v. 2).
Com estes termos, o salmista explica sinteticamente a aliança entre Deus e Israel, realçando a profunda relação, leal e confiante, que existe entre o Senhor e o seu povo. Aqui ouvimos o eco das palavras que o próprio Deus tinha anunciado no Sinai, apresentando-se diante de Moisés: “O Senhor! O Senhor! Deus misericordioso e clemente, vagaroso em encolerizar-se, cheio de bondade e de fidelidade” (Ex 34,6).

2. Apesar da sua brevidade e essencialidade, o Salmo 116 realça o núcleo da oração, que consiste no encontro e no diálogo vivo e pessoal com Deus. Neste acontecimento, o mistério da Divindade revela-se como fidelidade e amor.
O salmista acrescenta um aspecto particular da oração: a experiência orante deve irradiar-se no mundo, transformando-se em testemunho junto de quem não compartilha a nossa fé. Com efeito, no início, o horizonte alarga-se a “todas as gentes” e aos “povos todos” (v. 1) para que, diante da beleza e da alegria da fé, também eles sejam conquistados pelo desejo de conhecer, encontrar e louvar a Deus.

3. Num mundo tecnológico, debilitado por um eclipse do sagrado, numa sociedade a que agrada certa autossuficiência, o testemunho do orante é como um raio de luz na escuridão.
No início, ele pode somente despertar a curiosidade, mas depois pode levar a pessoa ponderada a interrogar-se sobre o sentido da oração e, por fim, pode suscitar um crescente desejo de viver esta experiência. Por isso, a oração nunca é um acontecimento solitário, mas tende a dilatar-se, a ponto de envolver o mundo inteiro.

4. Agora, nós acompanhamos o Salmo 116 com as palavras de um grande Padre da Igreja do Oriente, Santo Efrém, o Sírio, que viveu no século IV. No décimo quarto dos seus Hinos sobre a Fé, ele exprime o desejo de nunca permitir que cesse o louvor a Deus, empenhando também “todos aqueles que compreendem a verdade” divina. Eis o seu testemunho:
“Como poderá a minha harpa, Senhor, deixar de te louvar?
Como poderia eu ensinar a infidelidade à minha língua?
O teu amor deu confiança à minha confusão,
mas a minha vontade ainda é ingrata” (Estrofe 9).
“É justo que o homem reconheça a tua divindade,
é justo que os seres celestiais louvem a tua humanidade;
os seres celestiais surpreenderam-se ao verem como te aniquilaste a ti mesmo,
e os seres terrestres admiraram-se ao verem como te exaltaste a ti próprio”
(Estrofe 10: A Harpa do Espírito, Roma, 1999, pp. 26-28).

5. Em outro dos seus hinos (Hinos de Nisibi, 50), Santo Efrém confirma este seu compromisso de louvor incessante, e exprime o seu motivo no amor e na compaixão divina por nós, precisamente como sugere o nosso Salmo.
“Em ti, Senhor, do silêncio possa a minha boca fazer brotar o louvor.
Que as nossas bocas não sejam pobres no louvor,
que os nossos lábios não sejam pobres ao confessarem;
possa o teu louvor vibrar em nós!” (Estrofe 2).
“Porque é no nosso Senhor que a raiz da nossa fé está plantada;
embora distante, todavia Ele está próximo na fusão do amor.
Que as raízes do nosso amor estejam ligadas a Ele,
que a medida completa da sua compaixão seja derramada sobre nós”
(Estrofe 6: ibid., pp. 77.80).

"Dai-me vossa sabedoria, ó Senhor" (Sb 9,4)
(O sonho de Salomão - Luca Giordano, séc. XVII) 

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Fonte: Santa Sé (15 de janeiro, 29 de janeiro e 05 de fevereiro de 2003).

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