Dando
continuidade às nossas postagens com as Catequeses do Papa João Paulo II sobre os salmos e cânticos das Laudes, seguem as meditações sobre os textos da quarta-feira
da III semana do Saltério, nos dias 23 de outubro (Sl 85), 30 de outubro (Is
33,13-16) e 06 de novembro de 2002 (Sl 97).
54. Oração do pobre nas
dificuldades: Sl 85(86),1-17
23 de outubro de 2002
1. O Salmo 85, que agora foi
proclamado e que será objeto da nossa reflexão, oferece-nos uma sugestiva
definição do orante. Ele apresenta-se a Deus com estas palavras: sou “vosso
servo” e “filho da vossa serva” (v. 16). Sem dúvida, a expressão pode pertencer
à linguagem do cerimonial de corte, mas também era usada para indicar o servo
adotado como filho do chefe de uma família ou de uma tribo. Sob esta luz, o
salmista, que se define também “amigo” do Senhor (v. 2), sente que está ligado
a Deus por um vínculo não só de obediência, mas também de familiaridade e de
comunhão. Por isso a sua súplica está impregnada de confiante abandono e de
esperança.
Seguimos agora esta oração
que a Liturgia das Laudes nos
propõe no início de um dia que, presumivelmente, apresentará não só
compromissos e fadigas, mas também incompreensões e dificuldades.
2. O Salmo começa com um
apelo intenso, que o orante dirige ao Senhor confiando no seu amor (vv. 1-7).
No final, ele exprime de novo a certeza de que o Senhor é um Deus “clemente e fiel,
paciente”, grande no “amor, paciência e perdão” (v. 15; cf. Ex 34,6). Estas afirmações reiteradas
e convictas de confiança revelam uma fé intacta e pura, que se abandona ao Senhor
“bom e clemente... perdão para quem vos invoca” (v.
5).
No centro do Salmo eleva-se
um hino, que alterna sentimentos de agradecimento com uma profissão de fé nas
obras de salvação que Deus realiza para os povos (vv. 8-13).
3. Contra qualquer tentação
idolátrica, o orante proclama a unicidade absoluta de Deus (v. 8). Depois é
expressa a esperança audaciosa que um dia “todos os povos” adorarão o Deus de
Israel (v. 9). Esta perspectiva maravilhosa encontra o seu cumprimento na
Igreja de Cristo, porque ele convidou os seus Apóstolos a ensinar “todas as
nações” (Mt 28,19).
Ninguém pode oferecer uma libertação total, a não ser o Senhor, do qual todos
dependem como criaturas e ao qual nos devemos dirigir em atitude de adoração (v.
9). De fato, Ele manifesta no cosmos
e na história as suas obras admiráveis, que testemunham a sua senhoria absoluta
(v. 10).
Neste ponto o salmista
recorta um espaço para se apresentar diante de Deus com uma pergunta intensa e
pura: “Ensinai-me os vossos caminhos, e na vossa verdade andarei; meu coração
orientai para vós: que respeite, Senhor, vosso nome!” (v. 11). É bonito este
pedido para poder conhecer a vontade de Deus, e esta invocação para poder obter
o dom de “um coração simples”, semelhante ao de uma criança, que sem segundas
intenções nem cálculos se confia plenamente ao Pai para se encaminhar pelas
veredas da vida.
"As nações que criastes virão adorar e louvar vosso nome" (Sl 85,9) (Mosaico do Pentecostes - Basílica de São Marcos em Veneza) |
4. Surge então nos lábios do fiel o louvor ao Deus misericordioso, que não o deixa precipitar no desespero e na morte, nem no mal nem no pecado (vv. 12-13; Sl 15,10-11).
O Salmo 85 é um texto querido ao Judaísmo, que o inseriu na Liturgia de uma das solenidades mais importantes, o Yôm Kippur ou dia da expiação. O Livro do Apocalipse, por sua vez, tomou dele um versículo (v. 9), colocando-o na gloriosa Liturgia celeste dentro do “cântico de Moisés, servo de Deus, e do cântico do Cordeiro”: “Todas as nações virão prostrar-se diante de Ti”, e o Apocalipse acrescenta: “pois os teus juízos foram manifestados” (Ap 15,4).
Santo Agostinho dedicou ao nosso Salmo um longo e apaixonado comentário nos seus Comentários aos Salmos, transformando-o num cântico a Cristo e ao Cristianismo. A tradução latina, no v. 2, conforme com a versão grega dos Setenta, em vez de “amigo” ou “fiel” usa o termo “santo”: “Guarda-me porque sou santo”. Na realidade, só Cristo é santo. Todavia, raciocina Santo Agostinho, também o cristão pode aplicar a si estas palavras: “Sou santo, porque tu me santificaste; porque o recebi [este título], e não porque o tinha eu mesmo; porque tu me concedeste, não porque eu o mereci”. Por conseguinte, “digam também todos os cristãos, ou melhor, diga-o todo o Corpo de Cristo, grite-o em toda a parte, enquanto sofre as tribulações, as várias tentações, os numerosos escândalos: ‘Guarda a minha alma, porque sou santo! Salva o teu servo, meu Deus, que espera em ti’. Eis que este santo não é soberbo, porque confia no Senhor” (vol. II, Roma, 1970, p. 1251).
5. O cristão santo abre-se à universalidade da Igreja e reza com o salmista: “As nações que criastes virão adorar e louvor vosso nome” (v. 9). E Agostinho comenta: “Todas as nações no único Senhor são um só povo e constituem a unidade. Assim como existe a Igreja e as igrejas, e as igrejas são a Igreja, assim aquele ‘povo’ é o mesmo que os povos. Inicialmente, eram vários povos, numerosas nações; agora é um só povo. Por que um só povo? Porque há uma só fé, uma só esperança, uma só caridade, e uma única expectativa. Por fim, porque não deveria ser um só povo, se a pátria é uma só? A pátria é o céu, a pátria é Jerusalém. E este povo está espalhado do Oriente até ao Ocidente, do norte até ao mar, nas quatro partes do mundo inteiro” (ibid., p. 1269).
Sob esta luz universal a nossa oração litúrgica transforma-se num suspiro de louvor e num cântico de glória ao Senhor em nome de todas as criaturas.
55. Deus julgará com justiça: Is 33,13-16
30 de outubro de 2002
1. Entre os cânticos bíblicos, que se entrelaçam com os Salmos na Liturgia das Laudes, encontramos um breve texto que hoje proclamamos. Ele é tirado de um capítulo do Livro do Profeta Isaías, o trigésimo terceiro da sua grande e admirável coleção de oráculos divinos.
O cântico começa com os versículos anteriores aos que foram citados (vv. 10-12), com o anúncio de uma entrada poderosa e gloriosa de Deus sobre a história humana: “Agora eu me levantarei, diz o Senhor, agora me erguerei e vou subir” (v. 10). As palavras de Deus destinam-se aos que estão “longe” e aos que estão “perto”, isto é, a todas as nações da terra, mesmo às mais distantes, e a Israel, o povo que está “perto” do Senhor devido à aliança (v. 13).
Em outra passagem do Livro de Isaías é afirmado: “Porei nos seus lábios este cântico: Paz àquele que está longe e àquele que está perto, diz o Senhor, e eu o sararei” (Is 57,19). Agora, ao contrário, as palavras do Senhor tornam-se duras, assumem a tonalidade do julgamento sobre o mal dos que estão “longe” e dos que estão “perto”.
2. De fato, logo a seguir, difunde-se o medo entre os habitantes de Sião nos quais se escondem pecado e impiedade (v. 14). Eles estão conscientes de viver ao lado do Senhor que reside no templo, que escolheu caminhar com eles na história e transformou-se em “Emanuel”, “Deus-conosco” (cf. Is 7,14). Pois bem, o Senhor justo e santo não pode tolerar a impiedade, a corrupção e a injustiça. Como “fogo que devora” e “eterna chama” (v. 14), Ele se lança contra o mal para o aniquilar.
Já no capítulo 10, Isaías admoesta: “A luz de Israel será um fogo, o seu Santo, uma chama, que abrasará e devorará” (v. 17). Também o salmista cantava: “Tal como... ao contato com o fogo, se derrete a cera, assim se dissipam os ímpios na presença do Senhor” (Sl 67,3). No âmbito da economia veterotestamentária, se quer dizer que Deus não é indiferente face ao bem e ao mal, mas mostra a sua indignação e a sua cólera em relação à maldade.
3. O nosso cântico não termina com esta cena sombria de julgamento. Aliás, reserva a parte mais ampla e intensa à santidade acolhida e vivida como sinal da conversão e reconciliação com Deus que se verificou. Na esteira de alguns Salmos, como o 14 e o 23, que realçam as condições requeridas pelo Senhor para viver em comunhão jubilosa com Ele na Liturgia do Templo, Isaías enumera seis compromissos morais para o verdadeiro crente, fiel e justo (v. 15), que pode habitar, sem sofrer dano algum, junto do fogo divino, que para ele é fonte de benefícios.
O primeiro compromisso consiste em “caminhar na justiça”, ou seja, considerar a Lei divina como lâmpada que ilumina o caminho da vida. O segundo consiste em falar de modo leal e sincero, sinal de relações sociais corretas e autênticas. Como terceiro compromisso, Isaías propõe que se rejeite “um benefício extorquido”, combatendo assim a opressão dos pobres e a riqueza injusta.
Depois, o crente compromete-se a condenar a corrupção política e judicial recusando “um presente que suborna”, imagem sugestiva que indica a recusa de doações feitas para desviar a aplicação das leis e o curso da justiça.
4. O quinto compromisso é expresso com o gesto significativo de “fechar os ouvidos” quando são feitas propostas sanguinolentas, atos de violência a serem perpetrados. O sexto e último compromisso é expresso com uma imagem que, inicialmente, nos desorienta, porque não corresponde ao nosso modo de falar. Quando falamos de “fechar um olho”, queremos dizer: “fingir não ver para não ter a obrigação de intervir”; mas o profeta diz que o homem honesto “cerra os olhos para o mal não contemplar”, no sentido de uma recusa completa de qualquer contato com o mal.
São Jerônimo, no seu Comentário a Isaías, desenvolve da seguinte forma o conceito, tendo em consideração o conjunto do trecho: “Qualquer forma de iniquidade, de opressão e de injustiça, é decisão de sangue: e mesmo se não mata com a espada, contudo mata com a intenção. ‘E fecha os olhos para não ver o mal’: é feliz a consciência que não ouve e não contempla o mal! Por conseguinte, quem se comporta assim, habitará ‘no excelso’, ou seja, no reino dos céus ou na altíssima gruta da fortíssima Pedra, em Jesus Cristo” (In Isaiam prophetam, 10,33: PL 24,367). Desta forma, Jerônimo introduz-nos na compreensão justa daquele “fechar os ouvidos” recordado pelo profeta: trata-se de um convite a recusar absolutamente qualquer forma de conivência com o mal. Como é fácil observar, são chamados em causa os sentidos principais do corpo: mãos, pés, olhos, ouvidos e língua são envolvidos no agir moral humano.
5. Pois bem, quem opta por seguir este comportamento honesto e justo poderá ter acesso ao Templo do Senhor, onde irá receber a segurança daquele bem-estar exterior e interior que Deus oferece a quem está em comunhão com Ele. O profeta emprega duas imagens para descrever este êxito jubiloso (v. 16): a segurança em fortalezas incorruptíveis e a abundância do pão e da água, símbolo de vida próspera e feliz.
A tradição interpretou espontaneamente o sinal da água como imagem do Batismo (cf., por exemplo, a Carta de Barnabé 11,5), enquanto o pão se transfigurou para os cristãos em sinal da Eucaristia. É quanto se lê, por exemplo, no comentário de São Justino mártir, o qual vê nas palavras de Isaías uma profecia do “pão” eucarístico, “memória” da morte redentora de Cristo (cf. Diálogo com Trifão, Paulinas, 1988, p. 242).
56. Deus, vencedor como juiz: Sl 97(98),1-9
06 de novembro de 2002
1. O Salmo 97, há pouco proclamado, pertence a um gênero de hinos que já encontramos durante o itinerário espiritual, que estamos a percorrer à luz do Saltério.
Trata-se de um hino ao Senhor, rei do universo e da história (v. 6). Ele define-se como “cântico novo” (v. 1), que na linguagem bíblica significa um cântico perfeito, pleno, solene, acompanhado por um complexo musical de festa. De fato, além do cântico coral recordam-se “as canções alegres” da harpa e da cítara (v. 5), dos clarins e trombetas (v. 6), mas também uma espécie de aplauso cósmico (vv. 7-8).
Ressoa depois, repetidamente, o nome do “Senhor” (seis vezes), indicado como “nosso Deus” (v. 3). Por conseguinte, Deus está no centro do cenário com toda a sua majestade, enquanto realiza a salvação na história e é aguardado para “julgar” o mundo e os povos (v. 9). O verbo hebraico que indica o “julgamento” significa também “governo”: por isso espera-se a ação eficaz do Soberano de toda a terra, que trará paz e justiça.
2. O Salmo abre-se com a proclamação da intervenção divina no âmbito da história de Israel (vv. 1-3). As imagens da “mão direita” e do “braço forte e santo” recordam o êxodo, a libertação da escravidão do Egito (v. 1). A aliança com o povo da eleição é, ao contrário, recordada pelas duas grandes perfeições divinas: “amor” e “fidelidade” (v. 3).
Estes sinais de salvação são testemunhados “às nações” e aos “confins do universo” (vv. 2-3), para que toda a humanidade seja atraída por Deus salvador e se abra à sua palavra e à sua obra salvífica.
3. O acolhimento reservado ao Senhor que intervém na história distingue-se por um louvor coral: além da orquestra e dos cânticos do templo de Sião (vv. 5-6), participa nele também o universo, que constitui uma espécie de templo cósmico.
São quatro os cantores deste enorme coro de louvor. O primeiro é o mar com tudo o que encerra, que parece fazer como que de baixo contínuo a esse grandioso cântico (v. 7). Seguem-no a terra e todo o mundo (vv. 4.7) com todos os seus habitantes, unidos numa harmonia solene. A terceira personificação é a dos rios que, sendo considerados como os braços do mar, parece que, com o seu fluxo rítmico, batem as mãos num aplauso (v. 8). Por fim, eis as montanhas que parecem dançar de alegria diante do Senhor, apesar de serem as criaturas mais maciças e imponentes (v. 8; Sl 28,6; 113,6).
Por conseguinte, um coro colossal que tem uma única finalidade: exaltar o Senhor, rei e juiz justo. O final do Salmo, como se dizia, apresenta de fato Deus “que vem julgar (e governar) a terra inteira... com justiça e equidade” (v. 9).
Eis a grande esperança e a nossa invocação: “Venha a nós o Vosso reino!”, um reino de paz, de justiça e de serenidade, que reconcilie a harmonia originária da criação.
4. Neste Salmo, o Apóstolo Paulo reconheceu com profunda alegria uma profecia da obra de Deus no mistério de Cristo. Paulo serviu-se do v. 2 para exprimir o tema da sua grande Carta aos Romanos: no Evangelho “foi revelada a justiça de Deus” (cf. Rm 1,17), “foi manifestada” (cf. Rm 3,21).
A interpretação feita por Paulo confere ao Salmo maior plenitude de sentido. Lido na perspectiva do Antigo Testamento, o Salmo proclama que Deus salva o seu povo e que todas as nações, ao verem isto, ficam admiradas. Ao contrário, na perspectiva cristã, Deus realiza a salvação em Cristo, filho de Israel; todas as nações o veem e são convidadas a beneficiar-se desta salvação, porque o Evangelho “é poder de Deus para a salvação de todos os que creem, primeiro do judeu e, depois, do grego”, ou seja, do pagão (Rm 1,16). Agora, “os confins do universo” não só “contemplaram a salvação do nosso Deus” (Sl 97,3), mas receberam-na.
5. Nesta perspectiva, Orígenes, escritor cristão do III século, em um texto retomado depois por São Jerônimo, interpreta o “cântico novo” do Salmo como uma celebração antecipada da novidade cristã do Redentor crucificado. Sigamos então o seu comentário que entrelaça o cântico do salmista com o anúncio evangélico: “Cântico novo é o Filho de Deus que foi crucificado e isto jamais se tinha ouvido. Uma realidade nova deve ter um cântico novo. ‘Cantai ao Senhor um cântico novo’. Aquele que sofreu a Paixão, na realidade é um homem; mas vós cantais ao Senhor: suportou a Paixão como homem, mas salvou como Deus”. Orígenes continua: Cristo “fez milagres entre os judeus: curou paralíticos, purificou leprosos, ressuscitou mortos. Mas também outros profetas fizeram isto. Transformou poucos pães num grande número, e deu de comer a um povo sem número. Mas também Eliseu fez isto. Então, o que fez de novo para merecer um cântico novo? Quereis saber o que fez de novo? Deus morreu como homem, para que os homens tivessem a vida; o Filho de Deus foi crucificado, para nos elevar até ao céu” (74 homilias sobre o Livro dos Salmos, Milão, 1993, pp. 309-310).
"Cantai ao Senhor Deus um canto novo..." (Sl 97,1) (Vitral da Catedral de Worcester) |
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