As
duas últimas Catequeses do Papa João Paulo II sobre os salmos em 2002 e a
primeira de 2003 foram dedicadas às Laudes da sexta-feira da III semana do
Saltério: 04 de dezembro (Sl 50) e 11 de dezembro de 2002 (Jr 14,17-21) e 08 de
janeiro de 2003 (Sl 99).
60. Tende piedade, ó meu Deus: Sl 50(51),3-21
04 de dezembro de 2002
1. Em cada semana a Liturgia das Laudes propõe de novo o Salmo 50, o célebre Miserere. Já o meditamos outras vezes nalgumas das suas partes (cf. Catequeses nn. 18 e 39). Também agora nos detemos de modo particular numa parte deste grandioso pedido de perdão: os versículos 12-16.
Antes de tudo, é significativo notar que, no original hebraico, ressoa três vezes a palavra “espírito”, pedido a Deus como dom e acolhido pela criatura arrependida do seu pecado: “Dai-me de novo um espírito decidido... não retireis de mim o vosso Santo Espírito... confirmai-me com espírito generoso” (vv. 12-14). Quase se poderia falar - recorrendo a um termo litúrgico - de uma “epiclese”, ou seja, de uma tríplice invocação do Espírito que, como na criação pairava sobre as águas (cf. Gn 1,2), agora penetra na alma do fiel infundindo nova vida e elevando-o do reino do pecado para o céu da graça.
2. Os Padres da Igreja, no “espírito” invocado pelo salmista, veem a presença eficaz do Espírito Santo. Assim, Santo Ambrósio está convencido de que se trata do único Espírito Santo “que fermentava com fervor nos profetas, foi dado [por Cristo] aos Apóstolos e foi unido ao Pai e ao Filho no sacramento do Batismo” (O Espírito Santo, I, 4, 55: Saemo 16, p. 95). A mesma convicção é expressa por outros Padres como Dídimo, o Cego, de Alexandria do Egito, e Basílio de Cesareia, nos respectivos tratados sobre o Espírito Santo (Dídimo o Cego, O Espírito Santo, Roma, 1990, p. 59; Basílio de Cesareia, O Espírito Santo, IX, 22, Roma, 1993, p. 117s).
E ainda Santo Ambrósio, observando que o salmista fala da alegria da qual a alma está invadida quando recebe o Espírito generoso e poderoso de Deus, comenta: “A alegria e a felicidade são frutos do Espírito e o Espírito soberano é aquilo sobre o que nós, principalmente, nos baseamos. Portanto, quem é fortalecido com o Espírito soberano não é submetido pela escravidão, não sabe ser escravo do pecado, não hesita, não vagueia aqui e acolá, não é incerto nas escolhas mas, alicerçado na rocha, está firme em pés que não vacilam” (Apologia do Profeta Davi a Teodósio Augusto, 15, 72: Saemo 5, p. 129).
3. Com esta tríplice menção do “espírito”, o Salmo 50, depois de ter descrito nos versículos precedentes a prisão obscura da culpa, abre-se sobre a razão luminosa da graça. É uma grande mudança, comparável a uma nova criação: como nas origens Deus tinha insuflado o seu espírito na matéria e dera origem à pessoa humana (cf. Gn 2,7), assim agora o mesmo Espírito divino re-cria (v. 12), renova, transfigura e transforma o pecador arrependido, abraça-o de novo (v. 13) e o faz participante da alegria da salvação (v. 14). Agora o homem, animado pelo Espírito divino, encaminha-se pelas estradas da justiça e do amor, como se diz noutro Salmo: “Ensinai-me a cumprir a Vossa vontade, porque sois o meu Deus. Seja guiado pelo Vosso Espírito bondoso em terra plana” (Sl 142,10).
"Criai em mim um coração que seja puro, dai-me de novo um espírito decidido" (Sl 50,12) |
4. Tendo experimentado este renascimento, o orante transforma-se em testemunha; promete a Deus que ensinará “aos pecadores” os caminhos do bem (v. 15), de maneira que eles possam, como o filho pródigo, voltar à casa do Pai. Do mesmo modo, Santo Agostinho, depois de ter percorrido os caminhos tenebrosos do pecado, tinha depois sentido a necessidade nas suas Confissões de confirmar a liberdade e a alegria da salvação.
Quem conheceu o amor
misericordioso de Deus torna-se uma testemunha fervorosa, sobretudo em relação
a quantos ainda estão aprisionados nas redes do pecado. Pensamos na figura de
Paulo que, iluminado por Cristo no caminho de Damasco, se torna um incansável
missionário da graça divina.
5. Pela última vez o orante
olha para o seu passado obscuro e brada a Deus: “Da morte como pena,
libertai-me, e minha língua exaltará vossa justiça!” (v. 16). [A “morte” também pode ser traduzida aqui
como “sangue”], interpretado na Escritura de vários modos. A alusão, posta
nos lábios do rei Davi, refere-se à morte de Urias, o marido de Betsabé, a
mulher que tinha sido objeto da paixão do soberano. Em sentido mais
geral, a invocação indica o desejo de purificação do mal, da violência, e
do ódio, sempre presentes no coração humano com força tenebrosa e maléfica. Mas
agora, os lábios do fiel, purificados do pecado, cantam ao Senhor.
E o trecho do Salmo 50, que hoje comentamos, termina precisamente com o empenho de proclamar a “justiça” de Deus. A palavra “justiça” aqui, como muitas vezes na linguagem bíblica, não designa propriamente a ação punitiva de Deus em relação ao mal, mas antes indica a reabilitação do pecador, porque Deus manifesta a sua justiça ao fazer dos pecadores homens justos (cf. Rm 3,26). Deus não sente prazer pela morte do mau, mas deseja que desista do seu modo de se comportar e de viver (cf. Ez 18,23).
61. Lamentação em tempo de fome e de guerra: Jr 14,17-21
11 de dezembro de 2002
1. O cântico que o profeta Jeremias, do seu horizonte histórico, eleva ao céu, é de amargura e de sofrimento. O ouvimos ressoar agora como invocação, enquanto a Liturgia das Laudes o propõe no dia em que se comemora a morte do Senhor, a sexta-feira. O contexto que dá origem a esta lamentação é representado por um flagelo que muitas vezes atinge a terra do Próximo Oriente: a seca. Mas a este drama natural o profeta junta outro não menos aterrador, a tragédia da guerra: “Se eu saio para os campos, eis os mortos à espada; se eu entro na cidade, eis as vítimas da fome!” (v. 18). Infelizmente, a descrição é tragicamente atual em muitas regiões do nosso planeta.
2. Jeremias entra em cena com
o rosto molhado de lágrimas: o seu choro é um choro ininterrupto pela “filha do
seu povo”, isto é, por Jerusalém. De fato, segundo um símbolo bíblico muito
conhecido, a cidade é representada com uma imagem feminina, “a filha de Sião”.
O profeta participa profundamente na “calamidade” e na “ferida mortal” do seu
povo (v. 17). Muitas vezes as suas palavras estão marcadas pelo sofrimento e
pelas lágrimas, porque Israel não se deixa envolver na mensagem misteriosa que
o sofrimento encerra em si. Noutra página, Jeremias exclama: “Se não ouvirdes
isto, a minha alma chorará em segredo por causa do vosso orgulho, e os meus
olhos chorarão amargamente, por causa da deportação do rebanho do Senhor” (Jr 13,17).
3. Devemos procurar o motivo da invocação dilacerante do profeta, como se dizia, em dois acontecimentos trágicos: a espada e a fome, isto é, a guerra e a carestia (v. 18). Por conseguinte, encontramo-nos numa situação histórica atormentada e é significativo o retrato do profeta e do sacerdote, os guardas da Palavra do Senhor, os quais “perambulam pela terra sem saber o que se passa” (ibid.).
A segunda parte do cântico (vv. 19-21) já não é uma lamentação individual, na primeira pessoa do singular, mas uma súplica coletiva dirigida a Deus: “Por que feristes vosso povo de um mal que não tem cura?” (v. 19). Além da espada e da fome, há, de fato, uma tragédia maior, a do silêncio de Deus, que já não se revela e parece ter-se fechado no seu céu, quase desgostoso pelo agir da humanidade. As perguntas que lhe são dirigidas tornam-se, por isso, tensas e explícitas em sentido tipicamente religioso: “Rejeitastes, por acaso, a Judá inteiramente? Por acaso a vossa alma desgostou-se de Sião?” (v. 19). Agora, sentimo-nos sozinhos e abandonados, privados de paz, de salvação e de esperança. O povo, abandonado a si mesmo, encontra-se quase perdido e invadido pelo terror.
Não é porventura esta
solidão existencial a fonte profunda de tanta insatisfação, com que nos
deparamos também nos nossos dias? Tanta insegurança e tantas reações desconsideradas
têm a sua origem no fato de terem abandonado Deus, rochedo de salvação.
4. Neste ponto verifica-se a
mudança: o povo se volta para Deus e dirige-lhe uma intensa oração. Reconhece
antes de tudo o próprio pecado com uma breve mas sentida confissão da
culpa: “Conhecemos nossas culpas... pois pecamos contra vós!” (v. 20). O
silêncio de Deus era, por conseguinte, provocado pela recusa do homem. Se
o povo se converte e volta para o Senhor, também Deus se mostrará disponível
para ir ao seu encontro e para o abraçar.
No final, o profeta usa duas
palavras fundamentais: a “recordação” e a “aliança” (v. 21). Deus é convidado
pelo seu povo a “recordar-se”, ou seja, a retomar a continuidade da sua
benevolência generosa, manifestada tantas vezes no passado com intervenções
decisivas para salvar Israel. Deus é convidado a recordar-se de que Ele se uniu
ao seu povo através de uma aliança de fidelidade e de amor. Precisamente devido
a esta aliança, o povo pode esperar que o Senhor há de intervir para o libertar
e salvar. O compromisso por Ele assumido, a honra do seu “nome”, o fato da sua
presença no templo, “o trono da sua glória”, estimulam Deus depois do juízo
pelo pecado e pelo silêncio a estar de novo próximo do seu povo para lhe dar de
novo vida, paz e alegria.
Por conseguinte, juntamente
com os israelitas, também nós podemos ter a certeza de que o Senhor não
nos abandona para sempre, mas, depois de todas as provas purificadoras, Ele
volta a fazer “resplandecer a Sua face sobre ti e é benevolente... e concede a
paz”, como se diz na bênção sacerdotal referida no Livro dos Números (Nm 6,25-26).
5. Em conclusão, podemos comparar à súplica de Jeremias uma comovedora exortação aos cristãos de Cartago dirigida por São Cipriano, Bispo daquela cidade no século III. Em tempos de perseguição, São Cipriano exorta os seus fiéis a implorar ao Senhor. Esta súplica não é idêntica àquela do profeta, porque não contém uma confissão dos pecados, não sendo a perseguição um castigo pelos pecados, mas uma participação na Paixão de Cristo. De todo modo, trata-se de uma súplica também premente como a de Jeremias. “Imploremos o Senhor - diz São Cipriano -, com sinceridade e em harmonia, sem nunca deixar de pedir e confiantes de obter. Imploremos-lhe gemendo e chorando, como é justo que implorem os que são colocados entre os desventurados que choram e outros que temem as desventuras, entre os numerosos prostrados pelo massacre e os poucos que permanecem em pé. Peçamos que nos seja restituída depressa a paz, que sejamos ajudados nos nossos esconderijos e nos perigos, que se cumpra o que o Senhor se digna mostrar aos seus servos: a restauração da sua Igreja, a segurança da nossa salvação eterna, o céu azul depois da chuva, a luz depois das trevas, a tranquilidade depois das tempestades e os redemoinhos, a ajuda piedosa do seu amor de pai, as grandezas que conhecemos da majestade divina” (Epístola 11, 8, in: S. Pricoco; M. Simonetti, La preghiera dei cristiani, Milão, 2000, pp. 138-139).
62. A alegria dos que entram no templo: Sl 99(100),2-5
08 de janeiro de 2003
1. No clima de alegria e de
festa que se prolonga nesta última semana do Tempo de Natal, desejamos retomar
a nossa meditação sobre a Liturgia das Laudes. Detemo-nos hoje
no Salmo 99, que acabamos de proclamar, o qual constitui um jubiloso convite a
louvar o Senhor, pastor do seu povo.
Toda a composição é marcada
por sete imperativos que estimulam a comunidade fiel a celebrar, no culto, o
Deus do amor e da aliança: aclamai,
servi, ide a Ele, sabei, entrai, dai-lhe graças, bendizei. Podemos pensar numa procissão
litúrgica, que está para entrar no Templo de Sião e realizar um rito em honra
do Senhor (cf. Sl 14; 23; 94).
Entrelaçam-se no Salmo
algumas palavras características para exaltar o vínculo de aliança que foi
estabelecido entre Deus e Israel. Antes de tudo, sobressai a afirmação de uma
pertença total a Deus: “Ele mesmo nos fez e somos seus” (v.
3), afirmação cheia de orgulho e, ao mesmo tempo, de humildade, dado que Israel
se apresenta como as ovelhas do seu “rebanho” (ibid).
Encontramos em outros textos
a expressão da relação correspondente: “Porque Ele é o nosso Deus” (cf. Sl 94,7). Depois, encontramos o
léxico da relação de amor, a “misericórdia” e a “fidelidade”, juntamente com a
“bondade” (cf. Sl 99,5), que no original hebraico
são formuladas precisamente com palavras típicas do pacto que une Israel ao seu
Deus.
2. É feita também a
enumeração das coordenadas do espaço e do tempo. Com efeito, por um lado,
apresenta-se diante de nós toda a terra com os seus habitantes envolvida no
louvor a Deus (v. 2); depois, o horizonte limita-se à área sagrada do templo de
Jerusalém com os seus pátios e as suas portas (v. 4), onde se encontra reunida
a comunidade orante. Por outro lado, faz-se referência ao tempo nas suas três
dimensões fundamentais: o passado da criação (“Ele nos fez”, v. 3), o presente
da aliança e do culto (“nós somos seu povo e seu rebanho”, ibid.) e, por fim, o futuro em
que a fidelidade misericordiosa do Senhor se expande “para sempre”,
revelando-se “eterna” (v. 5).
3. Detenhamo-nos agora
brevemente nos sete imperativos que constituem o longo convite a louvar a Deus
e que ocupam quase todo o Salmo (vv. 2-4) antes de encontrar, no último
versículo, a sua motivação na exaltação de Deus, contemplado na sua identidade
íntima e profunda.
O primeiro apelo consiste na
aclamação jubilosa que envolve toda a terra no cântico de louvor ao Criador.
Quando rezamos, devemos sentir-nos em sintonia com todos aqueles que, em
línguas e formas diversas rezam, exaltando o único Senhor. Mas, como diz o
profeta Malaquias, “do nascente ao poente o meu Nome é grande entre as nações e
em todos os lugares é oferecido ao meu Nome um sacrifício de incenso e uma
oferenda pura. Porque é grande entre as nações o meu Nome, diz o Senhor dos
exércitos” (Ml 1,11).
4. Seguem-se, depois, alguns
apelos de tipo litúrgico e ritual: “servir”, “ir a Ele” e “entrar por suas
portas”, as portas do templo. São verbos que, fazendo também alusão às
audiências reais, descrevem os vários gestos que os fiéis realizam quando
entram no santuário de Sião para participar na oração comunitária. Depois do
cântico cósmico, celebra-se a Liturgia por parte do povo de Deus, as “ovelhas
do seu rebanho”, a sua “propriedade entre todos os povos” (Ex 19,5).
O convite a “entrar por suas
portas dando graças” e “com hinos de louvor” recorda-nos o trecho de Os mistérios de Santo Ambrósio, onde são descritos
os batizados que se aproximam do altar: “O povo purificado aproxima-se do altar
de Deus dizendo: ‘Entrarei no altar de Deus, o Deus da minha alegria jubilosa’ (Sl 42,4). De fato, abandonando
os despojos do erro arraigado, o povo renovado na sua juventude como uma águia,
apressa-se para participar neste convite celeste. Portanto ele vem e, ao ver o
sacrossanto altar convenientemente preparado, exclama: ‘O Senhor é o meu
pastor, nada me falta. Em verdes prados me faz descansar e conduz-me às águas
refrescantes’ (Sl 22,1-2)” (Obras
dogmáticas III, 17, pp.
158-159).
5. Os outros imperativos,
que adornam o Salmo, propõem de novo atitudes religiosas fundamentais do
orante: saber/reconhecer, dar graças/louvar, bendizer. O verbo reconhecer exprime o conteúdo da
profissão de fé no único Deus. Com efeito, devemos proclamar que “o Senhor, só
Ele, é Deus” (v. 3), combatendo qualquer
forma de idolatria, de soberba e de poder humano que se opõe a Ele.
O fim dos outros verbos,
isto é, louvar e bendizer, é igualmente
“o nome do Senhor” (v. 4), ou seja, a sua pessoa, a sua presença eficaz e
salvadora.
Sob esta luz o Salmo
alcança, no final, uma solene exaltação de Deus, que é uma espécie de profissão
de fé: o Senhor é bom e a sua fidelidade nunca nos abandona, porque Ele está
sempre pronto a amparar-nos com o seu amor misericordioso. Com esta confiança,
o orante abandona-se ao abraço do seu Deus: “Provai e vede quão suave é o
Senhor! - diz noutra parte o salmista - Feliz o homem que tem n’Ele o seu
refúgio” (Sl 33,9; cf. 1Pd 2,3).
"Por amor de vosso nome, ó Senhor, não nos deixeis" (Jr 14,20) (Jeremias lamenta a destruição de Jerusalém - Rembrandt) |
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