“O cálice da bênção, o
cálice que abençoamos, não é comunhão com o sangue de Cristo?” (1Cor 10,16).
Com estas palavras começa a 2ª leitura da Solenidade de Corpus Christi no Ano A. O “nome
próprio” dessa celebração, como especificou a reforma litúrgica
do Concílio Vaticano II, é Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo.
Não obstante, alguns calendários próprios conservam a Festa do Preciosíssimo Sangue de Jesus no dia 01 de julho. Aqui, como fizemos com a devoção ao Sagrado Coração de Jesus,
apresentaremos sua história, enquanto na próxima postagem refletiremos brevemente sobre a sua teologia.
Cristo dando o próprio Sangue às suas ovelhas (Vicente López Portaña - Museo de Bellas Artes de Valencia) |
1. Raízes da devoção
A “pré-história” da devoção ao Sangue de Jesus encontra-se
no crescimento do culto à Paixão do Senhor na Idade Média, sobretudo a partir
dos séculos XII e XIII.
Como vimos em nossa postagem sobre o culto às Cinco Chagas do Senhor, essa ênfase se deve a dois fatores: a peregrinação aos locais da Paixão em Jerusalém no
contexto das Cruzadas e a reação à heresia dos cátaros, que negavam o valor
salvífico da Morte de Cristo.
Assim, embora encontremos referências ao Sangue de Cristo
nos Padres da Igreja, este ganha destaque nos textos dos místicos do final da
Idade Média, como São Bernardo de Claraval (†1153), São Boaventura (†1274) e Santa
Catarina de Sena (†1380).
Em relação à Liturgia, vale citar a célebre oração “Anima Christi” (Alma de Cristo). Os primeiros quatro versos dessa oração,
composta por um autor anônimo no início do século XIV, rezam:
Anima Christi,
sanctifica me. Corpus Christi, salva me. Sanguis Christi, inebria me. Aqua
lateris Christi, lava me.
Alma de Cristo, santificai-me. Corpo de Cristo, salvai-me.
Sangue de Cristo, inebriai-me. Água do lado de Cristo, lavai-me [1].
2. Desenvolvimento da
devoção no século XIX
Uma vez que a devoção às Chagas se centra no Coração de Jesus a
partir do século XVI, o culto ao Preciosíssimo Sangue ganharia um novo impulso somente
no início do século XIX.
Em 1808 o presbítero Francesco Albertini (†1819) fundou a
Arquiconfraria do Preciosíssimo Sangue junto à Basílica de São Nicolau no
Cárcere (San Nicola in Carcere) em
Roma.
A ele se atribui também a composição da “Coroa do
Preciosíssimo Sangue” (Coroncina del
Preziosissimo Sangue), prática devocional com leituras e orações em honra
de sete efusões do sangue de Jesus: na circuncisão, na agonia do Getsêmani, na
flagelação, na coroação de espinhos, no caminho do Calvário, na crucificação e
no golpe da lança.
No mesmo ano da fundação da Confraria foi ordenado outro
sacerdote romano: Gaspare del Bufalo (†1837), isto é, São Gaspar de Búfalo. Com o apoio do Papa Pio VII, o Padre Gaspar
fundou a Congregação dos Missionários do Preciosíssimo Sangue (Congregatio Missionariorum Pretiosissimi
Sanguinis) no dia 15 de agosto de 1815.
São Gaspar de Búfalo, "Apóstolo do Preciosíssimo Sangue" (Canonizado em 1954) |
Em 1834, inspirada por São Gaspar, Santa Maria De Mattias (†1866) fundou uma Congregação feminina para promover essa mesma
devoção, as Irmãs Adoradoras do Sangue de Cristo (Sorores Adoratrices Pretiossimi Sanguinis).
Santa Maria De Mattias (Canonizada em 2003) |
Outro fruto da atuação do grande “Apóstolo do Preciosíssimo
Sangue” foi o próprio Papa Pio IX (†1878). Atendendo ao pedido do então
Superior dos Missionários do Preciosíssimo Sangue, Padre Giovanni Merlini, no
dia 10 de agosto de 1849 o Papa promulga o Decreto Redempti sumus, instituindo a Festa do Preciosíssimo Sangue de
Jesus para toda a Igreja de Rito Romano.
Como testemunha a Catholic
Encyclopedia, a festa já era celebrada em alguns lugares na sexta-feira da
IV semana da Quaresma. Com efeito, os três hinos da Liturgia das Horas dessa
celebração, de autoria anônima, remontam ao século XVII:
Matinas: Ira justa conditoris;
Laudes: Salvete Christi
vulnera;
Vésperas: Festivis resonent
compita vocibus.
[No futuro analisaremos esses textos, como temos feito com os demais hinos da Liturgia das Horas].
Pio IX fixa a festa no domingo seguinte ao dia 30 de junho,
isto é, no primeiro domingo de julho. Isto se deve a uma vicissitude histórica:
no final de 1848, durante os conflitos pela dissolução dos Estados Pontifícios,
o Papa é exilado de Roma, refugiando-se em Gaeta. No dia 30 de junho do ano
seguinte a questão é solucionada (embora apenas temporariamente), e Pio IX pode
retornar a Roma. Assim, a partir de 1850 a festa passaria a ser celebrada em
recordação do retorno do Papa.
Papa Pio IX |
O mesmo Pio IX estendeu para toda a Igreja a Festa do Sagrado Coração de Jesus em 1856.
Posteriormente, com as reformas litúrgicas realizadas pelo
Papa São Pio X (†1914) no sentido de revalorizar a centralidade do domingo, a
festa foi transferida para o dia 01 de julho. O Cardeal Schuster, em seu Liber Sacramentorum, recorda que esse
dia é também a oitava da Natividade de São João Batista (24 de junho), que anunciou o Cristo como “Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” (Jo 1,29).
Em 1933, durante o Jubileu Extraordinário da Redenção convocado para celebrar o XIX Centenário da Morte de
Cristo (estimada no ano 33), o Papa Pio XI (†1939) eleva a festa a “rito duplo de primeira classe”, o
equivalente a “Solenidade”.
Dentre os Romanos Pontífices, porém, o grande promotor da
devoção ao Preciosíssimo Sangue foi São João XXIII (†1963):
no dia 30 de junho de 1960 o “Papa Bom” promulgou a Carta Apostólica Inde a primis sobre o culto do
Preciosíssimo Sangue de nosso Senhor Jesus Cristo.
Neste breve documento (com apenas 14 parágrafos), além de
incentivar a devoção ao Preciosíssimo Sangue e recomendar a Comunhão sob as
duas espécies, do pão e do vinho (tema que será retomado no Concílio Vaticano
II), o Papa aprovou oficialmente a Ladainha do Preciosíssimo Sangue de Jesus.
O texto da Ladainha, com 24 invocações, havia sido elaborado
pela Sagrada Congregação dos Ritos em 24 de fevereiro do mesmo ano [1], a
partir de textos publicados em livros devocionais do início do século XX, como
atesta o próprio Papa no início da Carta Apostólica, recordando rezar a
Ladainha em sua infância (Inde a primis,
n. 2).
3. O culto ao Preciosíssimo
Sangue hoje
A reforma do Concílio Vaticano II, como afirmamos no início
dessa postagem, suprimiu a Festa do Preciosíssimo Sangue, unindo-a à Festa de Corpus Christi (Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo).
Não obstante, alguns calendários próprios conservaram a
festa do dia 01 de julho: os Missionários do Preciosíssimo Sangue (com textos próprios), os Passionistas e a Basílica do Getsêmani, em Jerusalém.
Além disso, o atual Missal
Romano contém a Missa votiva do “Preciosíssimo Sangue de nosso Senhor Jesus
Cristo”, que pode ser celebrada para favorecer a devoção dos fiéis nos
dias em que essas Missas são permitidas.
Essa Missa, porém, substitui as orações da antiga festa do
dia 01 de julho por outras de nova composição, enfatizando o mistério do Sangue
de Cristo como fonte de misericórdia e salvação.
Vale recordar ainda que o Lecionário III indica várias
opções de leituras à escolha para essa Missa. Sobre essas leituras, porém,
falaremos em nossa próxima postagem, ao apresentar os fundamentos bíblicos e teológicos dessa devoção.
Rosas vermelhas sobre a "Pedra da Agonia" no Getsêmani (Gesto realizado duas vezes ao ano: na Quinta-feira Santa e no dia 01 de julho) |
Confira também:
Notas:
[1] Indicada no Missal
Romano como oração de ação de graças após a Missa (p. 1020).
[2] Acta Apostolicae Sedis - Commentarium Officiale, volume 52, 1960, pp. 412-413.
Referências:
HENRY, Hugh. Salvete
Christi Vulnera. The Catholic Encyclopedia, vol. 13, 1912. Disponível em: New Advent.
JOÃO XXIII (PAPA). Carta Apostólica Inde a primis sobre o culto do Preciosíssimo Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo. 30 de junho de 1960.
MÜLLER, Ulrich. Feast
of the Most Precious Blood. The
Catholic Encyclopedia, vol. 12, 1911. Disponível em: New Advent.
SCHUSTER, Cardeal Alfredo Ildefonso. Liber sacramentorum, v. VII: Le Feste dei Santi dalla Quaresima
all'ottava dei Principi degli Apostoli. Torino-Roma: Marietti, 1930, pp.
317-320.
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