quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

A história do culto a São João Batista: Natividade e Martírio

“João veio como testemunha, para dar testemunho da luz” (Jo 1,7).

Em nossa postagem anterior começamos a estudar a história do culto litúrgico a São João Batista, o último e maior dos Profetas, analisando sua presença nas celebrações do Ano Litúrgico. Nesta postagem analisaremos suas celebrações específicas: a Solenidade da Natividade e a Memória do Martírio.


2. As celebrações de São João Batista

a) Solenidade da Natividade (24 de junho): Missa da Vigília e Missa do Dia

Ao contrário da maioria dos santos, cujo culto sempre começou em caráter local, o amplo testemunho dos Evangelhos a respeito de João Batista garantiu-lhe muito cedo na história da Igreja um culto universal.

A partir do século IV foram diversas as igrejas dedicadas em honra deste santo na Itália, no norte da África e em Sebaste, na Palestina, onde estariam suas relíquias. Devido à sua atuação no Batismo do Senhor, era comumente tomado como patrono dos batistérios, que nesta época costumavam ser construídos em um edifício próprio (geralmente uma torre octogonal). Por exemplo, o batistério da Basílica do Latrão (San Giovanni in Fonte al Laterano) [1].

Imagem do Batista sob o altar da Basílica do Latrão

O Cardeal Schuster, em seu Liber Sacramentorum, atesta ainda que João era particularmente venerado pelos monges, uma vez que o Evangelho menciona sua habitação isolada no deserto (Lc 1,80; Mc 1,4-6).

A partir da fixação da Solenidade do Natal do Senhor no dia 25 de dezembro em meados do século IV, foi possível fixar a Solenidade da Natividade de São João Batista seis meses antes, à luz das palavras do anjo na Anunciação (Lc 1,36).

Porém, como no Império Romano os últimos dias do mês eram contados de maneira regressiva, a Natividade de João Batista é celebrada no dia 24 de junho e não no dia 25 (uma vez que junho tem 30 dias, e não 31 como dezembro). Assim, o nascimento do Senhor é celebrado “octavo kalendas ianuarii” (oito dias antes do início de janeiro) e o nascimento do Precursor “octavo kalendas iulii” (oito dias antes do início de julho).

A data está associada também ao solstício de verão no hemisfério norte, assim como o Natal ao solstício de inverno: a partir do solstício de verão os dias ficam mais curtos - recordando as palavras do Batista: “É preciso que Ele cresça e eu diminua” (Jo 3,30) - enquanto que a partir do solstício de inverno os dias ficam mais longos: é a vitória de Cristo, o “sol nascente” (Lc 1,78).

Ícone do nascimento de João Batista

A celebração do nascimento do Batista é testemunhada por Santo Agostinho em seus sermões 287 a 293. Neste último, lido no Ofício das Leituras da Solenidade, Agostinho destaca que ele é o único santo, além do próprio Cristo, cujo nascimento é celebrado (a Natividade de Maria, de origem oriental, seria acolhida mais tarde no Ocidente):

“A Igreja celebra o nascimento de João como um acontecimento sagrado. Dentre os nossos antepassados, não há nenhum cujo nascimento seja celebrado solenemente. Celebramos o de João, celebramos também o de Cristo” [2].

O Sacramentário Veronense (séc. VI) traz cinco formulários de Missa para este dia, sendo o primeiro para a vigília. A terceira Missa era intitulada Ad fontem, sendo provavelmente celebrada no batistério e talvez acompanhada do Batismo de crianças (não, porém, em Roma, onde o Batismo era administrado apenas na Vigília Pascal).

No Sacramentário Gregoriano (séc. VII) encontramos três Missas, quase equivalentes aos formulários do Natal: a Missa da vigília, a Missa da noite e a Missa do dia.

Ao longo do tempo surgiram também tradições populares ligadas à festa, como o acender de uma fogueira na noite da vigília. Provavelmente, na origem, o gesto era parte de um festival agrícola que celebrava o solstício de verão (no hemisfério norte) [3].

Posteriormente surgiu a lenda de que, devido à sua mudez, Zacarias se retirou para o deserto em oração durante a gravidez de Isabel. Esta, então, manda acender uma fogueira para anunciar-lhe o nascimento do filho [4]. O Ritual Romano antes da reforma litúrgica continha um formulário para esta bênção da fogueira.


Também vale recordar o hino Ut queant laxis, que teria sido composto por Paulo, o Diácono (séc. VIII), monge beneditino de Montecassino, que até hoje consta na Liturgia das Horas da Solenidade. Segundo a lenda, ele deveria cantar o Exsultet, mas foi acometido de afonia. Compôs então o hino, esperando que, assim como o nascimento de João devolveu a voz a Zacarias, o mesmo acontecesse com ele.

Posteriormente, os versos da primeira estrofe do hino inspiraram o monge Guido d’Arezzo (séc. XI) a nomear as sete notas musicais (substituindo o Ut por Do, inicial de Domine, Senhor, para que todas as notas terminassem em vogais, e formando a nota Si com as iniciais de Sancte Ioannes, São João):

Ut queant laxis / Resonare fibris / Mira gestorum / Famuli tuorum / Solve polluti / Labii reatum / Sancte Ioannes.
(Para que teus servos possam ressoar claramente a maravilha dos teus feitos, limpe nossos lábios impuros, ó São João).


A reforma litúrgica do Concílio Vaticano II manteve as duas Missas da Solenidade da Natividade de São João Batista: a Missa da Vigília, celebrada a partir da tarde do dia 23, e a Missa do Dia, celebrada no dia 24 [5].

Foram conservadas também as mesmas orações e leituras do Missal de 1962, apenas acrescida a segunda leitura e um prefácio próprio, a ser usado em todas as celebrações do Batista, intitulado “A missão do Precursor” [6]. O texto, retomando elementos de antigos sacramentários, sintetiza o seu papel na história da salvação:

“Proclamamos, hoje, as maravilhas que operastes em São João Batista, precursor de vosso Filho e Senhor nosso, consagrado como o maior entre os nascidos de mulher. Ainda no seio materno, ele exultou com a chegada do Salvador da humanidade e seu nascimento trouxe grande alegria. Foi o único dos profetas que mostrou o Cordeiro redentor. Batizou o próprio autor do Batismo, nas águas assim santificadas e, derramando seu sangue, mereceu dar o perfeito testemunho de Cristo” (Missal Romano, p. 601).

“Profeta e precursor da vinda de Cristo, não te podemos louvar dignamente, nós que te veneramos com amor; pois, por teu venerável e glorioso nascimento, a esterilidade de tua mãe e o mutismo de teu pai cessaram, enquanto a Encarnação do Filho de Deus era anunciada ao mundo”
(Tropárion da Natividade de São João Batista no Rito Bizantino) [7].

b) Memória do Martírio (29 de agosto)

Além da Solenidade do seu nascimento, a Igreja celebra também a Memória da morte de São João Batista, chamada no Missal de 2002 de “Paixão” (In Passione), traduzida para o português do Brasil como “Martírio”.

Esta celebração ocorre no dia 29 de agosto. A escolha da data está relacionada à dedicação da igreja de São João Batista em Sebaste, na Palestina, ocorrida no final do século IV, onde - segundo a tradição - era o seu túmulo.

De uma celebração local, a festa se espalhou para outras igrejas, sendo celebrada a partir do século V na França e na Espanha. A festa é atestada pelo Sacramentário Gelasiano (séc. VIII) e é particularmente solene no Rito Ambrosiano (Arquidiocese de Milão).

Ícone de João com a sua cabeça decepada
(As asas como de anjo indicam sua missão de mensageiro)

No Rito Hispano-Mozárabe (Arquidiocese de Toledo), porém, esta celebração está inscrita no dia 24 de setembro, consoante uma tradição medieval de que os grandes personagens da história da salvação teriam vivido um número exato de dias, a contar da sua concepção. Assim, a morte de João é aqui celebrada nove meses antes do seu nascimento.

Na reforma litúrgica do Concílio Vaticano II, boa parte dos textos desta celebração foram conservados, sendo outros de nova composição. Trata-se de uma Memória particularmente solene com leituras próprias na Missa e vários textos na Liturgia das Horas: hino das Vésperas (Praecéssor almus grátiae, de São Beda, o Venerável), antífonas, leituras, preces e até o uso da salmodia das solenidades nas Laudes [8].

“A memória do justo deve ser enaltecida, mas a ti, ó Precursor, basta-te o testemunho do Senhor. Em verdade, tu foste o maior dos profetas, pois foste julgado digno de batizares nas águas aquele que eles tinham apenas anunciado. Também combateste com valentia pela verdade, feliz em anunciares, mesmo aos cativos do inferno, a aparição de Deus feito homem, aquele que tira o pecado do mundo e se compadece de nós”
(Tropárion da Decapitação de São João Batista no Rito Bizantino) [9].

c) Outras celebrações de São João Batista:

Na III edição do Missal Romano (2002), ainda em processo de tradução para o Brasil, está prevista também a Missa votiva de São João Batista. Esta, porém, não traz nenhum acréscimo, uma vez que as orações são tomadas da Missa da Vigília da Natividade e as leituras de uma das Missas da Natividade (da Vigília ou do Dia) ou do Martírio.

Cabe mencionar ainda a Festa da Concepção de São João Batista, celebrada nove meses antes da Natividade, no dia 24 de setembro, como vimos acima. Segundo Righetti, esta celebração já fez parte de calendários próprios de Nápoles, da Espanha e da Inglaterra. Atualmente continua a ser celebrada no Rito Bizantino.

No Rito Romano um “resquício” desta festa é a comemoração no Martirológio de Zacarias e Isabel no dia 23 de setembro, como vimos em nossa postagem sobre os santos do Novo Testamento.

João com Zacarias e Isabel

“Rejubila, estéril, que não davas à luz! Eis que concebeste aquele que foi verdadeiramente um raio de sol, aquele que devia iluminar o mundo inteiro que sofria de cegueira. Exulta de alegria, Zacarias, grita sem temor: aquele que vai nascer é Profeta do Altíssimo!”
(Tropárion da Festa da Concepção de São João Batista no Rito Bizantino) [10].

Notas:
[1] Dedicada originalmente apenas em honra do Santíssimo Salvador, a Catedral de Roma tomou posteriormente como “co-padroeiros” os Santos João Batista e João Evangelista.

[2] AGOSTINHO. Sermão 293. in: OFÍCIO DIVINO. Liturgia das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição típica. São Paulo: Paulus, 1999, v. III, p. 1374 (A Liturgia da Solenidade vai da p. 1369 até a p. 1381).

[3] A atual edição italiana do Ritual de Bênçãos (Benedizionale) traz uma bênção de fogueira com sugestões de leituras para as quatro estações, com associações cristãs: o outono relacionado à Natividade de Maria, o inverno ao Natal, a primavera a São José e o verão a São João Batista.

[4] Outras versões afirmam que a fogueira tinha como objetivo avisar Maria, o que é forçado mesmo para a lenda, dado que a distância de Nazaré a Ain Karem é de 144 quilômetros. Além disso, o Evangelho indica que Maria ficou três meses com Isabel (Lc 1,56), que já estava no sexto mês de gestação. Portanto, no tempo do parto Maria estaria ainda com Isabel, sendo a fogueira um aviso para Zacarias no deserto uma versão mais plausível da lenda.

[5] Cumpre notar que apenas oito solenidades possuem atualmente uma Missa da Vigília: cinco solenidades do Senhor: Páscoa, Natal, Pentecostes, Epifania, Ascensão (as duas últimas acrescentadas na III edição do Missal); uma solenidade da Virgem Maria (Assunção); e duas dos santos (além de João Batista, São Pedro e São Paulo).

[6] Além de São João Batista, os únicos outros santos que possuem um prefácio próprio são: São José, São Pedro e São Paulo e, mais recentemente, Santa Maria Madalena.

[7] SPERANDIO, João Manoel; TAMANINI, Paulo Augusto (orgs.). Pequeno Menologion: Calendário Bizantino. Teresina: Editora da Universidade Federal do Piauí, 2015, p. 73.

[8] cf. OFÍCIO DIVINO, op. cit., v. IV, pp. 1237-1244.

[9] SPERANDIO; TAMANINI, op. cit., pp. 73-74. A referência ao “anúncio aos cativos do inferno” remete ao relato apócrifo da descida de Cristo ao Hades, inserido no Evangelho de Nicodemos, que narra como João Batista, após a sua morte, foi ao Hades anunciar aos justos do Antigo Testamento a proximidade da vinda do Salvador, sendo portanto seu Precursor na vida e na morte.

[10] ibid., p. 73.

Ícone da "descida de João Batista ao Hades"

Referências:

ADAM, Adolf. O Ano Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica. São Paulo: Loyola, 2019, pp. 171-173.

RIGHETTI, Mario. Historia de la Liturgia, v. I: Introducción general; El año litúrgico; El Breviario. Madrid: BAC, 1955, pp. 947-950.

SCHUSTER, Cardeal Alfredo Ildefonso. Liber Sacramentorum, vol. VII: Le Feste dei Santi dalla Quaresima all'ottava dei Principi degli Apostoli. Torino-Roma: Marietti, 1930, pp. 269-276.

Idem. Liber Sacramentorum, vol. VIII: Le Feste dei Santi dall'ottava dei Principi degli Apostoli alla Dedicazione di S. Michele. Torino-Roma: Marietti, 1932, pp. 217-220.

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