Concluindo as invocações
da Ladainha do Sagrado Coração diretamente ligadas ao mistério da Paixão,
trazemos aqui as meditações do Papa sobre a 26ª e a 27ª:
Cor Iesu, lancea
perforatum, miserere nobis.
Cor Iesu, fons totius
consolationis, miserere nobis.
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27. Coração de Jesus,
transpassado pela lança
Ângelus do dia 30 de
julho de 1989
Coração de Jesus,
transpassado pela lança, tende piedade de nós.
1. Ao longo dos séculos, poucas páginas do Evangelho atraíram
tanto a atenção dos místicos, dos escritores espirituais e dos teólogos como a
passagem do Evangelho de João que narra
a morte gloriosa de Cristo e a perfuração do seu lado (cf. Jo 19,23-37). Nessa
página se inspira a invocação da Ladainha que recordamos.
No Coração transpassado contemplamos a obediência filial de
Jesus ao Pai, cuja missão Ele cumpriu corajosamente (cf. Jo 19,30), e seu amor
fraterno pelos homens, aos quais Ele “amou até o fim” (Jo 13,1), ou seja, até o extremo sacrifício de si. O Coração transpassado
de Jesus é o signo da totalidade deste amor em direção vertical e horizontal,
como os dois braços da cruz.
2. O Coração transpassado é também o símbolo da vida nova,
dada aos homens mediante o Espírito e os sacramentos. Quando o soldado lhe deu o
golpe da lança, do lado ferido de Cristo “logo saiu sangue e água” (Jo 19,34). O golpe da lança atesta a
realidade da morte de Cristo. Ele morreu verdadeiramente, assim como havia nascido
verdadeiramente e como ressuscitará verdadeiramente em sua mesma carne (cf. Jo
20,24.27). Contra toda tentação antiga ou moderna de docetismo, de ceder à
“aparência” [1], o evangelista recorda a todos a crua certeza da realidade. Mas,
ao mesmo tempo, tende a aprofundar o significado do acontecimento salvífico e
expressá-lo através do símbolo. Ele, portanto, no episódio do golpe da lança, vê
um profundo significado: como da rocha golpeada por Moisés brotou no deserto um
manancial de água (cf. Nm 20,8-11), assim do lado de Cristo, ferido
pela lança, brotou uma torrente de água para saciar a sede do novo Povo de
Deus. Esta torrente é o dom do Espírito (cf.
Jo 7,37-39), que alimenta em nós a
vida divina.
3. Finalmente, do Coração transpassado de Cristo brota a
Igreja. Como do lado de Adão que dormia foi extraída Eva, sua esposa, assim -
segundo uma tradição patrística que remonta aos primeiros séculos -, do lado
aberto do Salvador, que dormia sobre a cruz no sono da morte, foi extraída a
Igreja, sua esposa. Esta se forma precisamente da água e do sangue - Batismo e
Eucaristia -, que brotam do Coração transpassado. Por isso, com razão afirma a
Constituição Conciliar sobre a Liturgia: “Foi do lado de Cristo adormecido na
cruz que nasceu o sacramento admirável de toda a Igreja” (Sacrosanctum Concilium, n. 5).
4. Junto à cruz, adverte o evangelista, se encontrava a Mãe
de Jesus (cf. Jo 19,25). Ela viu o Coração aberto do qual fluíam sangue e água -
sangue tomado de seu sangue -, e compreendeu que o sangue do Filho era
derramado pela nossa salvação. Então compreendeu plenamente o significado das
palavras que o Filho lhe havia dirigido pouco antes: “Mulher, eis aí o teu filho”
(Jo 19,26): a Igreja que brotava do
Coração transpassado era confiada a seus cuidados de Mãe.
Peçamos a Maria que nos guie a haurir cada vez mais
abundantemente a água dos mananciais de graça que fluem do Coração transpassado
de Cristo.
28. Coração de Jesus,
fonte de toda consolação
Ângelus do dia 13 de
agosto de 1989
Coração de Jesus,
fonte de toda consolação, tende piedade de nós.
1. Deus, Criador do céu e da terra, é também “o Deus de toda
consolação” (2Cor 1,3: cf. Rm
15,5). Numerosas páginas do Antigo Testamento nos mostram Deus que, em sua grande
ternura e compaixão, consola seu povo na hora da aflição. Para confortar
Jerusalém, destruída e desolada, o Senhor envia seus profetas para levar uma
mensagem de consolo: “Consolai o meu povo, consolai-o... Falai ao coração de
Jerusalém e dizei em alta voz que sua servidão acabou” (Is 40,1-2); e, dirigindo-se a Israel oprimido pelo temor de seus
inimigos, declara: “Eu, eu mesmo sou teu consolador” (Is 51,12); e ainda, comparando-se a uma mãe cheia de ternura por seus
filhos, manifesta sua vontade de levar paz, alegria e consolo a Jerusalém: “Alegrai-vos
com Jerusalém e exultai com ela, todos vós, que a amais... para poderdes
saciar-vos ao seio de sua consolação... Como uma mãe que acaricia o filho,
assim eu vos consolarei; e sereis consolados em Jerusalém” (Is 66,10-11.13).
2. Em Jesus, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, nosso
irmão, o “Deus-que-consola” se fez presente entre nós. Assim o indicou primeiramente
o justo Simeão, que teve a alegria de acolher entre seus braços o Menino Jesus
e de ver n’Ele realizada “a consolação de Israel” (Lc 2,25). E, em toda a vida de Cristo, a pregação do Reino foi um
ministério de consolação: anúncio de uma alegre mensagem para os pobres,
proclamação de liberdade para os oprimidos, de cura para os enfermos, de graça
e salvação para todos (cf. Lc 4,16-21; Is 61,1-2).
Do Coração de Cristo brotou esta tranquilizadora
bem-aventurança: “Bem aventurados os que choram, porque serão consolados” (Mt 5,5), assim como o tranquilizador convite:
“Vinde a mim todos vós que estais cansados e fatigados sob o peso dos vossos
fardos, e eu vos darei descanso” (Mt
11,28).
A consolação que provinha do Coração de Cristo era participação
no sofrimento humano, vontade de mitigar a ansiedade e aliviar a tristeza, e
sinal concreto de amizade. Em suas palavras e em seus gestos de consolação se
uniam admiravelmente a riqueza do sentimento e a eficácia da ação. Quando,
próximo da porta da cidade de Naim, viu uma viúva que acompanhava ao sepulcro seu
único filho, Jesus compartilhou sua dor: “Teve compaixão dela” (Lc 7,13), tocou o caixão, ordenou ao
jovem que levantasse e o restituiu à sua mãe (cf. Lc 7,14-15).
3. O Coração do Salvador é também, mais ainda: é
principalmente “fonte de Consolo”, porque Cristo, juntamente com o Pai, doa o
Espírito Consolador: “Eu rogarei ao Pai e Ele vos dará outro Consolador, para
que permaneça sempre convosco” (Jo
14,16; cf. 14,25; 16,12): Espírito de
verdade e de paz, de concórdia e de suavidade, de conforto e de consolação:
Espírito que brota da Páscoa de Cristo (cf.
Jo 19,28-34) e do evento do
Pentecostes (cf. At 2,1-13).
4. Toda a vida de Cristo foi, portanto, um contínuo ministério
de misericórdia e de consolação. A Igreja, contemplando o Coração de Cristo e
as fontes de graça e de consolação que d’Ele brotam, expressou esta realidade
estupenda com a invocação: Coração de
Jesus, fonte de toda consolação, tende piedade de nós.
Esta invocação é recordação da fonte da qual, ao longo dos
séculos, a Igreja recebeu consolação e esperança na hora da prova e da
perseguição; é convite a buscar no Coração de Cristo a consolação verdadeira,
duradoura e eficaz; é advertência para que, após ter experimentado a consolação
do Senhor, nos convertamos também nós em seus portadores convictos e comovidos,
fazendo nossa a experiência espiritual que fez o Apóstolo Paulo dizer: o Senhor
“nos consola em todas as nossas aflições, para que, com a consolação que nós
mesmos recebemos de Deus, possamos consolar os que se acham em toda e qualquer
aflição” (2Cor 1,4).
Peçamos a Maria, consoladora dos aflitos, que, nos momentos escuros
de tristeza e angústia, nos conduza a Jesus, seu Filho amado, fonte de toda consolação.
Cristo crucificado em seu Sagrado Coração (Autor anônimo, México, séc. XVIII) |
Fonte: Santa Sé - 30 de julho e 13 de agosto de 1989
(italiano; tradução nossa).
[1] O docetismo (do grego dokeo, aparência) foi uma heresia dos primeiros séculos do
cristianismo que afirmava que o corpo de Cristo era apenas espiritual, negando
assim a realidade da Encarnação e, por conseguinte, da morte de Cristo.
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