Homilia na Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo
Foi com Ele então, é conosco agora, é com Ele sempre!
Celebramos o Corpo e o Sangue de Cristo, corpo entregue e
sangue derramado por nós e por todos. Com profunda gratidão, antes de mais.
Como acabámos de ouvir, é duma oferta que se trata, total e redentora: «Tomai:
isto é o meu corpo» - assim o disse sobre o pão repartido. E a seguir, sobre o
cálice de vinho: «Este é o meu sangue, o sangue da nova aliança, derramado pela
multidão dos homens».
Da antiga aliança, ouvimos antes no Êxodo. Era selada com o
sangue de novilhos, sobre o altar e sobre o povo, significando que Deus
devolvia a vida que Lhe ofereciam, por entreposta vítima. Na nova aliança é a
própria vida de Jesus que, oferecida em favor de todos, nos faz reviver com Ele
e para glória de Deus Pai, plena e definitivamente assim.
Mas outra consequência importa tirar. Na verdade, o Corpo
eucarístico que recebemos, quando bem o recebemos, transforma-nos no Corpo
eclesial de Cristo, para também nós alimentarmos o mundo com o alimento que nos
assimila a si.
Não é Cristo que se desfaz em nós, como acontece com o
alimento que ingerimos vulgarmente. É Ele que nos refaz em Si, para sermos o
seu corpo alargado até onde quer chegar, através daqueles que O recebem.
Daqui que esta solenidade, sendo de convicta ação de graças
a Deus, seja também de enorme responsabilização para nós. Estamos no âmago do
mistério eclesial. Parte de Deus, que nos redime e alimenta em Cristo, e
dirige-se ao mundo, que Cristo redime e alimenta, fazendo-o através de nós:
«Tomai, isto é o meu corpo» é frase sacramental, absolutamente real e salvadora.
Mas ressoa nas nossas vidas comungantes, nas quais Cristo também se diz, para
corresponder às muitas fomes deste mundo.
A comunhão eucarística é, sem dúvida, um momento pessoal de
imensa devoção agradecida. Mas requer da nossa parte uma grande comunhão de
vida com Cristo, a sua palavra e o seu modo de sentir, pensar e agir.
Requer-nos grande consequência espiritual e prática, tanto na vida eclesial
como social. Em tudo havemos de ser, também nós, Corpo de Cristo no mundo.
Permito-me recordar uma história antiga e sugestiva. Numa
aldeia próxima da minha terra e do mar, um frade itinerante encontrou um grupo
de crianças a brincar no adro da igreja. Havia gaivotas e perguntou se as
pessoas as comiam. As crianças responderam logo que não, porque as gaivotas
sabiam a peixe. Perguntou-lhes então se já tinham feito a Primeira Comunhão.
Responderam que sim, e o bom do frade retorquiu: «Então vocês também sabem a
Jesus?».
Tão simples como é, o episódio vale também para nós: -
“Sabemos” a Jesus, que comungamos? Os outros podem apreciar em nós o sabor
evangélico que Cristo dá à vida?
Incorpora-nos Ele em si, ainda mais do que O recebemos nós
ao comungá-lo. É assim que o Corpo eucarístico se torna Corpo eclesial de
Cristo, para que o Evangelho continue audível e tangível no mundo a que se
destina. Aquela magnífica frase, de Jesus a Nicodemos, «Tanto amou Deus o
mundo, que lhe deu o seu Filho Unigénito, a fim de que todo o que nele crê não
se perca, mas tenha a vida eterna» (Jo
3, 16), também passa de nós para os outros.
A esta luz, foi admirável verificar, especialmente nas fases
mais agudas da pandemia, como Cristo atuou através da abnegação de tantos, nas
comunidades cristãs e nas várias frentes em que foi preciso combatê-la, porque
o seu Espírito é como o vento, que sopra onde quer (cf. Jo 3,8). E assim
acontece diariamente, naquela «santidade de ao pé da porta, daqueles que vivem
perto de nós e são um reflexo da presença de Deus», como lembra o Papa
Francisco na Exortação Apostólica Gaudete
et Exsultate (n. 07).
Esta prevalência de Cristo em nós exige-nos grande
fidelidade ao que Ele mesmo foi e realizou, tal como os Evangelistas o
transmitiram e a Tradição viva o guarda e oferece. Quando nos pronunciamos e
agimos na vida eclesial ou nas realidades temporais, é sempre essa a referência
básica que devemos manter.
Sobre a vida, devemos estar onde Jesus sempre esteve,
garantindo-a da primeira à última fronteira, mesmo quando a esperança humana já
era pouca ou nenhuma, como perante a filha de Jairo ou o servo do centurião. Em
relação às necessidades do próximo, só podemos estar presentes e prestáveis,
pois é com a nossa atenção concreta que Jesus conta agora para lhes
corresponder também. Sobre o matrimônio, que cria a família como base da
sociedade e da própria Igreja enquanto “família de famílias”, lembraremos o que
Jesus lembrou, ou seja, que «o homem deixará o pai e a mãe e se unirá à sua
mulher, e serão os dois um só», acrescentando: «o que Deus uniu não o separe o
homem» (Mt 19,5-6).
Sobre a Palavra que nos dirigiu e a Tradição eclesial
conserva e aprofunda, cumpre-nos mantê-la integralmente, como Paulo exortava a
Timóteo: «guarda o depósito da fé, evita as conversas profanas e as
contradições da falsa ciência, que alguns professam e desviaram-se da fé» (1Tm 6,20). “Depósito” que se perpetua e
enriquece com a vida e a reflexão que sempre induz, sem nunca se contradizer a
si próprio, antes revelando uma inesgotável riqueza.
Sobre o modo de celebrar, importa manter a simplicidade com
que o próprio Cristo inaugurou o novo culto e nos manda prosseguir, na memória
viva da sua Páscoa: «Fazei isto em memória de mim». “Isto”, como na Última Ceia
ou os cristãos de Roma o faziam no século II, segundo a narração de São
Justino, de modo tão comunitário e fiel às palavras e gestos de Jesus (cf. I Apologia, 67) - e dispensando
acrescentos medievais e barrocos, quando mais originam espetáculos com
assistentes do que assembleias com participantes.
Em suma, ser Corpo eclesial de Cristo, nasce da comunhão do
seu Corpo eucarístico e perpetua a sua presença em nós e através de nós, para a
salvação do mundo. Porque Missa há de ser missão. Disto mesmo se trata, em ação
de graças e correspondência crescente a tudo o que Ele disse e fez. A epiclese
que antecede as palavras da consagração, refere-se primeiro às oferendas do
altar. Mas depois continua sobre nós, nestes termos: «Humildemente Vos
suplicamos (Senhor) que, participando no Corpo e Sangue de Cristo, sejamos
reunidos pelo Espírito Santo, num só corpo» (Oração Eucarística II). Um só
corpo, precisamente o Corpo eclesial de Cristo, ecoando o que Ele disse,
continuando o que Ele realizou - isso mesmo e não outra coisa, divergente ou
contrária.
Sobre o Corpo eclesial que com Ele formamos, na variedade
dos carismas e ministérios que o seu Espírito suscita e anima, aceitamos “com
reverência e obediência” a autoridade que conferiu a Pedro e aos Doze e
permanece nos seus sucessores. Assim manteremos a unidade doutrinal e pastoral
da Igreja, para que, também nesta imprescindível acepção, continue a ser
“católica e apostólica”.
Tudo com a necessária repercussão social. O Corpo eclesial
de Cristo há de projetar-se no corpo social de todos, como a Doutrina Social da
Igreja não deixa de insistir sistematicamente, da Encíclica Rerum Novarum do Papa Leão XIII (1891) à
recente Fratelli Tutti, do Papa
Francisco (2020). Trata-se de retomar o que o Evangelho nos traz “daquele
tempo”, com as palavras e os gestos de Jesus. Tempo que, no essencial, há de
ser o nosso tempo. Por exemplo, sobre os bens e o seu uso, afirmamos que se
destinam ao bem de todos, mesmo que particularmente geridos. Somos
administradores, com contas a prestar dos talentos recebidos, materiais ou
intelectuais que sejam. Sobre as várias realidades temporais, respeitamos como
Ele ensina a respeitar a autonomia que têm na respetiva ordem, mas nunca
esquecendo que só com Deus se garante absolutamente a dignidade humana.
Sim, celebrar o Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo, é
agradecer a vida que deu por nós e para nós; é crescer em gratidão e
responsabilidade sempre que eucaristicamente O celebramos, comungamos e
adoramos. E é também, na coincidência de pensamento, sensibilidade e prática,
sermos na Igreja e no mundo Esse mesmo que recebemos e por nós quer chegar a
todos. Àquela «multidão dos homens» por quem derramou o seu sangue.
Foi com Ele então, é conosco agora, é com Ele sempre!
Sé de Lisboa, 03 de junho de 2021.
Manuel, Cardeal-Patriarca
Fonte: Patriarcado de Lisboa
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