sexta-feira, 2 de outubro de 2020

A história da Festa dos Anjos da Guarda

Anjos do Senhor, bendizei ao Senhor! Louvai-o e exaltai-o pelos séculos sem fim!” (Dn 3,59).

No último dia 29 de setembro publicamos um texto sobre a história da Festa dos Arcanjos Miguel, Gabriel e Rafael. Hoje, 02 de outubro, quando a Igreja do Rito Romano celebra a Memória dos Santos Anjos da Guarda, gostaríamos de ampliar a reflexão, falando sobre a história do culto dos anjos em geral.

Com efeito, a Constituição Dogmática Lumen Gentium, do Concílio Vaticano II, ao falar sobre a união da Igreja peregrina sobre a terra com a Igreja celeste, recorda o particular afeto devido “aos Apóstolos e Mártires de Cristo (...) juntamente com a Bem-aventurada Virgem Maria e os santos Anjos” (n. 50) [1].

Assunção da Virgem, de Francesco Botticini (séc. XV)

O culto dos anjos na Igreja

Os anjos (do hebraico malakh e do grego angelos, mensageiro) estão amplamente presentes na Sagrada Escritura, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, como mensageiros de Deus e protetores do seu povo.

Seu culto remonta ao século I, como atesta a Carta aos Colossenses (2,18), embora esta exorte contra alguns exageros. Diversas vezes neste escrito, com efeito, se reforça a superioridade de Cristo sobre as potências angélicas.

Os exageros prosseguiram nos séculos seguintes, como adverte Orígenes no Contra Celso. Sobretudo na Frígia (região da atual Turquia), o culto aos anjos adquiria quase o caráter de adoração (latria), prática condenada pelo Concílio de Laodiceia (363-364). Lembremos também, como vimos na postagem anterior, que o Sínodo de Roma de 745 proibiu o culto pessoal de anjos que eram mencionados apenas nos livros apócrifos (como, por exemplo, o Livro de Enoch).

Apesar dos abusos, o verdadeiro culto aos anjos, na forma de veneração (dulia), permaneceu sempre presente na vida da Igreja. A ele alude São Justino (séc. II) em sua I Apologia, afirmando que os cristãos cultuam “ao exército dos anjos bons”. Sua veneração tem o próprio Deus como último destinatário, como bem sintetiza o núcleo do Prefácio dos anjos:

“Senhor, Pai santo, Deus eterno e todo-poderoso: é a vós que glorificamos, ao louvarmos os anjos que criastes e que foram dignos do vosso amor. A admiração que eles merecem nos mostra como sois grande e como deveis ser amado acima de todas as criaturas” (Missal Romano, 2ª edição, p. 447).

No século VI o Pseudo-Dionísio Areopagita escreveu a obra De caelesti hierarchia (Da hierarquia celeste) onde, recolhendo os diversos termos relacionados aos anjos na Escritura, estabeleceu uma hierarquia dos seres espirituais, divididos em nove “coros”. Esta classificação seria depois desenvolvida por Santo Tomás de Aquino (séc. XIII), que ficou conhecido justamente como “Doutor Angélico”.

Primeiramente há dois termos tomados do Antigo Testamento:

Serafins (do hebraico saraf): Mencionados na teofania do Livro de Isaías (6,2-7), onde cantam o hino ao Deus “três vezes Santo” e purificam o profeta;

Querubins (do hebraico keruv): São presença recorrente na Escritura: protegem os portões do Éden (Gn 3,24); suas imagens encimam a arca da aliança (Ex 25,18-20); aparecem nos Salmos (80,1; 99,1) e diversas vezes nas visões do Livro de Ezequiel;

Cristo entre querubins e serafins (Batistério de Florença)


Em seguida, temos cinco expressões mencionadas em Ef 1,21 e/ou Cl 1,16:
Tronos (em grego, thronoi): apenas em Cl;
Dominações (kyriotetes): em Ef e Cl;
Virtudes (dynameis): apenas em Ef;
Potestades (exousiai): em Ef e Cl;
Principados (archai): em Ef e Cl.

Por fim, os últimos dois termos são os mais conhecidos:

Arcanjos (em grego, archàngelos): Citado em Jd 9 (aplicado a Miguel) e em 1Ts 4,16 (sem especificação). Como vimos na postagem anterior, a tradição da Igreja atribui o título de “arcanjo” aos três seres celestiais nomeados nos escritos canônicos (Miguel, Gabriel e Rafael);

Anjos: Por fim, temos os “anjos” propriamente ditos, presentes diversas vezes na Escritura. Destacamos aqui duas perícopes: são os anjos que anunciam aos pastores o nascimento do Salvador (Lc 2,8-14) e a Ressurreição às mulheres (Mt 28,1-8).

O tema da hierarquia angélica teve grande influência na arte sacra, onde podemos encontrar comumente os seres celestiais divididos em seus nove coros, e na Liturgia, sendo os coros angélicos citados nas orações, como, por exemplo, na conclusão do Prefácio dos anjos, já mencionado acima:

“Pelo Cristo, vosso Filho e Senhor nosso, louvam os Anjos a vossa glória, as Dominações vos adoram, e, reverentes, vos servem Potestades e Virtudes. Concedei-nos também a nós associar-nos à multidão dos Querubins e Serafins, cantando a uma só voz: Santo, Santo, Santo...” (Missal Romano, p. 447).

Na antífona de Comunhão da Missa votiva dos Santos Anjos no Missale Romanum de 1962, por sua vez, todos os coros celestiais são mencionados: “Angeli, Archangeli, Throni et Dominationes, Principatus et Potestates, Virtutes caelorum, Cherubim atque Seraphim, Dominum benedicite in aeternum” [2].

Hierarquia angélica (Batistério de Florença)

Em sua grande obra O sentido teológico da Liturgia, Cipriano Vagaggini dedica um capítulo à “Liturgia e o mundo dos anjos” [3], analisando sua presença nas celebrações litúrgicas. Elencaremos aqui alguns aspectos mais relevantes, centrando-nos no Rito Romano (o autor explora também a presença dos anjos nos ritos orientais, tema que, por sua riqueza, merece uma postagem própria no futuro).

A primeira referência de Vagaggini é ao anjo do Cânon Romano (Oração Eucarística I) que, como vimos na postagem anterior, foi suprimido da tradução brasileira. Recordemos o texto da versão lusitana:

“Humildemente Vos suplicamos, Deus todo-poderoso, que esta nossa oferenda seja apresentada pelo vosso santo Anjo no altar celeste, diante da vossa divina majestade” (Ordinário da Missa, site do Secretariado Nacional de Liturgia de Portugal).

Embora a tradição costume identificar aqui o Arcanjo Miguel, Vagaggini propõe uma interpretação à luz do De sacramentis (Sobre os sacramentos) de Santo Ambrósio, que em uma oração análoga usa o plural - “pelas mãos dos teus santos anjos” -, atribuindo portanto a missão de apresentar nossas orações a Deus aos anjos em geral.

Ainda dentro da Prece Eucarística, outra oração que destaca a ação dos anjos é a conclusão do Prefácio. À luz da visão de Isaías já citada, aqui a Igreja terrena une-se à Igreja celeste no louvor do Deus “três vezes Santo”.

O texto de Isaías (Is 6,3: “Santo, Santo, Santo, Senhor Deus do universo! O céu e a terra proclamam vossa glória”), ao qual foi acrescido um versículo do Evangelho (Mt 21,9: “Hosana das alturas! Bendito o que vem em nome do Senhor! Hosana nas alturas!”), parece ter entrado muito cedo na Liturgia, segundo parece indicar o Papa São Clemente I em sua Carta aos Coríntios (34,5-7), ainda no século I. De toda forma, o canto do Sanctus já estava bem difundido nos séculos IV-V em praticamente todas as Liturgias.

Os anjos adoram o Cordeiro (Detalhe do Retábulo de Ghent)

Todos os Prefácios do Rito Romano fazem referência aos anjos antes do Sanctus. Citamos, a guisa de exemplo, a conclusão do Prefácio próprio da Oração Eucarística IV:

“Eis, pois, diante de vós todos os anjos que vos servem e glorificam sem cessar, contemplando a vossa glória. Com eles, também nós, e, por nossa voz, tudo o que criastes, celebramos o vosso nome, cantando a uma só voz: Santo, Santo, Santo...” (Missal Romano, p. 488).

Na tradição dos Padres da Igreja, como recorda Vagaggini, estava bem consolidada a compreensão de que nos unimos ao mundo angélico na oferta a Deus do sacrifício de louvor. Em sua obra são citados como exemplos:

Santo Ambrósio (séc. IV): “Se aqui está o Corpo de Cristo, aqui também os anjos estão presentes” (De sacramentis, I, 6);

São João Crisóstomo (séc. IV-V): “Todo o santuário e o espaço ao redor do altar está cheio de multidões celestes para honrar Aquele que está sobre o altar” (De sacerdotio, VI, 4);

São Gregório Magno (séc. VI-VII): “Quem, dos fiéis, poderia duvidar (...) que naquele mistério de Jesus Cristo os coros dos anjos estejam presentes, as ínfimas coisas se associem às grandes, as terrenas se conjuguem às celestes, e do invisível se faça uma só coisa?” (Diálogos, IV, 58) [4].

A presença dos anjos na Missa, além da Anáfora, é destacada também no canto do Glória. Este hino de louvor ao Pai e de súplica ao Filho que a Igreja eleva, reunida no Espírito Santo, tem seus primeiros versos tomados do hino angélico de Lc 2,14: “Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens por ele amados”. Cumpre notar que, no Missale Romanum de 1962, na Missa votiva dos Santos Anjos o Glória sempre deveria ser rezado ou cantado, mesmo em um dia de semana.

Recordemos ainda a particular invocação dos anjos na Encomendação dos agonizantes e nas Exéquias: “Santos de Deus, vinde em seu auxílio; Anjos do Senhor, correi ao seu encontro! Acolhei a sua alma levando-a à presença do Altíssimo” [5]

Podemos concluir esta primeira parte da nossa análise citando a Constituição Sacrosanctum Concilium do Concílio Vaticano II, que bem sintetiza o que vimos:

“Pela Liturgia da terra participamos, saboreando-a já, na Liturgia celeste celebrada na cidade santa de Jerusalém, para a qual, como peregrinos nos dirigimos e onde Cristo está sentado à direita de Deus, ministro do santuário e do verdadeiro tabernáculo; por meio dela cantamos ao Senhor um hino de glória com toda a milícia do exército celestial” (Sacrosanctum Concilium, n. 08).

Anjo aponta o caminho do céu (Matteo Rosselli)

A Memória dos Santos Anjos da Guarda

A devoção aos Anjos da Guarda encontra seu fundamento na Sagrada Escritura, particularmente nos próprios textos que sempre foram proclamados na sua celebração:

Ex 23,20: “Vou enviar um anjo que vá à tua frente, que te guarde pelo caminho e te conduza ao lugar que te preparei”;

Sl 90,11: “O Senhor deu uma ordem a seus anjos, para em todos os caminhos te guardarem”;

Mt 18,10: “Não desprezeis nenhum desses pequeninos, pois eu vos digo que os seus anjos nos céus veem sem cessar a face do meu Pai que está nos céus”.

À luz dos dados da Escritura, São Basílio Magno (séc. IV) sintetizou aquilo que se tornou consolidado na fé da Igreja sobre os anjos custódios: “Cada fiel tem ao seu lado um anjo como protetor e pastor, para conduzi-lo à vida” (Adversus Eunomium, 3, 1) [6].

Como vimos na postagem anterior, a partir do século X popularizaram-se as Missas votivas em honra de São Miguel e dos santos anjos na segunda-feira. Tal devoção pode ter se originado a partir do dia seguinte à Páscoa, a “Segunda-feira do Anjo”, na qual se celebrava o anjo que anunciou às mulheres a Ressureição do Senhor.

Posteriormente a Missa votiva dos anjos no Missale Romanum foi transferida para a terça-feira, uma vez que a Missa votiva da Santíssima Trindade passou do domingo para a segunda-feira (dado que essas celebrações passaram a ser proibidas nos domingos). Ainda hoje o Missal Romano conserva uma Missa votiva aos Santos Anjos, que pode ser celebrada em qualquer dia litúrgico livre [7].

Ainda na Idade Média, o propagador da devoção aos Anjos da Guarda foi São Bernardo (séc. XII), Abade de Clairvaux (Claraval), na França. Inclusive um dos seus sermões figura no Ofício das Leituras da Memória dos SantosAnjos.

São Bernardo de Claraval, Abade (1090-1153)

A origem propriamente dita dessa Memória, porém, remonta ao século XV. Em 1411 a Diocese de Valência, na Espanha, instituiu uma festa em honra do Anjo da Guarda da cidade. Com o tempo festas semelhantes começaram a ser celebradas em outras dioceses da Espanha e em outros países, como Portugal e Áustria.

Com a promulgação do Missal de São Pio V em 1570, tais festas foram suprimidas, tendo sido restabelecidas pouco tempo depois, em 1608, pelo Papa Paulo V. Em 1670, por sua vez, o Papa Clemente X estende a celebração para toda a Igreja, inscrevendo-a no Calendário Romano no dia 02 de outubro, data próxima à Festa dos Arcanjos.

Papa Clemente X, que instituiu a Memória dos Anjos

Com a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II, a Memória foi conservada, inclusive mantendo boa parte das mesmas orações do Missale de 1962. Apenas a oração após a Comunhão é de nova composição, além do já citado Prefácio dos anjos.

Como a Festa dos Arcanjos, a Memória dos Anjos da Guarda possui um ofício para a Liturgia das Horas com vários textos próprios. Para acessar nossas postagens sobre os três hinos dessa Memória, com seu texto em latim e em português e alguns comentários sobre a sua teologia, clique nos links abaixo:

Ofício das Leituras: Aetérne rerum cónditor (Eterno Autor do mundo);
Laudes: Orbis patrátor óptime (Ó Deus, criando o mundo);
Vésperas: Custódes hóminum psállimus (Aos anjos cantemos).

Notas:

[1] Apenas como exemplo da particular devoção aos anjos no Rito Romano, como afirmamos a respeito de São Miguel, a invocação aos “Santos Anjos de Deus” é obrigatória em todas as versões da Ladainha de Todos os Santos. Também na Ladainha de Nossa Senhora está é invocada como “Rainha dos anjos” e na antífona final das Completas para a Quaresma como “Domina angelorum” (Senhora dos anjos).

[2] Textos ainda mais antigos mencionam os diversos títulos dos anjos, antes mesmo da sistematização do Areopagita, como a Anáfora das Constituições Apostólicas (final do século IV), que os cita duas vezes: no início do Prefácio e antes do Sanctuscf. CORDEIRO, José de Leão (Org.). Antologia Litúrgica: Textos Litúrgicos, Patrísticos e Canónicos do Primeiro Milénio. Secretariado Nacional de Liturgia: Fatima, 2003, pp. 432.433.

[3] VAGAGGINI, Cipriano. O sentido teológico da Liturgia. São Paulo: Loyola, 2009, pp. 306-319.

[4] ibid., p. 312.

[5] RITUAL DA UNÇÃO DOS ENFERMOS E SUA ASSISTÊNCIA PASTORAL. Tradução portuguesa da edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 2000, p. 90. Uma versão ligeiramente distinta consta em: NOSSA PÁSCOA: Subsídios para a Celebração da Esperança. São Paulo: Paulus, 2008, p. 79.

[6] Citado por: AUGÉ, Matias. Ano Litúrgico: É o próprio Cristo presente na sua Igreja. São Paulo: Paulinas, 2019, p. 323.

[7] A Missa votiva dos Santos Anjos no Missal Romano (pp. 954-955) traz as mesmas orações da Festa dos Arcanjos. Também podem ser usadas as orações da Memória dos Anjos da Guarda. O mesmo vale para as leituras, tomadas do dia 29 de setembro ou do dia 02 de outubro. Portanto, a Missa votiva dos anjos não acrescenta nenhuma “novidade” ao Missal. No Missale Romanum de 1962, a Missa votiva retomava praticamente todas as orações da Festa de São Miguel, porém possuía leituras próprias: Ap 5,11-14; Sl 148,1-2; Jo 1,47-51.

[8] OFÍCIO DIVINO. Liturgia das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição típica. São Paulo: Paulus, 1999, v. IV, p. 1340. Toda a Liturgia da Memória vai da p. 1334 à p. 1345.


Referências:

AUGÉ, Matias. Ano Litúrgico: É o próprio Cristo presente na sua Igreja. São Paulo: Paulinas, 2019, pp. 320-321; 323-324.

RIGHETTI, Mario. Historia de la Liturgia, v. I: Introducción general; El año litúrgico; El Breviario. Madrid: BAC, 1955, pp. 942-943.

VAGAGGINI, Cipriano. O sentido teológico da Liturgia. São Paulo: Loyola, 2009, pp. 306-319.

Postagem publicada originalmente em 02 de outubro de 2020. Atualizada em 02 de outubro de 2021 com os links para as postagens sobre os três hinos da Memória dos Anjos na Liturgia das Horas.

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