“Anjos do Senhor, bendizei
ao Senhor! Louvai-o e exaltai-o pelos séculos sem fim!” (Dn 3,59).
No último dia 29 de setembro publicamos um texto sobre a história da Festa dos Arcanjos Miguel, Gabriel e Rafael. Hoje, 02 de outubro,
quando a Igreja do Rito Romano celebra a Memória dos Santos Anjos da Guarda,
gostaríamos de ampliar a reflexão, falando sobre a história do culto dos anjos da guarda e dos anjos
em geral.
Com efeito, a Constituição Dogmática Lumen Gentium, do Concílio Vaticano II, ao falar sobre a união da
Igreja peregrina sobre a terra com a Igreja celeste, recorda o particular afeto
devido “aos Apóstolos e Mártires de Cristo... juntamente com a
Bem-aventurada Virgem Maria e os santos
Anjos” (n. 50) [1].
Anjo da Guarda (Anônimo do século XVIII) |
1. O culto dos anjos em geral
Os anjos (do hebraico malakh
e do grego angelos, mensageiro) estão
amplamente presentes na Sagrada Escritura, tanto no Antigo quanto no Novo
Testamento, como mensageiros de Deus e protetores do seu povo.
Seu culto remonta já ao século I, como atesta a Carta aos
Colossenses (Cl 2,18), embora esta exorte contra alguns exageros no seu culto. Diversas
vezes neste escrito, com efeito, se reforça a superioridade de Cristo sobre as
potências angélicas.
Os exageros prosseguiram nos séculos seguintes, como adverte
Orígenes em sua obra Contra Celso. Sobretudo
na Frígia (região da atual Turquia), o culto aos anjos adquiria quase o caráter
de adoração (latria), prática
condenada pelo Concílio de Laodiceia (363-364). Lembremos também, como vimos na
postagem anterior, que o Sínodo de Roma de 745 proibiu o culto de anjos
que eram mencionados apenas nos livros apócrifos (como, por exemplo, o Livro de Enoch).
Apesar dos abusos, o verdadeiro culto aos anjos, na forma de
veneração (dulia), permaneceu sempre
presente na vida da Igreja. A ele alude São Justino (séc. II) em sua I Apologia, afirmando que os cristãos
cultuam o “exército dos anjos bons”. Sua veneração tem o próprio Deus como
último destinatário, como bem sintetiza o núcleo do Prefácio dos anjos:
“(...) Senhor, Pai santo, Deus eterno e todo-poderoso: é a vós que
glorificamos, ao louvarmos os anjos que criastes e que foram dignos do vosso
amor. A admiração que eles merecem nos mostra como sois grande e como deveis
ser amado acima de todas as criaturas” (Missal
Romano, 2ª edição, p. 447).
No século VI o Pseudo-Dionísio Areopagita escreveu a obra De caelesti hierarchia (Da hierarquia
celeste) onde, recolhendo os diversos termos relacionados aos anjos na
Escritura, estabeleceu uma hierarquia dos seres espirituais, divididos em nove
“coros”. Esta classificação seria depois desenvolvida por Santo Tomás de Aquino
(séc. XIII), que ficou conhecido justamente como “Doutor Angélico”.
Primeiramente há dois termos tomados do Antigo Testamento:
Serafins (do
hebraico saraf): Mencionados na teofania
do Livro de Isaías (Is 6,2-7), onde cantam o hino ao Deus “três vezes Santo” e
purificam o profeta;
Querubins (do
hebraico keruv): São presença
recorrente na Escritura: protegem os portões do Éden (Gn 3,24); suas imagens
encimam a arca da aliança (Ex 25,18-20); aparecem nos Salmos (Sl 80,1; 99,1) e diversas
vezes nas visões do Livro de Ezequiel;
Cristo entre querubins e serafins (Batistério de Florença) |
Em seguida, temos cinco expressões mencionadas em Ef 1,21 e/ou
Cl 1,16: Tronos (em grego,
thronoi), Dominações (kyriotetes), Virtudes (dynameis), Potestades (exousiai) e Principados (archai).
Por fim, os últimos dois termos são os mais conhecidos:
Arcanjos (em
grego, archàngelos): Citado em Jd 9 (aplicado
a Miguel) e em 1Ts 4,16 (sem especificação). Como vimos na postagem anterior, a
tradição da Igreja atribui o título de “arcanjo” aos três seres celestiais
nomeados nos escritos canônicos (Miguel, Gabriel e Rafael);
Anjos: Por fim, temos
os “anjos” propriamente ditos, presentes diversas vezes na Escritura.
Destacamos aqui duas perícopes: são os anjos que anunciam aos pastores o
nascimento do Salvador (Lc 2,8-14) e a Ressurreição às mulheres (Mt 28,1-8).
O tema da hierarquia angélica teve grande influência na arte
sacra, onde podemos encontrar comumente os seres celestiais divididos em seus
nove coros, e na Liturgia, sendo os coros angélicos citados nas orações, como,
por exemplo, na conclusão do Prefácio dos
anjos, já mencionado acima:
“Pelo Cristo, vosso Filho e Senhor nosso, louvam os Anjos a
vossa glória, as Dominações vos adoram, e, reverentes, vos servem Potestades e
Virtudes. Concedei-nos também a nós associar-nos à multidão dos Querubins e
Serafins, cantando a uma só voz: Santo, Santo, Santo...” (Missal Romano, p. 447).
Na antífona de Comunhão da Missa votiva dos Santos Anjos no Missale Romanum de 1962, por sua vez,
todos os coros celestiais são mencionados: “Angeli,
Archangeli, Throni et Dominationes, Principatus et Potestates, Virtutes
caelorum, Cherubim atque Seraphim, Dominum benedicite in aeternum” [2].
Hierarquia angélica (Batistério de Florença) |
Em sua grande obra O
sentido teológico da Liturgia, Cipriano Vagaggini dedica um capítulo à “Liturgia e o mundo dos anjos” [3],
analisando sua presença nas celebrações litúrgicas. Elencaremos aqui alguns
aspectos mais relevantes, centrando-nos no Rito Romano (o autor explora
também a presença dos anjos nos Ritos Orientais, tema que, por sua riqueza, merece uma postagem própria no futuro).
A primeira referência de Vagaggini é ao anjo do Cânon Romano (Oração
Eucarística I) que, como vimos na postagem anterior, foi suprimido da tradução
brasileira. Recordemos o texto da versão lusitana:
“Humildemente Vos suplicamos, Deus todo-poderoso, que esta
nossa oferenda seja apresentada pelo
vosso santo Anjo no altar celeste, diante da vossa divina majestade” (Ordinário da Missa, Secretariado
Nacional de Liturgia de Portugal).
Embora a tradição costume identificar aqui o Arcanjo Miguel,
Vagaggini propõe uma interpretação à luz do De
sacramentis (Sobre os sacramentos) de Santo Ambrósio, que em uma oração
análoga usa o plural - “pelas mãos dos teus santos anjos” -, atribuindo
portanto a missão de apresentar nossas orações a Deus aos anjos em geral.
Ainda dentro da Prece Eucarística, outra oração que destaca
a ação dos anjos é a conclusão do Prefácio. À luz da visão de Isaías já citada,
aqui a Igreja terrena une-se à Igreja celeste no louvor do Deus “três vezes
Santo”.
O texto de Isaías - “Santo, Santo, Santo, Senhor Deus
do universo! O céu e a terra proclamam vossa glória” (Is 6,3), ao qual foi acrescido um
versículo do Evangelho - “Hosana das alturas! Bendito o que vem em nome
do Senhor! Hosana nas alturas!” (Mt 21,9), teria entrado muito cedo na Liturgia,
segundo parece indicar o Papa São Clemente I em sua Carta aos Coríntios (34,5-7), ainda no século I. De toda forma, o
canto do Sanctus já estava bem
difundido nos séculos IV-V em praticamente todas as Liturgias.
Os anjos adoram o Cordeiro (Detalhe do Retábulo de Ghent) |
Todos os Prefácios do Rito Romano fazem referência aos anjos
antes do Sanctus. Citamos, à guisa de
exemplo, a conclusão do Prefácio próprio da Oração Eucarística IV:
“Eis, pois, diante de vós todos os anjos que vos servem e glorificam sem cessar, contemplando a vossa
glória. Com eles, também nós, e, por nossa voz, tudo o que criastes, celebramos
o vosso nome, cantando a uma só voz: Santo, Santo, Santo...” (Missal Romano, p. 488).
Na tradição dos Padres da Igreja, como recorda Vagaggini,
estava bem consolidada a compreensão de que nos unimos ao mundo angélico na
oferta a Deus do sacrifício de louvor. Em sua obra são citados como exemplos:
- Santo Ambrósio (séc. IV): “Se aqui está o Corpo de Cristo,
aqui também os anjos estão presentes” (De
sacramentis, I, 6);
- São João Crisóstomo (séc. IV-V): “Todo o santuário e o
espaço ao redor do altar está cheio de multidões celestes para honrar Aquele
que está sobre o altar” (De sacerdotio,
VI, 4);
- São Gregório Magno (séc. VI-VII): “Quem, dos fiéis, poderia
duvidar... que naquele mistério de Jesus Cristo os coros dos anjos estejam
presentes, as ínfimas coisas se associem às grandes, as terrenas se conjuguem
às celestes, e do invisível se faça uma só coisa?” (Diálogos, IV, 58) [4].
A presença dos anjos na Missa, além da Anáfora, é destacada
também no canto do Glória. Este hino
de louvor ao Pai e de súplica ao Filho entoado pela Igreja reunida no Espírito
Santo tem seus primeiros versos tomados do hino angélico de Lc 2,14: “Glória a
Deus nas alturas e paz na terra aos homens por ele amados”. Cumpre notar que no Missale Romanum de 1962 o Glória sempre deveria ser rezado ou cantado na Missa votiva dos Santos Anjos, mesmo em
um dia de semana.
Recordemos ainda a particular invocação dos anjos na
Encomendação dos agonizantes e nas Exéquias: “Santos de Deus, vinde em seu
auxílio; Anjos do Senhor, correi ao
seu encontro! Acolhei a sua alma levando-a à presença do Altíssimo” [5].
Podemos concluir esta primeira parte da nossa análise
citando a Constituição Sacrosanctum
Concilium do Concílio Vaticano II, que bem sintetiza o que vimos:
“Pela Liturgia da terra participamos, saboreando-a já, na
Liturgia celeste celebrada na cidade santa de Jerusalém, para a qual, como
peregrinos nos dirigimos e onde Cristo está sentado à direita de Deus, ministro
do santuário e do verdadeiro tabernáculo; por meio dela cantamos ao Senhor um
hino de glória com toda a milícia do
exército celestial” (Sacrosanctum
Concilium, n. 08).
Anjo aponta o caminho do céu (Matteo Rosselli) |
2. A Memória dos Santos
Anjos da Guarda
A devoção aos Anjos da Guarda encontra seu fundamento na
Sagrada Escritura, particularmente nos próprios textos que sempre foram proclamados
na sua celebração:
- Ex 23,20: “Vou enviar um anjo que vá à tua frente, que te guarde pelo caminho e te conduza ao lugar que te preparei”;
- Sl 90,11: “O Senhor deu uma ordem a seus anjos, para em todos os caminhos te guardarem”;
- Mt 18,10: “Não desprezeis nenhum desses pequeninos, pois eu
vos digo que os seus anjos nos céus
veem sem cessar a face do meu Pai que está nos céus”.
À luz dos dados da Escritura, São Basílio Magno (séc. IV)
sintetizou aquilo que se tornou consolidado na fé da Igreja sobre os anjos
custódios: “Cada fiel tem ao seu lado um anjo como protetor e pastor, para
conduzi-lo à vida” (Adversus Eunomium,
3, 1) [6].
Como vimos na postagem anterior, a partir do século X
popularizaram-se as Missas votivas em honra de São Miguel e dos santos anjos na
segunda-feira. Tal devoção pode ter se originado a partir da “Segunda-feira do Anjo”, no dia seguinte à Páscoa, na qual se celebrava o anjo que anunciou às
mulheres a Ressureição do Senhor.
Posteriormente a Missa votiva dos anjos no Missale Romanum foi transferida para a
terça-feira, uma vez que a Missa votiva da Santíssima Trindade passou do
domingo para a segunda-feira (dado que essas celebrações passaram a ser
proibidas nos domingos). Ainda hoje o Missal Romano conserva uma Missa votiva
aos Santos Anjos, que pode ser celebrada em qualquer dia litúrgico livre [7].
Ainda na Idade Média, o propagador da devoção aos Anjos da
Guarda foi São Bernardo (séc. XII), Abade de Clairvaux (Claraval), na França.
Inclusive um dos seus sermões figura no Ofício das Leituras da Memória dos Santos Anjos da Guarda.
São Bernardo de Claraval, Abade (1090-1153) |
A origem propriamente dita dessa Memória, porém, remonta ao
século XV. Em 1411 a Diocese de Valência (Espanha) instituiu uma festa em
honra do Anjo da Guarda da cidade. Com o tempo festas semelhantes começaram a
ser celebradas em outras Dioceses da Espanha e em outros países, como Portugal
e Áustria.
Com a promulgação do Missal de São Pio V em 1570, tais
festas foram suprimidas, tendo sido restabelecidas pouco tempo depois, em 1608,
pelo Papa Paulo V. Em 1670, por sua vez, o Papa Clemente X estende a Memória dos Anjos da Guarda para toda a Igreja de Rito Romano, a ser celebrada no dia 02 de outubro,
data próxima à Festa dos Arcanjos.
Papa Clemente X, que instituiu a Memória dos Anjos |
Com a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II, a Memória
foi conservada, inclusive mantendo boa parte das orações do Missale de 1962. Apenas a oração após a
Comunhão é de nova composição, além do já citado Prefácio dos anjos.
Como a Festa dos Arcanjos, a Memória dos Anjos da Guarda
possui também vários textos próprios para a Liturgia das Horas. Para acessar nossas postagens sobre os três hinos dessa Memória, com seu texto em latim e em português e alguns comentários sobre a sua teologia, clique nos links abaixo:
Ofício das Leituras: Aetérne rerum cónditor (Eterno Autor do mundo);
Laudes: Orbis patrátor óptime (Ó Deus, criando o mundo);
Vésperas: Custódes hóminum psállimus (Aos anjos cantemos).
Notas:
[1] Apenas como exemplo da particular devoção aos anjos no Rito Romano, a invocação aos “Santos Anjos de Deus” é obrigatória em todas as versões da Ladainha de Todos os Santos. Também na Ladainha de Nossa Senhora está é invocada como “Rainha dos anjos” e na antífona final das Completas para a Quaresma como “Domina angelorum” (Senhora dos anjos).
[2] Textos ainda mais antigos mencionam os diversos títulos dos anjos, antes mesmo da sistematização do Areopagita, como a Anáfora das Constituições Apostólicas (final do século IV), que os cita duas vezes: no início do Prefácio e antes do Sanctus. cf. CORDEIRO, José de Leão (Org.). Antologia Litúrgica: Textos Litúrgicos, Patrísticos e Canónicos do Primeiro Milénio. Secretariado Nacional de Liturgia: Fatima, 2003, pp. 432.433.
[3] VAGAGGINI, Cipriano. O sentido teológico da Liturgia. São Paulo: Loyola, 2009, pp. 306-319.
[4] ibid., p. 312.
[5] RITUAL DA UNÇÃO DOS ENFERMOS E SUA ASSISTÊNCIA PASTORAL. Tradução portuguesa da edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 2000, p. 90. Uma versão ligeiramente distinta consta em: NOSSA PÁSCOA: Subsídios para a Celebração da Esperança. São Paulo: Paulus, 2008, p. 79.
[6] Citado por: AUGÉ, Matias. Ano Litúrgico: É o próprio Cristo presente na sua Igreja. São Paulo: Paulinas, 2019, p. 323.
[7] A Missa votiva dos Santos Anjos no Missal Romano (pp. 954-955) traz as mesmas orações da Festa dos Arcanjos. Também podem ser usadas as orações da Memória dos Anjos da Guarda. O mesmo vale para as leituras, tomadas do dia 29 de setembro ou do dia 02 de outubro. Portanto, a Missa votiva dos anjos não acrescenta nenhuma “novidade” ao Missal. No Missale Romanum de 1962, a Missa votiva retomava praticamente todas as orações da Festa de São Miguel, porém com leituras próprias: Ap 5,11-14; Sl 148,1-2; Jo 1,47-51.
Referências:
AUGÉ, Matias. Ano
Litúrgico: É o próprio Cristo presente na sua Igreja. São Paulo: Paulinas,
2019, pp. 320-321; 323-324.
RIGHETTI, Mario. Historia
de la Liturgia, v. I: Introducción general; El año litúrgico; El Breviario.
Madrid: BAC, 1955, pp. 942-943.
VAGAGGINI, Cipriano. O
sentido teológico da Liturgia. São Paulo: Loyola, 2009, pp. 306-319.
Postagem publicada originalmente em 02 de outubro de 2020. Atualizada em 02 de outubro de 2021 com os links para as postagens sobre os três hinos da Memória dos Anjos na Liturgia das Horas.
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