Dentre os livros litúrgicos,
talvez o menos conhecido no Brasil seja o Martirológio
Romano (publicado pela Congregação para o Culto Divino em 2001 e revisado
em 2004), uma vez que ainda não foi traduzido pela Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil (CNBB).
O Martirológio propõe para cada dia do ano o “elogio” dos santos
comemorados na ocasião, bem como “elogios” para as celebrações do Senhor e da
Virgem Maria. Geralmente o “elogio” contém o nome do santo, além da data e
local da sua morte.
Os santos, com efeito, são
celebrados no dia de sua morte, chamado dies
natalis, dia do seu nascimento para o céu. O próprio nome do livro, Martirológio, remete-nos aos mártires,
santos e santas que foram mortos dando testemunho da sua fé.
Tradicionalmente os “elogios” são lidos na véspera, para que a comunidade possa se preparar para as celebrações do dia seguinte, durante a recitação da Liturgia das Horas ou em um momento de oração pessoal ou comunitária (não, porém, na Missa).
O “elogio” mais solene presente no Martirológio é aquele da Solenidade do Natal do Senhor, proferido no dia 24 de dezembro antes da Missa da Noite. Esse texto é conhecido como “Anúncio do Natal” ou “Kalenda”.
O que significa Kalenda?
A palavra “kalenda” está relacionada ao início
do texto desse “Anúncio do Natal” em seu idioma original, isto é, em latim: “Octavo kalendas ianuarii”.
No Martyrologium Romanum, a leitura dos “elogios” de cada dia é
precedida pela indicação do dia segundo dois calendários: o romano e o judaico.
No calendário romano, baseado
no ciclo solar, com doze meses de 30 ou 31 dias (28 ou 29 no caso de
fevereiro), o primeiro dia de cada mês é chamado de “kalendas” do mês (donde vem a própria palavra “calendário”).
Assim, os
últimos dias do mês anterior eram contados de maneira regressiva em relação às kalendas. Portanto, 25 de dezembro
corresponde ao oitavo dia antes das kalendas
de janeiro.
Cristo representado como Emmanuel (Deus-conosco) |
Note-se aqui o profundo
simbolismo do número “oito”: se o número “sete” é associado à criação no Gênesis (cf. Gn 1,1–2,4a), o “oito” indica que com o nascimento de Cristo
começa uma “nova criação”.
Com efeito, no oitavo dia
após o seu nascimento, Jesus é circuncidado (Lc 1,21), unindo-se ao povo da primeira aliança e derramando pela
primeira vez o seu sangue, prefigurando já seu sacrifício para a nossa
salvação. Celebramos esse mistério no primeiro dia do ano civil, juntamente com
a Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus.
O domingo, pois, como dia de
Cristo, “Alfa e Ômega” (Ap 1,8; 22,13),
é ao mesmo tempo o “primeiro” e o “oitavo” dia da semana, remetendo-nos à
criação, à nossa redenção na Ressurreição de Cristo e à consumação da história
na sua última vinda.
Confira a Carta Apostólica Dies Domini do Papa João Paulo II sobre o domingo clicando aqui.
O calendário judaico, por
sua vez, é baseado também no ciclo lunar: o mês sempre inicia na lua nova e tem
em torno de 29 dias. Assim, no “Anúncio do Natal” o texto em latim acrescenta a
referência ao dia do mês hebraico, que varia a cada ano, sendo calculado a
partir da última lua nova.
Por exemplo, em 2021 o dia
25 de dezembro é o 21º dia após a última lua nova, que iniciou no dia 04.
Assim, o canto da Kalenda em latim
começa com: “Octavo kalendas ianuarii.
Luna vicesima prima”.
A tradução oficial para o
português do Brasil, divulgada anualmente pela CNBB em seu Diretório da Liturgia e da Organização da Igreja no Brasil
omite essa referencia ao dia romano e judaico, começando diretamente com o
elenco dos eventos da história da salvação, como veremos a seguir.
Confira nossa postagem sobre o culto aos santos do Antigo Testamento clicando aqui.
O texto da Kalenda
Com efeito, o texto da Kalenda é uma recapitulação de toda a
história do povo de Israel, lida a partir da Encarnação de Jesus Cristo, vista
como o centro da história.
O texto elenca os grandes
acontecimentos da primeira aliança em sua relação com a data do nascimento de
Cristo segundo a carne:
- a criação (Gn 1–2);
- o dilúvio (Gn 6–9);
- a saída de Abraão de Ur
rumo à Terra Prometida (Gn 12);
- o êxodo do Egito (Ex 13–15)
- a unção de Davi como rei (1Sm 16; 2Sm 2.5)
- o edito do rei persa Ciro
II marcando o fim do exílio da Babilônia (2Cr
36; Esd 1)
Menciona-se também a enigmática
profecia de Daniel sobre as “semanas” até a vinda do Messias (Dn 9).
Ao mesmo tempo, se mencionam
três eventos da história dos povos pagãos, indicando que também eles eram
chamados à salvação, como indica o Evangelho
de Mateus ao narrar a visita dos Magos do Oriente ao Menino (Mt 2,1-12), nos quais a Igreja viu
representados todos os povos:
- as Olimpíadas;
- o ano da fundação de Roma;
- o ano do reinado do Imperador
romano Otaviano Augusto (mencionado em Lc
2,1).
O texto menciona ainda o período de
relativa tranquilidade no Império Romano durante o reinado de Augusto. Contudo,
para além da “pax romana”, o Apóstolo
Paulo proporá Jesus Cristo como a verdadeira paz: “Ele é a nossa paz!” (Ef 2,14).
A tradução
oficial para o português do Brasil recuperou um dado que aparece em versões mais
antigas da Kalenda, mas que acabou
ficando de fora da atual edição do Martirológio:
a referência à “sexta idade do mundo”.
Os seis dias da criação com Cristo ao centro (Saltério de São Luís, Leiden) |
Trata-se de uma “teologia da história” popularizada na Idade Média a partir de uma reflexão de Santo Agostinho (†430) em sua obra De catechizandis rudibus (n. 22), cujo título pode ser traduzido como: “A catequese dos principiantes”.
A partir do simbolismo dos sete dias da criação do Gênesis, Agostinho divide a história em seis idades: da criação até o dilúvio; do dilúvio a Abraão; de Abraão a Davi; de Davi ao exílio da Babilônia; do exílio da Babilônia ao nascimento de Cristo; e do nascimento de Cristo até o fim do mundo.
Como se pode ver, trata-se de uma síntese de todos os eventos mencionados anteriormente na Kalenda. A sétima idade, por sua vez, seria o “dia eterno”, que começaria com a última vinda de Cristo.
O Anúncio do Natal conclui
com a referência à própria Encarnação do Senhor por obra do Espírito Santo no
seio da Virgem Maria e ao seu nascimento em Belém. Antes da reforma litúrgica,
previa-se que neste momento todos se ajoelhassem, tal como fazemos no Creio nas
Missas do Natal e da Anunciação do Senhor.
A Kalenda, com efeito, recorda-nos que na celebração litúrgica
entramos no tempo de Deus, o “kairós”:
no Natal, não celebramos o “aniversário” de Jesus, mas o “hoje” da Encarnação. Esse “hoje” é retomado diversas vezes nas
orações e leituras dessa Solenidade. A Liturgia, pois, não é mimese (recordação ou repetição do
passado), mas sim anamnese
(atualização).
O diácono descobre a imagem do Menino Jesus após a Kalenda (24 de dezembro de 2011) |
Em que momento cantar a Kalenda?
O já mencionado Diretório da Liturgia da CNBB orienta entoar a Kalenda após a saudação inicial da Missa da Noite de Natal, antes do Glória, omitindo assim o Ato Penitencial.
Tal orientação parece-nos pouco adequada, uma vez que os textos do Martirológio são lidos sempre fora da Missa. Considerando que se recomenda celebrar uma “vigília” em preparação à Missa da Noite, preferencialmente com a recitação do Ofício das Leituras da Solenidade do Natal do Senhor (cf. Cerimonial dos Bispos, n. 238; Instrução Geral sobre a Liturgia das Horas, n. 215; Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia, n. 110), o lugar mais adequado para o canto da Kalenda é antes da Missa.
Na Basílica de São Pedro no Vaticano tal era o costume durante o pontificado do Papa Bento XVI: o canto da Kalenda concluía a preparação para a Missa da Noite. Nesse momento, um diácono descobria a imagem do Menino Jesus diante do altar, que permanecia coberta durante a “vigília”.
Com o Papa Francisco, por sua vez, a Kalenda passou a ser entoada durante a
procissão de entrada: quando a procissão chega diante do altar, o Papa para e
um cantor entoa a Kalenda. Em
seguida, retoma-se o canto de entrada enquanto o Papa incensa a imagem do
Menino Jesus, venera e incensa o altar. A Missa então se inicia como de
costume.
Esta forma, porém, exige que
se preparem dois cantos de entrada (um antes da Kalenda e um após esta, para a incensação do altar), ou que se
interrompa o canto, que será retomado após a Kalenda. Sugerimos, portanto, que se mantenha o costume de proclamar
o Anúncio do Natal antes da Missa.
De toda forma, a Kalenda
pode ser recitada ou cantada por um sacerdote, um diácono ou um leigo (leitor
ou cantor), do ambão (uma vez que é um texto litúrgico, presente no Martirológio) ou de uma estante.
Para acessar o texto do Anúncio do Natal ou Kalenda clique aqui.
Papa Francisco incensa a imagem do Menino Jesus após a Kalenda (24 de dezembro de 2021) |
Confira também:
Postagem publicada
originalmente em 23 de dezembro de 2015. Revista e ampliada em 24 de novembro
de 2021.
Todos podem cantar a Kalenda?
ResponderExcluirSim, pode ser entoada por um cantor ou leitor leigo, por um diácono ou mesmo pelo sacerdote. No Vaticano é sempre um cantor.
Excluirpode ser lida, ao invés de cantada ?
ExcluirSim. Pode ser lida.
ExcluirOi, André!
ResponderExcluirPaz e bem!
Talvez, você possa me ajudar entender, o motivo no qual na Santa Missa da Noite de Natal, do Papa Francisco, 2015/2016, os sinos e o som do órgão foram sodados, ao final da Kalenda,enquanto o z Papa, se descobria a imagem do Menino Jeusus, e a incensava
Não seria mais correto? Sendo que o Missal, não pede os sinos e acompanhados pelo órgão, no glória, para a Missa da Noite do Senhor...
É sempre o mestre de cerimônias pontifícial que prepara a celebração do santo Padre, o Próprio monsenhor Guido Marini pode ter alterado para esta forma, e como é o Próprio Guido, ele deve ter uma ótima explicação, já que é o mestre da liturgia do sumo pontífice.
ExcluirSalve Maria!
ResponderExcluirEm nossa Capela faremos as Vésperas Solenes antes da Missa.
O correto seria cantar após essa Oração antes do inicio da Missa?
Se sim, o diácono ja deve ficar próximo a Imagem do Menino Jesus para desvela-la?
Está correto sim. A kalenda serviria assim de transição entre a oração das Vésperas e a Missa.
ExcluirO desvelamento da imagem pelo diácono é mais um costume do que uma norma. Mas sim, o diácono pode esperar próximo à imagem para desvelá-la.
pax ! gostaria de saber o lugar exato de onde se entoa as kalendas se do ambao ou estante ou do presepio , visto que não faz parte da liturgia( para liturgia) nao e texto biblico e nem ação liturgicw. Obrigado
ResponderExcluirNa verdade o texto da kalenda faz parte sim da Liturgia, uma vez que consta no Martirológio Romano, um livro litúrgico aprovado.
ExcluirNão há uma norma sobre onde deve ser cantada a kalenda: no Vaticano sempre se usa o ambão, talvez em analogia ao Precônio Pascal e ao Anúncio das Solenidades Móveis na Epifania.
É ná missa do dia 24 ou do dia 25 que s Kalenda é cantada?
ResponderExcluirApenas na Missa da Noite de Natal (dia 24), a primeira das Missas dessa solenidade. Assim como a Proclamação da Páscoa é cantada apenas na Vigília Pascal, e não na Missa do dia.
ExcluirQuais são as 6 idades do mundo?
ResponderExcluirQuais são as 6 idades do mundo?
ResponderExcluirÉ uma tradição que se popularizou na Idade Média, inspirada por um escrito de Santo Agostinho. A partir do simbolismo dos sete dias da criação do Gênesis, Agostinho divide o tempo em seus idades:
ExcluirPrimeira idade: da criação até o dilúvio;
Segunda idade: do dilúvio até Abraão;
Terceira idade: de Abraão até Davi;
Quarta idade: de Davi até o exílio da Babilônia;
Quinta idade: do exílio da Babilônia até o nascimento de Cristo;
Sexta idade: do nascimento de Cristo até o fim do mundo.
A sétima idade seria o "dia eterno" que começaria com a última vinda de Cristo.
No nosso mosteiro cantamos o Anúncio antes do Ofício das I Vésperas do Natal, visto que o celebramos às 17h e a Santa MIssa é celebrada meia noite.
ResponderExcluirBoa noite! Na minha paróquia vão cantar a Kalenda antes do Glória, no lugar do Ato Penitencial. É correto?
ResponderExcluirSabendo que a Kalenda vai ser cantada antes do Glória, ao término do canto pode-se desvelar o Menino Jesus e aproveitar o canto do Glória, com os sinos, e incensar a imagem?
Desde já agradeço.
Como indicamos na postagem, o mais correto é cantar o Anúncio do Natal antes da Missa, uma vez que este não faz parte do rito da Missa. Porém, o Diretório Litúrgico da CNBB prevê a possibilidade de entoá-lo antes do Glória.
ExcluirO desvelamento da imagem e a incensação não fazem parte do rito, mas creio que nesse caso possam ser adaptados, sendo realizados após a Kalenda.
Podemos deixar de fazer o ato penitencial quando fazemos o Kalendas?
ResponderExcluirO Diretório Litúrgico da CNBB prevê esta possibilidade. Porém, como indicamos na postagem, o mais correto é cantar a Kalenda antes da Missa.
ExcluirMas também pode ser feito o ato penitencial a Kalenda e depois o glória,porque já é uma noite que não se tira nada,tem flores,canticos e alegria,cada rito com seu espaço.
ExcluirA orientação de entoar a Kalenda após a saudação inicial e antes do Glória é dada pela CNBB em seu Diretório da Liturgia.
ExcluirTal orientação está baseada no n. 46 da Instrução Geral sobre o Missal Romano (3ª edição). Com efeito, quando se introduz um rito no início da Missa, geralmente o ato penitencial é omitido.
Porém, a Kalenda é um texto do Martirológio Romano. Infelizmente não temos este livro traduzido para o português do Brasil, mas nele é dito que seus textos devem ser proferidos sempre fora da Missa.
Assim, o lugar mais adequado para a Kalenda ou Proclamação do Natal é antes da Missa da Noite.
Boa tarde meu irmão.
ResponderExcluirO Anúncio do Natal pode ser feito em uma Celebração da Palavra?
Sim. Em relação à Proclamação do Natal, valem para a Celebração da Palavra as mesmas orientações que demos a respeito da Missa.
ExcluirExiste as melodias certas de se cantar a kalenda ou o próprio cantor cria ?
ResponderExcluirNão há uma melodia oficial para o canto da kalenda.
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