“Santo Deus, Santo
Forte, Santo Imortal, tende piedade de nós!” [1]
Com o Triságion, o
hino ao Deus Três Vezes Santo, a Igreja do Oriente e do Ocidente louva a Santíssima e Indivisível Trindade. Nesta postagem da nossa série sobre os ícones das festas litúrgicas, meditaremos sobre o célebre ícone da Trindade de
Andrej Rublev.
1. Origem e conteúdo da
festa
A Igreja de Rito Romano celebra a Solenidade da Santíssima
Trindade no I domingo após a Solenidade de Pentecostes, 57 dias após a Páscoa. As origens desta
festa remontam ao início do século IX, quando se estabeleceram nos mosteiros Missas
votivas para todos os dias da semana, correspondendo ao domingo a Missa votiva da
Santíssima Trindade.
Logo passou-se a celebrar a Trindade de maneira especial no primeiro domingo após o Pentecostes. Inicialmente a celebração encontrou
resistência: o Papa Alexandre II (†1073) não aceitou instituir a
festa, argumentando que todo domingo e mesmo todo dia era celebração da
Trindade. Somente em 1334 a festa é instituída pelo Papa João XXII (†1334), como uma
celebração síntese da obra trinitária no Mistério Pascal.
Para saber mais, confira nossa postagem sobre a história da Solenidade da Santíssima Trindade.
No Oriente, porém, não há uma festa específica para esse
mistério, pois “a festa de Pentecostes
celebra também a festa da Santíssima Trindade... porque justamente com a descida do Espírito Santo sobre os Apóstolos
se completou a revelação do mistério trinitário” [2]. No
domingo após o Pentecostes, por sua vez, as igrejas de Rito Bizantino celebram a Festa de Todos os Santos, pois o Espírito é a fonte da santidade [3].
Portanto, no Domingo de Pentecostes muitas igrejas orientais expõem para a veneração dos fiéis o ícone da Trindade, cujo modelo mais famoso é aquele realizado pelo grande iconógrafo russo Andrei Rublev (†1430), que faz uma interpretação profundamente mística do
mistério da festa.
Ícone da Trindade - Andrej Rublev (Galeria Tretyakov, Moscou) |
Como a única Pessoa da Trindade a revelar-se de maneira
visível foi o Filho, assumindo a nossa condição humana (Jo 1,14; 14,9; Cl 1,15; 1Jo 1,1-3), a tradição bizantina
não costuma representar o Pai e o Espírito Santo. Assim, Rublev recorre a uma
das prefigurações da Trindade no Antigo Testamento para representá-la: a hospitalidade de
Abraão (em grego, filoxenia), que acolheu três misteriosos viajantes em sua tenda, junto ao carvalho de Mambré (Gn
18,1-14).
Desde o século IV este episódio é lido em chave trinitária: autores como Santo
Hilário de Poitiers (†367) ou Santo Agostinho (†430) assim resumem esta interpretação: Abraão, tendo visto os três, adora a um (Tres vidit, unum adoravit) [4]. A unidade e a distinção das três Pessoas estão expressas pelos três
anjos: todos com o mesmo rosto, o rosto de Cristo, “imagem do Deus invisível”
(Cl 1,15), e ao mesmo tempo cada um com sua especificidade, representada nos gestos e nas
vestes.
Uma das orações das vésperas de Pentecostes, inspirada no Triságion, sintetiza o mistério deste ícone:
“Santo Deus, que
criaste todas as coisas por meio do Filho, com a cooperação do Espírito Santo.
Santo Forte, por cujo
meio conhecemos o Pai e o Espírito Santo, e que habitou em nosso mundo.
Santo Imortal,
Espírito consolador, que procede do Pai e habita no Filho.
Trindade Santa, glória
a ti” [5].
2. O ícone
a) O ambiente:
O
ícone situa-se ao ar livre, pois Abraão recebe os três viajantes à entrada da
tenda. Encontramos no fundo uma casa, uma releitura da tenda do patriarca (e ao
mesmo tempo um símbolo da Igreja), o carvalho de Mambré e uma montanha, a qual situa o ícone no contexto de uma teofania (manifestação de Deus).
Os três anjos, cada um portando um bastão de peregrino, estão
sentados em uma mesa, revestida de uma toalha branca, sobre a qual repousa um
cálice e nele o cordeiro oferecido por Abraão. Os três personagens repousam
seus pés sobre estrados ou pedestais. “O
trono sobre o pedestal indica a diferença entre o mundo terrestre e o mundo
celeste e a primazia deste sobre a terra. O fato de que os três se sentem sobre
os mesmos tronos quer significar que têm a mesma dignidade” [6].
Na versão de Rublev não estão presentes Abraão e Sara, mas
em outras versões desse ícone podemos encontrá-los servindo à mesa ou à distância, junto à árvore.
Sua presença discreta ou sua ausência quer chamar a atenção para a
centralidade dos três anjos, identificados com as três Pessoas da Trindade.
b) Deus Santo: O Pai
O
primeiro anjo, à esquerda de quem contempla o ícone (à direita do anjo central)
costuma ser associado à Pessoa de Deus Pai. É o que tem a cabeça reta e para o qual
tendem as cabeças dos outros dois: no Oriente, é comum interpretar o Filho e o
Espírito Santo como as “duas mãos” do Pai.
As vestes têm um forte acento simbólico: este anjo veste uma
túnica azul sob um grande manto de uma cor indecifrável, que a encobre quase
completamente. O azul, como cor do céu, é a representação da divindade,
presente nos três anjos. A essência do Pai, isto é, sua divindade, só é visível
junto ao peito, isto é, junto ao coração, pois “Deus é amor” (1Jo 4,8.16).
A cor indefinida do manto destaca a impenetrabilidade do
mistério de Deus, como reza uma das orações de Pentecostes dirigida ao Pai: “Senhor imaculado... unicamente Tu possuis a imortalidade e vives
na luz impenetrável” [7].
Atrás desse anjo encontramos a casa, que pode ser
interpretada também como a criação, recordando-nos que o Pai é o
construtor, “o Deus que fez o mundo e tudo o que nele existe, o Senhor do céu e
da terra” (At 17,24).
c) Deus Forte: O Filho
O anjo
do centro é o único que veste uma túnica vermelha sob o manto azul: sua
divindade “encobre” a humanidade da qual se revestiu. Trata-se, portanto, da
pessoa de Deus Filho, Jesus Cristo, Senhor nosso, verdadeiro Deus e verdadeiro homem.
Além da túnica vermelha da Encarnação, possui também a
estola dourada sobre o ombro direito, símbolo de sua dignidade sacerdotal e
régia. Para saber mais, confira nossa postagem sobre o ícone de Cristo Salvador.
Atrás desse anjo está o carvalho, que aqui se torna a
árvore da redenção, “o tronco que brotou da raiz de Jessé” (Is 11,1). Ao mesmo
tempo, a árvore simboliza a cruz, sobre a qual Cristo ofereceu livremente a
própria vida.
“O arbusto, assim como
o rosto e a pessoa do anjo, inclinam-se para o anjo da esquerda: ‘Meu alimento
é fazer a vontade d’Aquele que me enviou’ (Jo 4,32)” [8]. Seu sacrifício
oferecido na cruz está representado também pelo cálice à sua frente: enquanto o Pai
abençoa com sua mão direita, o Filho tem sua mão estendida para o cálice (cf. Mt
26,39 e paralelos).
No cálice, além disso, está o cordeiro imolado, que é o
próprio Cristo, “Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (Jo 1,19). O
cálice representa ao mesmo tempo, pois, os mistérios da Paixão e da Eucaristia.
d) Deus Imortal: O Espírito Santo
Por fim, o anjo à direita de quem contempla o ícone
(à esquerda do anjo central) é o Deus Espírito Santo, revestido da túnica azul da
divindade sob um manto verde.
Na tradição bizantina, a cor verde
é sempre associada ao Espírito: Ele é “o Espírito da vida. É quem dá a vida, e em quem tudo tem origem. É o
terceiro termo do Amor divino, o Espírito de amor” [9].
Ele é a origem do movimento que
faz com que tudo - o Filho, a montanha, a árvore - aponte para o Pai: Ele é o
“sopro de Deus”, o Espírito da verdade pelo qual conhecemos o Pai e o Filho, o
Espírito de amor que nos impulsiona à comunhão.
“Assim como o Pai é o construtor e o Filho o rebento de nossa fé, o
Espírito Santo é o consolador da nossa fé, Aquele que ilumina nossa mente”
[10].
Assim como o Pai, Ele abençoa com a
mão direita, mas diferentemente deste, cuja mão está no ar, o terceiro anjo tem a
sua mão sobre a mesa, junto ao cálice. Trata-se de uma referência à epiclese,
isto é, à invocação do Espírito Santo sobre os dons do pão e do vinho na
Celebração Eucarística, que os transforma no Corpo e no Sangue do Senhor.
“Vimos a verdadeira luz, recebemos o Espírito celeste, encontramos a fé
verdadeira, adorando a indivisível Trindade, pois foi ela que nos salvou” [11]
Notas:
[1] PASSARELLI, Gaetano. O
ícone da Trindade. São Paulo: Ave Maria, 1996, p. 36. Coleção: Iconostásio, 03.
[2] DONADEO, Madre Maria. O Ano Litúrgico Bizantino. São Paulo: Ave Maria, 1998, p. 75.
[3] ibid., pp.
111-114.
[4] cf. HILÁRIO DE POITIERS. Tratado sobre a Santíssima Trindade, IV, 25. São Paulo: Paulus, 2005, p. 67. Coleção: Patrística, 22; AGOSTINHO, Contra Maximinum, Livro 2, cap. XXVI, 7.
[5] PASSARELLI, op.
cit., p. 19.
[6] ibid., p. 23.
[7] ibid., p. 25.
[8] ibid., p. 29.
[9] ibid., pp.
31-32.
[10] ibid., p. 33.
[11] DONADEO, op. cit.,
p. 75.
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