domingo, 7 de junho de 2020

O ícone da Trindade

“Santo Deus, Santo Forte, Santo Imortal, tende piedade de nós!”­ [1]

Com o Triságion, o hino ao Deus Três Vezes Santo, a Igreja do Oriente e do Ocidente louva a Santíssima e Indivisível Trindade. Nesta postagem da nossa série sobre os ícones das festas litúrgicas, meditaremos sobre o célebre ícone da Trindade de Andrej Rublev.

1. Origem e conteúdo da festa

A Igreja de Rito Romano celebra a Solenidade da Santíssima Trindade no I domingo após a Solenidade de Pentecostes, 57 dias após a Páscoa. As origens desta festa remontam ao início do século IX, quando se estabeleceram nos mosteiros Missas votivas para todos os dias da semana, correspondendo ao domingo a Missa votiva da Santíssima Trindade.

Logo passou-se a celebrar a Trindade de maneira especial no primeiro domingo após o Pentecostes. Inicialmente a celebração encontrou resistência: o Papa Alexandre II (†1073) não aceitou instituir a festa, argumentando que todo domingo e mesmo todo dia era celebração da Trindade. Somente em 1334 a festa é instituída pelo Papa João XXII (†1334), como uma celebração síntese da obra trinitária no Mistério Pascal.

Para saber mais, confira nossa postagem sobre a história da Solenidade da Santíssima Trindade.

No Oriente, porém, não há uma festa específica para esse mistério, pois “a festa de Pentecostes celebra também a festa da Santíssima Trindade... porque justamente com a descida do Espírito Santo sobre os Apóstolos se completou a revelação do mistério trinitário” [2]. No domingo após o Pentecostes, por sua vez, as igrejas de Rito Bizantino celebram a Festa de Todos os Santos, pois o Espírito é a fonte da santidade [3].

Portanto, no Domingo de Pentecostes muitas igrejas orientais expõem para a veneração dos fiéis o ícone da Trindade, cujo modelo mais famoso é aquele realizado pelo grande iconógrafo russo Andrei Rublev (†1430), que faz uma interpretação profundamente mística do mistério da festa.

Ícone da Trindade - Andrej Rublev
(Galeria Tretyakov, Moscou)

Como a única Pessoa da Trindade a revelar-se de maneira visível foi o Filho, assumindo a nossa condição humana (Jo 1,14; 14,9; Cl 1,15; 1Jo 1,1-3), a tradição bizantina não costuma representar o Pai e o Espírito Santo. Assim, Rublev recorre a uma das prefigurações da Trindade no Antigo Testamento para representá-la: a hospitalidade de Abraão (em grego, filoxenia), que acolheu três misteriosos viajantes em sua tenda, junto ao carvalho de Mambré (Gn 18,1-14).

Desde o século IV este episódio é lido em chave trinitária: autores como Santo Hilário de Poitiers (†367) ou Santo Agostinho (†430) assim resumem esta interpretação: Abraão, tendo visto os três, adora a um (Tres vidit, unum adoravit) [4]. A unidade e a distinção das três Pessoas estão expressas pelos três anjos: todos com o mesmo rosto, o rosto de Cristo, “imagem do Deus invisível” (Cl 1,15), e ao mesmo tempo cada um com sua especificidade, representada nos gestos e nas vestes.

Uma das orações das vésperas de Pentecostes, inspirada no Triságion, sintetiza o mistério deste ícone:

Santo Deus, que criaste todas as coisas por meio do Filho, com a cooperação do Espírito Santo.
Santo Forte, por cujo meio conhecemos o Pai e o Espírito Santo, e que habitou em nosso mundo.
Santo Imortal, Espírito consolador, que procede do Pai e habita no Filho.
Trindade Santa, glória a ti” [5].

2. O ícone

a) O ambiente:

O ícone situa-se ao ar livre, pois Abraão recebe os três viajantes à entrada da tenda. Encontramos no fundo uma casa, uma releitura da tenda do patriarca (e ao mesmo tempo um símbolo da Igreja), o carvalho de Mambré e uma montanha, a qual situa o ícone no contexto de uma teofania (manifestação de Deus).

Os três anjos, cada um portando um bastão de peregrino, estão sentados em uma mesa, revestida de uma toalha branca, sobre a qual repousa um cálice e nele o cordeiro oferecido por Abraão. Os três personagens repousam seus pés sobre estrados ou pedestais. “O trono sobre o pedestal indica a diferença entre o mundo terrestre e o mundo celeste e a primazia deste sobre a terra. O fato de que os três se sentem sobre os mesmos tronos quer significar que têm a mesma dignidade” [6].

Na versão de Rublev não estão presentes Abraão e Sara, mas em outras versões desse ícone podemos encontrá-los servindo à mesa ou à distância, junto à árvore. Sua presença discreta ou sua ausência quer chamar a atenção para a centralidade dos três anjos, identificados com as três Pessoas da Trindade.


b) Deus Santo: O Pai

O primeiro anjo, à esquerda de quem contempla o ícone (à direita do anjo central) costuma ser associado à Pessoa de Deus Pai. É o que tem a cabeça reta e para o qual tendem as cabeças dos outros dois: no Oriente, é comum interpretar o Filho e o Espírito Santo como as “duas mãos” do Pai.

As vestes têm um forte acento simbólico: este anjo veste uma túnica azul sob um grande manto de uma cor indecifrável, que a encobre quase completamente. O azul, como cor do céu, é a representação da divindade, presente nos três anjos. A essência do Pai, isto é, sua divindade, só é visível junto ao peito, isto é, junto ao coração, pois “Deus é amor” (1Jo 4,8.16).

A cor indefinida do manto destaca a impenetrabilidade do mistério de Deus, como reza uma das orações de Pentecostes dirigida ao Pai: “Senhor imaculado... unicamente Tu possuis a imortalidade e vives na luz impenetrável” [7].

Atrás desse anjo encontramos a casa, que pode ser interpretada também como a criação, recordando-nos que o Pai é o construtor, “o Deus que fez o mundo e tudo o que nele existe, o Senhor do céu e da terra” (At 17,24).

c) Deus Forte: O Filho

O anjo do centro é o único que veste uma túnica vermelha sob o manto azul: sua divindade “encobre” a humanidade da qual se revestiu. Trata-se, portanto, da pessoa de Deus Filho, Jesus Cristo, Senhor nosso, verdadeiro Deus e verdadeiro homem.

Além da túnica vermelha da Encarnação, possui também a estola dourada sobre o ombro direito, símbolo de sua dignidade sacerdotal e régia. Para saber mais, confira nossa postagem sobre o ícone de Cristo Salvador.

Atrás desse anjo está o carvalho, que aqui se torna a árvore da redenção, “o tronco que brotou da raiz de Jessé” (Is 11,1). Ao mesmo tempo, a árvore simboliza a cruz, sobre a qual Cristo ofereceu livremente a própria vida.

O arbusto, assim como o rosto e a pessoa do anjo, inclinam-se para o anjo da esquerda: ‘Meu alimento é fazer a vontade d’Aquele que me enviou’ (Jo 4,32)” [8]. Seu sacrifício oferecido na cruz está representado também pelo cálice à sua frente: enquanto o Pai abençoa com sua mão direita, o Filho tem sua mão estendida para o cálice (cfMt 26,39 e paralelos).

No cálice, além disso, está o cordeiro imolado, que é o próprio Cristo, “Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (Jo 1,19). O cálice representa ao mesmo tempo, pois, os mistérios da Paixão e da Eucaristia.

d) Deus Imortal: O Espírito Santo

Por fim, o anjo à direita de quem contempla o ícone (à esquerda do anjo central) é o Deus Espírito Santo, revestido da túnica azul da divindade sob um manto verde.

Na tradição bizantina, a cor verde é sempre associada ao Espírito: Ele é “o Espírito da vida. É quem dá a vida, e em quem tudo tem origem. É o terceiro termo do Amor divino, o Espírito de amor” [9].

Ele é a origem do movimento que faz com que tudo - o Filho, a montanha, a árvore - aponte para o Pai: Ele é o “sopro de Deus”, o Espírito da verdade pelo qual conhecemos o Pai e o Filho, o Espírito de amor que nos impulsiona à comunhão.

Assim como o Pai é o construtor e o Filho o rebento de nossa fé, o Espírito Santo é o consolador da nossa fé, Aquele que ilumina nossa mente” [10].

Assim como o Pai, Ele abençoa com a mão direita, mas diferentemente deste, cuja mão está no ar, o terceiro anjo tem a sua mão sobre a mesa, junto ao cálice. Trata-se de uma referência à epiclese, isto é, à invocação do Espírito Santo sobre os dons do pão e do vinho na Celebração Eucarística, que os transforma no Corpo e no Sangue do Senhor.

Vimos a verdadeira luz, recebemos o Espírito celeste, encontramos a fé verdadeira, adorando a indivisível Trindade, pois foi ela que nos salvou” [11]


Notas:
[1] PASSARELLI, Gaetano. O ícone da Trindade. São Paulo: Ave Maria, 1996, p. 36. Coleção: Iconostásio, 03.
[2] DONADEO, Madre Maria. O Ano Litúrgico Bizantino. São Paulo: Ave Maria, 1998, p. 75.
[3] ibid., pp. 111-114.
[4] cf. HILÁRIO DE POITIERS. Tratado sobre a Santíssima Trindade, IV, 25. São Paulo: Paulus, 2005, p. 67. Coleção: Patrística, 22; AGOSTINHO, Contra Maximinum, Livro 2, cap. XXVI, 7. 
[5] PASSARELLI, op. cit., p. 19.
[6] ibid., p. 23.
[7] ibid., p. 25.
[8] ibid., p. 29.
[9] ibid., pp. 31-32.
[10] ibid., p. 33.
[11] DONADEO, op. cit., p. 75.

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