Concluindo
as Catequeses do Papa João Paulo II sobre os salmos e cânticos das Laudes da I
semana do Saltério, propomos suas meditações sobre os textos do sábado,
proferidas nos dias 14 de novembro (Sl 118,115-152), 21 de novembro (Ex
15,1-4b.8-13.17-18) e 28 de novembro de 2001 (Sl 116).
21. Meditação sobre a Palavra
de Deus na Lei: Sl 118(119),145-152
14 de novembro de 2001
1. O que a Liturgia de
Laudes nos propõe no sábado da I semana é uma única estrofe tirada do Salmo
118, uma monumental oração de vinte e duas estrofes, tantas quantas são as
letras do alfabeto hebraico. Cada estrofe se caracteriza por uma letra do
alfabeto, com que começa cada um dos versículos; a ordem das estrofes segue a do
alfabeto. A que proclamamos agora é a estrofe número dezenove, correspondente à
letra qof.
Esta premissa, um pouco
superficial, permite-nos compreender melhor o significado desse cântico em
honra da Lei divina. Ele é semelhante a uma música oriental, cujas modulações
sonoras parecem nunca mais ter fim e elevam-se ao céu numa repetição que
envolve a mente e os sentidos, o espírito e o corpo daquele que reza.
2. Numa sequência que se
desenvolve do ‘alef ao tau, isto é, da primeira à última letra
do alfabeto - de A a Z diríamos nós com o alfabeto latino -, aquele que reza
expande-se no louvor da Lei de Deus, que adota como lâmpada para os seus passos
no caminho da vida, tantas vezes obscuro (cf.
v. 105).
Diz-se que o grande filósofo
e cientista Blaise Pascal recitava diariamente este Salmo, que é o maior de
todos, enquanto o teólogo Dietrich Bonhoeffer, assassinado pelos nazistas em
1945, o transformava numa oração viva e atual, escrevendo: “Indubitavelmente, o
Salmo 118 é pesado pela sua extensão e monotonia, mas nós devemos avançar
palavra por palavra, frase por frase, muito lenta e pacientemente.
Descobriremos então que as aparentes repetições são, na realidade, aspectos
novos de uma só e mesma realidade: o amor pela Palavra de Deus. Como este amor
não pode ter fim, também não o terão as palavras que o confessam. Elas podem
acompanhar-nos ao longo de toda a nossa vida, e na sua simplicidade tornam-se
oração da criança, do adulto e do idoso” (Rezar os Salmos com Cristo, Bréscia, 1978, p. 48).
3. O fato de repetir, além
de ajudar a memória no canto coral, é ainda um modo de estimular a adesão
interior e o abandono confiante nos braços de Deus, invocado e amado. Entre as
repetições do Salmo 118, queremos assinalar uma muito significativa. Cada um
dos 176 versículos de que é composto este louvor à Torah, isto é, à Lei e à Palavra divina,
contém, pelo menos, uma das oito palavras com que se define a própria Torah: lei, palavra, testemunho, juízo,
prescrição, decreto, preceito, ordem. Celebra-se assim a Revelação divina, que
é manifestação do mistério de Deus, mas também guia moral para a existência do
fiel.
Deus e o homem estão, deste
modo, unidos por um diálogo composto de palavras e de obras, de ensino e
escuta, de verdade e de vida.
4. Voltemos, agora, à nossa
estrofe (vv. 145-152), que se adapta bem à atmosfera das Laudes matutinas. De
fato, a cena, que é posta no centro deste conjunto de oito versículos, é
noturna, mas aberta ao novo dia. Depois de uma longa noite de espera e de
vigília de oração no templo, quando a aurora aparece no horizonte e começa a
Liturgia, o fiel está certo de que o Senhor ouvirá aquele que passou a noite a
rezar, esperar e a meditar a Palavra divina. Confortado por esta consciência,
perante a jornada que se abre diante dele, não temerá mais os perigos. Sabe que
não será arrastado pelos seus perseguidores que, traiçoeiramente, o atacam (v.
150), porque o Senhor está ao seu lado.
"Chego antes que a aurora e vos imploro e espero confiante em vossa lei" (Sl 118,147) |
5. A estrofe exprime uma
intensa oração: “Clamo de todo o coração: Senhor, ouvi-me! (...) Chego
antes que a aurora e vos imploro, e espero confiante em vossa lei” (vv
145.147). No Livro das Lamentações
lê-se este convite: “Levanta-te, grita durante a noite, ao começo das
vigílias; derrama o teu coração como água ante a face do Senhor; ergue para Ele
as mãos” (Lm 2,19). Santo
Ambrósio repetia: “Não sabes, ó homem, que em cada dia deves oferecer a
Deus as primícias do teu coração e da tua voz? Apressa-te, ao alvorecer, para
levar à igreja as primícias da tua piedade” (Exp. in ps. CXVIII: PL 15, 1476A).
Ao mesmo tempo, a nossa
estrofe é ainda a exaltação de uma certeza: nós não estamos sós, porque Deus
escuta e intervém. Diz aquele que reza: “Vós estais perto, ó Senhor, perto
de mim” (v. 151). Também o dizem outros salmos: “Aproximai-Vos de mim e
salvai-me, respondei aos meus inimigos, resgatando-me” (Sl 68,19); “O Senhor está perto dos
aflitos do coração e salva os de espírito torturado” (Sl 33,19).
22. Hino de vitória após a
passagem do Mar Vermelho: Ex 15,1-4b.8-13.17-18
21 de novembro de 2001
1. Este hino de vitória (Ex 15,1-18), proposto para as Laudes
do sábado da I semana, conduz-nos a um momento-chave da história da salvação:
ao acontecimento do êxodo, quando Israel foi salvo por Deus numa situação
humanamente desesperada. Os fatos são conhecidos: depois de uma longa
escravidão no Egito, já a caminho para a terra prometida, os hebreus tinham
sido alcançados pelo exército do faraó, e nada os subtrairia à destruição se o
Senhor não tivesse intervindo com a sua mão poderosa. O hino não tarda a
descrever a arrogância dos desígnios do inimigo armado: “O inimigo tinha
dito: ‘Hei de segui-los e alcançá-los! Repartirei os seus despojos’” (v.
9).
Mas que poder tem o maior
dos exércitos diante da onipotência divina? Deus ordena que o mar abra um
carreiro para deixar passar o povo atacado e que o feche quando passam os
agressores: “Soprou o vosso vento, e o mar os recobriu; afundaram como
chumbo entre as águas agitadas” (v. 10).
São imagens fortes, que
querem mostrar a medida da grandeza de Deus, enquanto exprimem a admiração de
um povo que quase não acredita no que vê, e se abandona em uníssono num cântico
comovido: “O Senhor é minha força, é a razão do meu cantar, pois foi Ele
neste dia para mim libertação! Ele é meu Deus e o louvarei, Deus de meu pai e o
honrarei” (v. 2).
2. O cântico não fala apenas
da libertação obtida; indica também a sua finalidade positiva, ou seja, a
entrada na casa de Deus para viver em comunhão com Ele: “O povo libertado
conduzistes com carinho e o levastes com poder à vossa santa habitação” (v.
13).
Compreendido desta forma,
este acontecimento não esteve só na base da aliança entre Deus e o seu povo,
mas tornou-se o “símbolo” de toda a história da salvação. Em muitas outras
ocasiões Israel conhecerá situações análogas, e o êxodo se atualizará pontualmente.
De maneira especial, aquele acontecimento prefigura a grande libertação que
Cristo realizará com a sua Morte e Ressurreição.
Por isso o nosso hino é
cantado de modo especial na Liturgia da Vigília Pascal, para ilustrar com a
intensidade das suas imagens o que se realizou em Cristo. N’Ele fomos salvos
não só de um opressor humano, mas daquela escravidão de Satanás e do pecado,
que desde as origens pesa sobre o destino da humanidade. Com Ele a humanidade
põe-se de novo a caminho, pelas estradas que conduzem à casa do Pai.
3. Esta libertação, já
realizada no mistério e presente no Batismo como uma semente de vida destinada
a crescer, alcançará a sua plenitude no fim dos tempos, quando Cristo voltar
glorioso e entregar “o Reino a Deus Pai” (1Cor 15,24).
A Liturgia das Horas convida-nos
a olhar precisamente para este horizonte final, escatológico, introduzindo o
nosso cântico com uma citação do Apocalipse:
“Todos aqueles que saíram vitoriosos do confronto com a besta, entoavam o
cântico de Moisés, o servo de Deus” (cf. Ap 15,2.3).
No final dos tempos, se
realizará plenamente para todos os que foram salvos aquilo que o acontecimento
do êxodo prefigurava e a Páscoa de Cristo realizou de maneira definitiva, mas
aberto ao futuro. De fato, a nossa salvação é real e profunda, mas situa-se
entre o “já” e o “ainda não” da condição terrena, como nos recorda o Apóstolo
Paulo: “Porque na esperança é que fomos salvos” (Rm 8,24).
4. “Ao Senhor quero cantar,
pois fez brilhar a sua glória” (Ex 15,1).
Pondo nos nossos lábios estas palavras do antigo hino, a Liturgia das Laudes
convida-nos a orientar o nosso dia para o horizonte da história da salvação.
Esta é a forma cristã de compreender o passar do tempo. Nos dias que se
acumulam não há uma fatalidade que nos oprime, mas um desígnio que se desvenda
lentamente, e que os nossos olhos devem aprender a ler como em filigrana.
Os Padres da Igreja eram
particularmente sensíveis a esta perspectiva histórico-salvífica, e gostavam de
ler os fatos relevantes do Antigo Testamento, do dilúvio do tempo de Noé à
chamada de Abraão, da libertação do êxodo ao regresso dos hebreus depois do
exílio da Babilônia, como “prefigurações” de acontecimentos futuros,
reconhecendo naqueles fatos um valor “arquetípico”: neles eram
prenunciadas as características fundamentais que se iriam repetir, de certa
forma, durante toda a história humana.
5. Contudo, já os profetas
tinham lido os acontecimentos da história da salvação mostrando o seu sentido
sempre atual e indicando a sua realização plena no futuro. Desta forma, ao
meditar sobre o mistério da aliança estabelecida por Deus com Israel, eles
falam de uma “nova aliança” (Jr 31,31; cf. Ex 36,26-27), na qual a lei de Deus seria
escrita no próprio coração do homem. Não é difícil ver nesta profecia a nova
aliança estabelecida no sangue de Cristo e realizada através do dom do
Espírito. Ao recitar este hino de vitória do antigo êxodo à luz do êxodo
pascal, os fiéis podem viver a alegria de se sentirem Igreja peregrina no
tempo, rumo à Jerusalém celeste.
6. Por conseguinte, trata-se
de contemplar com admiração sempre renovada tudo o que Deus dispôs para o seu
Povo: “Vós, Senhor, o levareis e o plantareis em vosso monte, no lugar que
preparastes para a vossa habitação, no Santuário construído pelas vossas próprias
mãos” (Ex 15,17).
O hino de vitória não exprime o triunfo do homem, mas o triunfo de Deus. Não é
um cântico de guerra, é um cântico de amor.
Deixando que os nossos dias
sejam invadidos por este estremecimento de louvor dos antigos hebreus, nós caminhamos
pelas estradas do mundo, cheias de insídias, de perigos e de sofrimentos, com a
certeza de estarmos envolvidos pelo olhar misericordioso de Deus: nada pode
resistir ao poder do seu amor.
23. Louvor ao Deus misericordioso:
Sl 116(117),1-2
28 de novembro de 2001
1. Este é o Salmo mais
curto, composto no original hebraico apenas por dezessete palavras, das quais
nove são particularmente relevantes. É uma pequena doxologia, isto é, um
cântico essencial de louvor, que idealmente poderia servir de conclusão a
orações hínicas mais amplas. Assim se verificou por vezes na Liturgia, um pouco
como acontece com o nosso “Gloria
Patri”, com o qual concluímos a
recitação de qualquer salmo.
Na verdade, estas poucas
palavras de oração revelam-se significativas e profundas para exaltar a aliança
entre o Senhor e o seu povo, no âmbito de uma perspectiva universal. Nesta
luz, o primeiro versículo do Salmo é tomado pelo Apóstolo Paulo para
convidar todos os povos do mundo a glorificar Deus. De fato, ele escreve aos
cristãos de Roma: “os gentios dão glória a Deus, pela sua misericórdia,
como está escrito (...) Nações, louvai todas ao Senhor; e que todos os povos o
celebrem” (Rm 15,9.11).
2. Por conseguinte, o breve
hino que estamos meditando começa, como acontece muitas vezes neste gênero de
salmos, com um convite ao louvor, que não se destina só a Israel, mas a todos
os povos da terra. Um “aleluia” deve
brotar dos corações de todos os justos que procuram e amam Deus com o coração
sincero. Mais uma vez o Saltério reflete uma visão de amplo alcance,
provavelmente alimentada pela experiência vivida por Israel durante o exílio na
Babilônia no VI século a. C.: o povo hebraico encontrou então outras nações e
culturas e sentiu a necessidade de anunciar a própria fé àqueles entre os quais
ele vivia. Encontra-se no Saltério a consciência de que o bem floresce em muitos
terrenos e pode ser como que canalizado e dirigido para o único Senhor e
Criador.
Por isso, poderíamos falar
de um “ecumenismo” da oração, que inclui num único abraço povos diferentes por
origem, história e cultura. Encontramo-nos na linha da grande “visão” de Isaías
que descreve, “no final dos tempos”, a afluência de todas as nações para “o
monte do templo do Senhor”. Então, cairão das mãos as espadas e as lanças, e serão
transformadas em relhas de arados e foices, para que a humanidade viva em
paz, cantando o seu louvor ao único Senhor de todos, ouvindo a sua palavra e
observando os seus mandamentos (cf. Is 2,1-5).
3. Israel, o povo da
eleição, tem neste horizonte universal uma missão a cumprir. Deve proclamar
duas grandes virtudes divinas, que conheceu ao viver a aliança com o Senhor (v.
2). Estas duas virtudes, que são as duas feições fundamentais do rosto divino,
o “bom binômio” de Deus, para dizer com São Gregório de Nissa (cf. Sobre
os títulos dos Salmos, Roma,
1994, p. 183), são expressas com igual número de palavras hebraicas que, nas
traduções, não conseguem brilhar em toda a sua riqueza de significado.
A primeira é hésed, uma palavra usada repetidas vezes pelo
Saltério e sobre a qual já falei em outras ocasiões. Ela indica a rede dos
sentimentos profundos que existem entre duas pessoas, ligadas por um vínculo
autêntico e constante. Por isso, abraça valores como o amor, a fidelidade, a
misericórdia, a bondade, a ternura. Por conseguinte, existe ente nós e Deus uma
relação que não é fria, como a que pode existir entre um imperador e o seu
súdito, mas palpitante, como a que se desenvolve entre dois amigos, entre dois
esposos, entre pais e filhos.
4. A segunda palavra é ‘emét, que é quase
sinônimo da primeira. Também ela é querida ao Saltério, que a repete quase
metade de todas as vezes em que ressoa no resto do Antigo Testamento.
Em si, a palavra exprime a
“verdade”, ou seja, a genuinidade de uma relação, a sua autenticidade e
lealdade, que se conserva apesar dos obstáculos e das provas; é a fidelidade
pura e jubilosa que não conhece faltas. Não é sem motivo que o salmista declara
que ela “dura eternamente” (v. 2). O amor fiel de Deus nunca faltará e não nos
abandonará a nós próprios ou à obscuridade da falta de sentido, de um destino
cego, do vazio e da morte.
Deus ama-nos com um amor
incondicional, que não se cansa, que nunca esmorece. Eis a mensagem do nosso Salmo,
breve como uma jaculatória, mas intenso como um grande cântico.
5. As palavras que ele nos
sugere são como um eco do cântico que ressoa na Jerusalém celeste, onde uma
grande multidão de todas as línguas, povos e nações, canta a glória divina
diante do trono de Deus e do Cordeiro (cf. Ap 7,9). A este cântico a Igreja
peregrina une-se com infinitas expressões de louvor, muitas vezes moldadas pelo
gênio poético e pela arte musical. Pensamos dando um exemplo no “Te Deum”, do qual se
serviram gerações de cristãos ao longo dos séculos, para louvar o Senhor e agradecer-Lhe: “Te Deum Laudamus, te Dominum confitemur, te
aeternum Patrem omnis terra veneratur”. De sua parte, o pequeno Salmo que
hoje estamos meditando é uma síntese eficaz da perene Liturgia de louvor com
que a Igreja se faz voz no mundo, unindo-se ao louvor perfeito que o próprio
Cristo dirige ao Pai.
Portanto, louvemos o Senhor!
Louvemos sem nos cansarmos. Mas que o nosso louvor exprima-se com a vida, mais
do que com as palavras. De fato, seríamos muito pouco credíveis se com o nosso Salmo
convidássemos os povos a glorificar o Senhor e não levássemos a sério a
admoestação de Jesus: “Brilhe a vossa luz diante dos homens de modo que, vendo
as vossas boas obras, glorifiquem o vosso Pai, que está nos Céus” (Mt 5,16). Ao cantar o Salmo
116, como todos os salmos dirigidos ao Senhor, a Igreja, Povo de Deus,
esforça-se por se tornar, ela mesma, um cântico de louvor.
"Ao Senhor quero cantar, pois fez brilhar a sua glória: precipitou no Mar Vermelho o cavalo e o cavaleiro" (Ex 15,1) |
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