segunda-feira, 14 de setembro de 2020

O ícone da Exaltação da Santa Cruz

“Adoramos, Senhor, a tua Cruz e glorificamos a tua santa Ressurreição”­.

No Rito Bizantino, este versículo substitui o célebre canto do Triságion na Festa da Exaltação da Venerável e Vivificante Cruz, celebrada no dia 14 de setembro pelas Igrejas tanto do Oriente quanto do Ocidente.

Nesta postagem da nossa série sobre os ícones das festas litúrgicas contemplaremos brevemente a singular representação dessa festa.

1. História e significado da festa

Das Doze Grandes Festas do Calendário Bizantino, a Exaltação da Santa Cruz é a única que não celebra um evento da vida de Jesus ou da Virgem Maria, mas sim dois eventos ocorridos no século IV da Era Cristã:

- a dedicação da Basílica do Santo Sepulcro em Jerusalém, no dia 13 de setembro de 335, construída sob o patrocínio do Imperador Constantino (†337) e de sua mãe, Santa Helena (†330);

- a descoberta das relíquias da Verdadeira Cruz, atribuída a Santa Helena durante sua peregrinação à Terra Santa entre 326 e 328, acompanhada pelo Bispo São Macário de Jerusalém (†335).

Posteriormente se acrescentou um terceiro evento à celebração: a recuperação das relíquias da Cruz pelo Imperador Heráclio de Constantinopla (†641), roubadas em 614 quando os persas atacaram a cidade e novamente entronizadas na Basílica do Santo Sepulcro em torno ao ano de 628.


Inicialmente essa era uma celebração local da igreja de Jerusalém, mas logo foi acolhida pelas demais igrejas como uma grande ação de graças pelo caráter salvífico do mistério da Cruz do Senhor.

Em Roma a festa foi acolhida no século VII, sendo popularizada pelo Papa Sérgio I (†701),. Nesse mesmo período, no Rito Franco-Galicano, surge uma festa em honra da Cruz no dia 03 de maio. Logo essas tradições influenciaram-se mutuamente e as duas festas passaram a ser celebradas: o dia 03 de maio enfatizando a descoberta das relíquias da Cruz por Santa Helena e o dia 14 de setembro destacando sua recuperação por Heráclio.

A festa da “Invenção da Santa Cruz” (do latim inventione, “descoberta”) a 03 de maio seria suprimida pelo Papa São João XXIII (†1963), em benefício da festa mais antiga da Exaltação da Santa Cruz a 14 de setembro.

Para saber mais, confira nossa postagem sobre a história da Festa da Exaltação da Santa Cruz.

No Rito Bizantino há ainda outras festas em honra da “Venerável e Vivificante Cruz”. Além da Sexta-feira Santa, que o “dia da Cruz” por excelência, o III Domingo da Grande Quaresma é também dedicado à “adoração da Santa Cruz”.

Cumpre dizer que a “adoração” (latria) não se refere aqui ao objeto, uma vez que esta é devida apenas a Deus. O II Concílio de Niceia (787) em sua definição sobre a veneração “da figura da cruz preciosa e vivificante” e dos “santos ícones” atesta que a honra (dulia) prestada às imagens se dirige na verdade àquele que nelas é representado [1].

Como resume Santo André de Creta (†740) em uma de suas célebres Homilias sobre o mistério da Cruz: “Nós adoramos a Cruz, uma vez que bendizemos ao Crucificado nela” [2]. O Sangue de Cristo, derramado sobre ela por amor a nós, penetrou neste madeiro, tornando-a como que inseparável do Crucificado.

São Cirilo de Jerusalém (†386), em uma de suas Catequeses, recorda ainda que Cruz é inseparável da Ressurreição: “Confesso a Cruz, pois conheço a Ressurreição. Se tivesse permanecido crucificado, talvez não a confessaria... Mas, uma vez que à Cruz segue a Ressurreição, não me envergonho de pregar a Cruz” [3].

Quanto a mim, que eu me glorie somente da cruz do Senhor nosso, Jesus Cristo” (Gl 6,14). A teologia paulina, com efeito, é fundamental para compreendermos o mistério da festa da Exaltação da Santa Cruz, particularmente a reflexão de Paulo sobre Cristo como “novo Adão” (cf. Rm 5,12-19; 1Cor 15,45-49).


Em sua Encarnação, Cristo se torna “filho de Adão” e inaugura a nova criação: onde Adão sucumbiu, deixando-se vencer pela tentação, Cristo triunfou, fazendo-se “obediente até a morte” (cf. Fl 2,6-8; Hb 5,7-9).

Assim, a “árvore da cruz” se torna verdadeiramente a “árvore da vida”, contraposta à árvore do paraíso, junto à qual nossos primeiros pais pecaram: se o primeiro Adão estendeu a mão para tomar o fruto da árvore, agora o novo Adão, Jesus Cristo, estende livremente as mãos no madeiro da cruz para tudo doar.

“Doravante a espada de fogo não guardará mais a porta do Éden, porque o madeiro da Cruz apagou-a de modo maravilhoso; a morte foi vencida e a vitória dos infernos anulada. E Tu, ó meu Salvador, te dirigiste aos que nele estavam, dizendo: Entrai de novo no paraíso!”
(Kondákion do III Domingo da Grande Quaresma - Domingo da Santa Cruz) [4].

2. O ícone

O ícone da Festa da Exaltação da Santa Cruz representa a “elevação” das relíquias da Cruz no dia seguinte à dedicação do Santo Sepulcro (14 de setembro de 335). Ao mesmo tempo, retrata alguns detalhes de outros aspectos da história, sobretudo da descoberta das relíquias.

Vale recordar que o ícone não é um tratado de história, mas sim uma escola de oração, uma “janela para o invisível”. Por isso não devemos nos espantar ao encontrar certos “anacronismos”: estes são uma “licença poética” em benefício da mensagem.

a) O ambiente

Como indicamos acima, o ícone nos situa diante da primitiva Basílica do Santo Sepulcro. Esta, na verdade, era composta por duas igrejas: a maior, em honra da Paixão do Senhor (Martyrium), e a menor, de forma redonda, em honra da Ressurreição (Anástasis), separadas por um pequeno pátio (ante Crucem), no qual se encontrava parte da rocha do Calvário. Para saber mais sobre a Basílica do Santo Sepulcro, clique aqui.

Em algumas versões do ícone, portanto, encontramos ao fundo as duas construções, que nos remetem à dupla dimensão do Mistério Pascal: Morte-Ressurreição de Cristo. Em outras versões o iconógrafo toma certa liberdade e retrata uma igreja do seu tempo, como que indicando que a celebração litúrgica não é mera recordação do passado, mas atualização do mistério da nossa redenção.

Por isso, é comum encontrarmos nesse ícone as típicas igrejas bizantinas com cinco cúpulas: a maior em referência a Cristo e as quatro menores em alusão aos quatro Evangelhos, que desde Jerusalém foram anunciados pelos quatro cantos do mundo (cf. At 1,8).

Outro elemento presente em algumas versões é um baldaquino ou “cibório” sobre um altar, semelhante às representações do templo de Jerusalém em outros ícones. Este altar, portanto, integra um crescendo:
- na Apresentação de Maria está vazio, pois as profecias ainda estão para cumprir-se;
- na Apresentação do Senhor tem sobre si o livro, pois na Encarnação as profecias começaram a cumprir-se: “o Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14);
- agora tem sobre si o cálice, indicando que todas as profecias já se cumpriram: o Corpo entregue e o Sangue derramado no altar da Cruz pelo Senhor inauguram a “nova e eterna aliança” (cf. Lc 22,20; Hb 7–9) - “Tudo está consumado” (Jo 19,30).


b) A Cruz

O centro do ícone é ocupado pela Cruz, apresentada à adoração dos fiéis por um Bispo, que a sustenta sobre um estrado. O estrado ou ambão (do grego ἀναβαίνω, subir) situa-nos em um contexto litúrgico, com a Palavra de Deus ao centro, recordando o sacerdote Esdras que leu o livro da Lei diante do povo sobre um estrado de madeira após o retorno do exílio da Babilônia (Ne 8). Para saber mais, confira nossa postagem sobre os Livros de Esdras e Neemias.

A cruz geralmente é representada em tamanho natural e mais raramente em pequenas proporções. Trata-se da típica cruz de oito pontas da tradição bizantina, popularizada sobretudo na Rússia, com três traves horizontais e uma vertical. Se o número sete estava ligado à primeira criação (Gn 1,1–2,4a), o oito indica a “nova criação” em Cristo.

Quanto às três traves horizontais, a primeira, no alto, seria para a inscrição da condenação “em hebraico, latim e grego” (Jo 19,20), idiomas que remetem à primeira aliança (hebraico) e às Igrejas do Oriente (grego) e do Ocidente (latim); a segunda trave, a maior, é onde estão pregadas as mãos de Jesus; e a terceira, em baixo, serve de apoio para os seus pés.

Esta terceira trave, porém, está na diagonal, como uma balança, indicando-nos as duas atitudes diante da Cruz: a do ladrão arrependido, que alcançou a salvação (Lc 23,39-43), apontando para cima, e a do ladrão impenitente, que foi condenado, apontando para baixo. O tema dos “dois caminhos”, com efeito, é recorrente na tradição judaico-cristã (basta citar, à guisa de exemplo, o Livro do Deuteronômio e o início da Didaché).

O gesto de elevar a cruz, além de remeter ao próprio nome grego da festa: Ὕψωσις τοῦ Τιμίου Σταυροῦ (Elevação da Santa Cruz) e às afirmações de Jesus no Evangelho (cf. Jo 3,14; 12,32), recorda o rito da adoração da Cruz realizado no Rito Bizantino no dia 14 de setembro e no III Domingo da Grande Quaresma.

Nesses dias, no final da Divina Liturgia, o sacerdote realiza uma procissão com a cruz ao redor da igreja. Em seguida, diante da iconostase, eleva a cruz em direção aos quatro pontos cardeais rezando pela Igreja e pela pátria, enquanto os fiéis entoam repetidas vezes: Kyrie, eleison! Em alguns lugares, além disso, os pés da cruz são ungidos com perfume. Por fim, todos se aproximam para venerar a cruz, enquanto o coro canta:

“Vinde fiéis! Adoremos o Madeiro que dá a vida, no qual, Cristo, o Rei da glória, estendeu, voluntariamente, seus braços, restaurando em nós a felicidade primitiva; nós que, dominados pelo mal e pelas paixões estávamos afastados de Deus. Vinde, adoremos a Cruz, que nos dá a vitória sobre o mal.
Vinde, povos da terra, honremos com hinos a Cruz do Senhor, cantando: Salve ó Cruz, libertação de Adão decaído, porque em ti, toda a Igreja se alegra!
Nós, fiéis, a venerar-te com respeito e devoção, glorificamos a Deus que em ti foi fixado, dizendo: Senhor que foste crucificado, tem piedade de nós, tu que amas os seres humanos!” [5].


c) O Bispo e os diáconos

Sustentando a Cruz sobre o estrado, no centro do ícone, há um Bispo, que endossa sobre as vestes sacerdotais o omophorion (faixa de lã com cruzes), o qual alude à ovelha que o Bom Pastor toma aos ombros (Lc 15,4-7) e à própria cruz, na qual Jesus toma sobre si os nossos pecados (cf. 1Pd 2,21-24; Is 53,4-6). “Se alguém quer me seguir, renuncie a si mesmo, tome sua cruz cada dia, e siga-me” (Lc 9,23).

O Bispo é tradicionalmente identificado como São Macário, que foi Bispo de Jerusalém de 312 até a sua morte. Ele certamente supervisionou a construção da Basílica do Santo Sepulcro, mas dificilmente presidiu sua dedicação, uma vez que teria morrido no início do mesmo ano (335) ou, mais provavelmente, dois anos antes, em 333.

Junto ao Bispo encontramos os diáconos, identificáveis pela estola (orárion) pendente do ombro esquerdo, na qual está escrito três vezes a palavra “Santo” (em grego, Ἅγιος). Os diáconos, assim, representam aqui os serafins da teofania de Isaías, que adoram ao Deus “três vezes Santo” (Is 6,2-3).

Enquanto alguns diáconos sustentam velas aos lados do estrado ou oferecem incenso diante dele, dois diáconos sustentam os braços do Bispo que segura a Cruz, como o fizeram os israelitas com Moisés durante a oração (Ex 17,8-13).

Como a intercessão de Moisés, com os braços estendidos, levou o povo à vitória contra os inimigos, o gesto alude aqui ao caráter “protetor” da Cruz, ao qual aludem tanto o tropárion quanto o kondákion da Festa:

“Salva, Senhor, o teu povo e abençoa a tua herança. Concede às tuas Igrejas a vitória sobre o mal e protege, pela tua Cruz, este povo que é teu”.

“Ó Cristo Deus, que, voluntariamente, foste elevado na Cruz, tem compaixão do povo que traz o teu nome. Alegra, pelo teu poder, a tua santa Igreja e concede-lhe a vitória sobre o mal. Que tua aliança seja para nós uma arma de paz e um troféu de vitória!” [6].

d) Constantino e Helena

Junto ao estrado da Cruz sempre está presente Santa Helena, tendo às vezes junto a si seu filho, o Imperador Constantino. Tratam-se certamente de “anacronismos”, pois Helena morreu antes da dedicação do Santo Sepulcro e Constantino jamais visitou Jerusalém.


Não obstante, uma vez que Constantino promulgou em 313 o Edito de Milão, proibindo a perseguição aos cristãos, e Santa Helena é tradicionalmente associada à descoberta das relíquias da Cruz, ambos ganham um lugar de destaque no ícone.

Constantino e Helena, com efeito, são venerados como Santos pelas Igrejas Orientais, com o prestigioso título de “iguais aos Apóstolos” (ἰσαπόστολος), sendo celebrados no dia 21 de maio. No Rito Romano, por sua vez, Santa Helena é celebrada no dia 18 de agosto.

No ícone, mãe e filho aparecem coroados e com as auréolas de santos, geralmente com as mãos estendidas para a Cruz, como que recitando uma oração. Em algumas versões do ícone de Todos os Santos eles aparecem na mesma posição, ladeando a Cruz sob o trono de Cristo.

e) Os demais personagens

Por fim, em torno ao estrado encontramos as diversas “categorias” de fiéis, de modo a expressar o pleroma, isto é, a totalidade da Igreja, “multidão enorme, que ninguém podia contar, de todas as nações, tribos, povos e línguas” (Ap 7,9).

Em meio aos homens e mulheres de todas as idades, encontramos de um lado, os nobres, com vestes ricamente adornadas e altos chapéus, simbolizando o “poder”; e, do outro lado, os Bispos com seus paramentos e os sábios com longas vestes e chapéus redondos ou “turbantes”, os quais simbolizam a “sabedoria”.

Os dois grupos remetem aqui às palavras do Apóstolo Paulo no início da Primeira Carta aos Coríntios: “Nós pregamos Cristo Crucificado, escândalo para os judeus e insensatez para os pagãos. Mas para os que são chamados, tanto judeus como gregos, esse Cristo é poder de Deus e sabedoria de Deus” (1Cor 1,23-24). A cruz, com efeito, é “trono da glória” e “cátedra da verdade” [7].

Concluímos com um dos hinos da festa, atribuído ao Imperador bizantino Leão VI, o Sábio (†912):

“Vinde, fiéis, adoremos o madeiro vivificante: sobre ele Cristo, Rei da glória, estendeu os braços e nos reergueu para a primitiva bem-aventurança, da qual o inimigo, aliciando-nos, nos havia despojado, afastando-nos da presença de Deus.
Vinde, fiéis, adoremos o madeiro graças ao qual somos julgados dignos de esmagar as cabeças dos inimigos invisíveis. Vinde, famílias de todos os povos, veneremos com nossos cânticos a Cruz do Senhor. Salve, ó Cruz, perfeita libertação do Adão decaído...
Beijando-te agora com reverência, nós, cristãos, glorificamos ao Deus que sobre ti foi pregado, clamando: Senhor, que foste crucificado sobre ela, tem piedade de nós, tu o Bom e Amigo dos homens” [8].


Notas:

[1] cf. DENZINGER, Heinrich. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral. São Paulo: Paulinas; Loyola, 2007, pp. 218-219 [nn. 600-603]. Ver também o Catecismo da Igreja Católica, nn. 2129-2132.
[2] PASSARELLI, Gaetano. O ícone da exaltação da Cruz. São Paulo: Ave Maria, 1996, p. 21. Coleção: Iconostásio, 04.
[3] CIRILO DE JERUSALÉM. Catequese XIII, 4. in: Catequeses pré-batismais. Petrópolis: Vozes, 2022, p. 269.
[4] SPERANDIO; João Manoel; TAMANINI, Paulo Augusto [org.]. Liturgikon: Próprio das Festas no Rito Bizantino. Teresina: Editora da Universidade Federal do Piauí, 2015, p. 64.
[5] ibid., p. 13.
[6] ibid., p. 08.
[7] Bênção de nova cruz para veneração pública. in: RITUAL DE BÊNÇÃOS. Tradução portuguesa da edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1990, p. 354.
[8] DONADEO, Madre Maria. O Ano Litúrgico Bizantino. São Paulo: Ave Maria, 1998, p. 40. O mesmo texto, em uma distinta tradução, aparece em PASSARELLI, op. cit., p. 62.

Referências:

PASSARELLI, Gaetano. O ícone da exaltação da Cruz. São Paulo: Ave Maria, 1996. Coleção: Iconostásio, 04.

DONADEO, Madre Maria. O Ano Litúrgico Bizantino. São Paulo: Ave Maria, 1998, pp. 38-41.

Postagem publicada originalmente em 14 de setembro de 2020. Revista e ampliada em 10 de setembro de 2022.

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