Há exatos dois meses, no dia 18 de julho de 2020, aos 57 anos, falecia Dom Henrique Soares da Costa, Bispo de Palmares (PE), vítima de Covid-19.
Para honrar a memória deste grande Bispo, desde o último dia 10 estamos divulgando aqui em nosso blog uma série de textos sobre a Eucaristia publicados por Dom Henrique no último mês de junho.
Seguem, pois, os dois últimos textos, nos quais Dom Henrique reflete sobre a estrutura da Celebração Eucarística e sobre a "presença real":
A Eucaristia XIII
15 de junho de 2020
Apresentamos alguns aspectos teológicos da Eucaristia.
Vejamos, agora, a estrutura da Celebração Eucarística, isto é, como se
organiza, como se desenvolve a Celebração deste Sacrifício em forma ritual de
Banquete.
Já vimos, num dos tópicos anteriores, São Justino
descrevendo, no século II, a celebração. Os elementos básicos de então
permanecem ainda hoje. Primeiramente, segundo antiga tradição, a Missa
divide-se em duas grandes partes: a Liturgia da Palavra e a Liturgia Eucarística.
Na primeira parte, a Palavra de Deus é proclamada e, na homilia, interpretada à
luz do Cristo Jesus, de modo a iluminar a vida dos cristãos na sua situação
concreta do dia-a-dia. Após a proclamação da Palavra, pelo Credo e a Oração dos
fiéis, respondemos ao Deus que nos falou. Assim termina a primeira parte da
Celebração, toda ela centrada no ambão (a estante donde se faz as leituras e a
homilia) - é a Mesa da Palavra!
A segunda parte da Eucaristia é a mais importante: a
Liturgia Eucarística, cujo centro é o Altar, que simboliza o próprio Cristo
Jesus, pedra angular da Igreja. Nesta parte da Missa, a Igreja torna presentes
os quatro gestos de Jesus: Ele (1) tomou o pão, (2) deu graças, (3) partiu e
(4) distribuiu, mandando que fizéssemos isso em Sua memória. Vejamos como estes
quatro gestos se desenrolam na Celebração.
Jesus tomou o pão. Este gesto do Senhor é tornado presente
na apresentação das ofertas ao Altar: pão, vinho e água, que simbolizam tudo
quanto a criação e o nosso trabalho produzem e que, em nome de toda a criação,
unidos ao Filho Jesus, oferecemos ao Pai na força do Espírito Santo. Nesse
momento também, segundo antiquíssima tradição da Igreja, os membros da
Comunidade dão suas esmolas: o que se trouxe para os pobres e para a manutenção
da Casa de Deus e despesas da Comunidade paroquial.
Ele deu graças (quer dizer, Ele fez eucaristia = ação de
graças). A Igreja torna presente este gesto do Senhor na grande Oração
eucarística, que vai do prefácio da Missa até a doxologia (o “por Cristo, com
Cristo, em Cristo”). Aí, ela recorda (faz memorial) ao Pai tudo quanto Cristo
fez por nós. O celebrante, em nome de toda a Comunidade eclesial, pede ao Pai
que derrame o Espírito do Cristo ressuscitado sobre o pão e o vinho para que
eles, pelas palavras da consagração, cheias de Espírito Santo criador e
recriador, sejam eucaristizados, transformando-se no Corpo e no Sangue do
Ressuscitado - é a consagração. É importante observar que a narração da
consagração não é feita à assembleia ali presente, mas ao Pai: é a Ele que a
Igreja recorda tudo quanto o Senhor Jesus fez para nossa salvação, é diante
Dele, Pai de Jesus e nosso Pai, que a Igreja celebra o memorial da Morte e
Ressurreição de Cristo. É como se o celebrante dissesse: “Ó Pai, recorda-Te do
Teu Filho Jesus. Ele, na noite em que foi entregue...” Em seguida, ainda na
grande Oração Eucarística, o celebrante pede pela Igreja, pelos ministros
sagrados e pelo inteiro Povo de Deus, pelos vivos e mortos, pelo mundo inteiro,
crentes e descrentes, tudo isso ao Pai, por Cristo, com Cristo e em Cristo, na
unidade do Espírito Santo. E a Comunidade responde “Amém!”, deixando claro que
a oração do celebrante foi oração de toda a Igreja. Neste “Amém” que encerra a
grande Oração exprime-se maravilhosamente o ministério sacerdotal, sacerdócio
do Reino, de todo o Povo de Deus! Assim termina a grande Eucaristia (ação de
graças), o segundo gesto do Cristo Jesus.
Aí, vem a preparação para a comunhão, com a oração do
Pai-nosso. Depois, o celebrante faz memória do terceiro gesto de Cristo: Ele
partiu o pão. Só aí - e não antes - é que o Pão consagrado deve ser
fragmentado! Este gesto é muito importante, pois recorda o próprio Jesus nosso
Senhor: os Seus discípulos o reconheceram ao partir o pão.
Realizado tudo isso, fazemos memória do último dos gestos
que o Senhor nos mandou realizar: Ele deu aos Seus discípulos. É a comunhão
eucarística no Corpo e no Sangue do Senhor. É o celebrante quem, em nome de
Cristo, distribui a comunhão. Ele pode ser ajudado pelos ministros ordinários
da comunhão (os padres concelebrantes e os diáconos) e pelos ministros
extraordinários (os acólitos instituídos pelo Bispo e os outros ministros da
comunhão daquela paróquia).
Pronto! Feito tudo isso em memória do Senhor, o sacerdote
conclui com a oração final. Depois - e somente depois - vêm os avisos da
Comunidade e o Povo recebe a bênção e é despedido. Como podemos ver, a
Celebração eucarística é toda ela bíblica. Com o tempo, mudam os ritos
secundários, o modo de celebrar, mas nunca a essência.
É importante observar ainda que os gestos, as palavras, os
ritos, as vestes, as várias funções, tudo isso tem um significado e deve ser
respeitado e bem preparado. A Eucaristia deve ser celebrada sempre num clima de
respeito, de piedade e reverência. O missal, que traz o rito da Missa, deve ser
seguido fielmente. Nem a comunidade nem o sacerdote que preside podem fazer
alterações que desobedeçam as normas litúrgicas da Igreja ou deturpem o sentido
da celebração e a sua estrutura fundamental. A Eucaristia não é propriedade do
celebrante nem da comunidade, mas sim um dom concedido a toda a Igreja, para
que o guarde com amor e fidelidade, respeito e devoção até que o Senhor venha.
A Eucaristia XIV
15 de junho de 2020
No presente texto, ainda sobre a Eucaristia, retomemos a
noção da presença real do Cristo morto e ressuscitado no Pão e no Vinho
consagrados. Tendo em mente o Mistério eucarístico, São Paulo pergunta: “O
cálice de bênção que abençoamos, não é comunhão com o Sangue de Cristo? O pão
que partimos, não é comunhão com o Corpo de Cristo?” (1Cor 10,16) Tais
afirmações, em forma de perguntas e, à primeira vista, tão simples, têm uma
força e significação enormes.
Na Escritura Sagrada, o “sangue” não é simplesmente uma
realidade material, o líquido vermelho que circula em nossas artérias, mas
sobretudo a vida e, muitas vezes, a vida tirada violentamente. Dar o sangue
quer dizer dar a vida, vida sofrida, violentada, arrancada de modo cruel; seria,
como na nossa cultura, dizer “derramei meu suor”, “suei minha camisa”. “Sangue
de Cristo” significa, portanto, a vida de Jesus, nosso Senhor, dada em
sacrifício, tirada de modo violento; a vida que Ele entregou por nós.
“Corpo”, por sua vez, não significa primeiramente os
músculos nossos, o corpo simplesmente no seu aspecto somático, mas sim o homem
todo, a pessoa toda, na sua situação de criatura limitada, frágil, mortal.
Assim, “Corpo de Cristo” significa a natureza humana que o Filho de Deus
assumiu por nós de Maria, a Virgem: “O Verbo Se fez carne” (Jo 1,14), quer,
então, dizer, fez-Se homem, fez-Se realmente humano, com um corpo humano e uma
alma humana, com inteligência, vontade, consciência, afeto, sentimento e
liberdade humanas, sonhos e finitude próprios dos filhos de Adão. Deste modo,
quando o Cristo Jesus fala em dar o Seu Corpo significa dar-Se todo, dar toda
Sua vida humana: Seus sonhos, cansaços, desilusões, sofrimentos. Dar tudo
quanto Ele, o Filho divino feito verdadeiramente homem, é e viveu! Foi assim
que o Senhor nosso Jesus Se nos deu: em todo o Seu ser, sem reservas; doou-nos
Sua vida e Sua morte!
Pois bem, São Paulo afirma que o pão que partimos é comunhão
com o Corpo do Senhor. Palavra estupenda! Comungar na Eucaristia significa entrar
numa comunhão misteriosa e real com a Pessoa mesma de Jesus Cristo; mas não uma
pessoa desencarnada: é entrar em comunhão com tudo quanto Ele viveu,
experimentou em Sua existência humana; é ter comunhão com os ideais do Cristo
Jesus, com o modo de viver e agir de Jesus, nosso Senhor, com as opções,
esperanças e angústias de Jesus, com o sofrimento de Jesus, com a Morte e
Sepultura de Jesus, com a Ressurreição e Glorificação de Jesus! Comungar
daquele pão é comungar com Jesus Cristo na totalidade da Sua existência, é
colocá-Lo na nossa existência, não mais viver por nós mesmos, sozinhos conosco,
do nosso modo, mas viver nossa vida na vida do Senhor Jesus, que por nós morreu
e ressuscitou (cf. 2Cor 5,15)! E o
cálice, o Apóstolo diz que é comunhão no Sangue de Cristo; quer dizer comunhão
na Sua entrega, na Sua Morte, morrida por nós! Participar do cálice do Senhor é
estar dispostos a beber o cálice com Ele, a ser batizados no batismo de Morte
no qual Ele foi batizado (cf. Mc
10,38)! Portanto, participar do pão e do vinho eucarísticos é entrar em
comunhão de vida e morte com o Senhor, é “com-viver” com Cristo, é conhecê-Lo,
conhecer o poder de Sua Ressurreição e a participação nos Seus sofrimentos,
“com-formando-nos” com Ele na Sua Morte para alcançar a Sua Ressurreição dentre
os mortos (cf. Fl 3,10).
Esta é a experiência central da vida cristã: viver nesta
comunhão plena de vida e morte com o Senhor! E aqui, precisamente, cabem alguns
urgentes questionamentos. Os cristãos têm consciência desta realidade? Individualmente
e como Igreja, temos presente esta nossa misteriosa e estupenda vocação, que é
trazer em nosso corpo a agonia do Cristo Jesus, a fim de que a vida de Jesus
seja também manifestada em nosso corpo (cf.
Fl 4,10)? Como os cristãos se comportam diante dos desafios da vida pessoal e
comunitária? Estão os cristãos dispostos a viver para o Senhor ou somente para
si mesmos, segundo a lógica do mundo contemporâneo? Nosso modo de viver a fé em
Cristo onde levamos a existência diária tem levado a esta comunhão existencial
com o Cristo no mistério da Sua vida, Morte e Ressurreição? Notemos que o que
está em jogo aqui é a própria identidade do cristianismo! Sem esta consciência
não há, de fato, uma vida cristã! Ser cristão não é primeiramente aderir a
doutrinas ou a uma moral mas, antes de tudo, entrar em comunhão com Alguém, com
o Senhor Jesus.
Pode-se, então, compreender aquelas palavras de fogo do
Bispo de Antioquia, Santo Inácio, que no século I, ao dirigir-se para o
martírio, no qual seria devorado pelas feras, exclamava: “Coisa alguma visível
ou invisível me impeça de encontrar Jesus Cristo. Maravilhoso é, para mim,
morrer por Jesus Cristo. A Ele é que procuro, Ele que morreu por nós; quero
Aquele que ressuscitou por nossa causa. Permiti que eu seja imitador do
sofrimento do meu Deus! Meu amor está crucificado! Quero o pão de Deus que é a
Carne de Jesus Cristo, da descendência de Davi, e como bebida quero o Sangue d’Ele,
que é amor incorruptível. Sou trigo de Deus e sou moído pelos dentes das feras,
para encontrar-me como pão puro de Cristo. Quando lá chegar serei homem!”
Palavras estonteantes! Inácio de Antioquia compreendera o que significava
celebrar a Eucaristia, participar do Corpo e Sangue do Senhor! Quem dera nós
também o compreendamos!
Nossas Eucaristias sejam realmente a celebração desta
comunhão de vida, sonho, agir, morte e ressurreição com o Cristo, cujo corpo e
sangue comungamos. É disto que o mundo tanto precisa; é isto que o mundo
espera, mesmo sem o saber: o nosso testemunho de comunhão com o Salvador! Só
assim tem realmente sentido proclamar nossa fé na presença real e amante do
Senhor no Pão e no Vinho eucarísticos.
Fonte: Blog Visão Cristã
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