sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Textos de Dom Henrique Soares sobre a Eucaristia 13-14

Há exatos dois meses, no dia 18 de julho de 2020, aos 57 anos, falecia Dom Henrique Soares da Costa, Bispo de Palmares (PE), vítima de Covid-19.

Para honrar a memória deste grande Bispo, desde o último dia 10 estamos divulgando aqui em nosso blog uma série de textos sobre a Eucaristia publicados por Dom Henrique no último mês de junho. 

Seguem, pois, os dois últimos textos, nos quais Dom Henrique reflete sobre a estrutura da Celebração Eucarística e sobre a "presença real":

A Eucaristia XIII
15 de junho de 2020

Apresentamos alguns aspectos teológicos da Eucaristia. Vejamos, agora, a estrutura da Celebração Eucarística, isto é, como se organiza, como se desenvolve a Celebração deste Sacrifício em forma ritual de Banquete.

Já vimos, num dos tópicos anteriores, São Justino descrevendo, no século II, a celebração. Os elementos básicos de então permanecem ainda hoje. Primeiramente, segundo antiga tradição, a Missa divide-se em duas grandes partes: a Liturgia da Palavra e a Liturgia Eucarística. Na primeira parte, a Palavra de Deus é proclamada e, na homilia, interpretada à luz do Cristo Jesus, de modo a iluminar a vida dos cristãos na sua situação concreta do dia-a-dia. Após a proclamação da Palavra, pelo Credo e a Oração dos fiéis, respondemos ao Deus que nos falou. Assim termina a primeira parte da Celebração, toda ela centrada no ambão (a estante donde se faz as leituras e a homilia) - é a Mesa da Palavra!

A segunda parte da Eucaristia é a mais importante: a Liturgia Eucarística, cujo centro é o Altar, que simboliza o próprio Cristo Jesus, pedra angular da Igreja. Nesta parte da Missa, a Igreja torna presentes os quatro gestos de Jesus: Ele (1) tomou o pão, (2) deu graças, (3) partiu e (4) distribuiu, mandando que fizéssemos isso em Sua memória. Vejamos como estes quatro gestos se desenrolam na Celebração.

Jesus tomou o pão. Este gesto do Senhor é tornado presente na apresentação das ofertas ao Altar: pão, vinho e água, que simbolizam tudo quanto a criação e o nosso trabalho produzem e que, em nome de toda a criação, unidos ao Filho Jesus, oferecemos ao Pai na força do Espírito Santo. Nesse momento também, segundo antiquíssima tradição da Igreja, os membros da Comunidade dão suas esmolas: o que se trouxe para os pobres e para a manutenção da Casa de Deus e despesas da Comunidade paroquial.

Ele deu graças (quer dizer, Ele fez eucaristia = ação de graças). A Igreja torna presente este gesto do Senhor na grande Oração eucarística, que vai do prefácio da Missa até a doxologia (o “por Cristo, com Cristo, em Cristo”). Aí, ela recorda (faz memorial) ao Pai tudo quanto Cristo fez por nós. O celebrante, em nome de toda a Comunidade eclesial, pede ao Pai que derrame o Espírito do Cristo ressuscitado sobre o pão e o vinho para que eles, pelas palavras da consagração, cheias de Espírito Santo criador e recriador, sejam eucaristizados, transformando-se no Corpo e no Sangue do Ressuscitado - é a consagração. É importante observar que a narração da consagração não é feita à assembleia ali presente, mas ao Pai: é a Ele que a Igreja recorda tudo quanto o Senhor Jesus fez para nossa salvação, é diante Dele, Pai de Jesus e nosso Pai, que a Igreja celebra o memorial da Morte e Ressurreição de Cristo. É como se o celebrante dissesse: “Ó Pai, recorda-Te do Teu Filho Jesus. Ele, na noite em que foi entregue...” Em seguida, ainda na grande Oração Eucarística, o celebrante pede pela Igreja, pelos ministros sagrados e pelo inteiro Povo de Deus, pelos vivos e mortos, pelo mundo inteiro, crentes e descrentes, tudo isso ao Pai, por Cristo, com Cristo e em Cristo, na unidade do Espírito Santo. E a Comunidade responde “Amém!”, deixando claro que a oração do celebrante foi oração de toda a Igreja. Neste “Amém” que encerra a grande Oração exprime-se maravilhosamente o ministério sacerdotal, sacerdócio do Reino, de todo o Povo de Deus! Assim termina a grande Eucaristia (ação de graças), o segundo gesto do Cristo Jesus.

Aí, vem a preparação para a comunhão, com a oração do Pai-nosso. Depois, o celebrante faz memória do terceiro gesto de Cristo: Ele partiu o pão. Só aí - e não antes - é que o Pão consagrado deve ser fragmentado! Este gesto é muito importante, pois recorda o próprio Jesus nosso Senhor: os Seus discípulos o reconheceram ao partir o pão.

Realizado tudo isso, fazemos memória do último dos gestos que o Senhor nos mandou realizar: Ele deu aos Seus discípulos. É a comunhão eucarística no Corpo e no Sangue do Senhor. É o celebrante quem, em nome de Cristo, distribui a comunhão. Ele pode ser ajudado pelos ministros ordinários da comunhão (os padres concelebrantes e os diáconos) e pelos ministros extraordinários (os acólitos instituídos pelo Bispo e os outros ministros da comunhão daquela paróquia).

Pronto! Feito tudo isso em memória do Senhor, o sacerdote conclui com a oração final. Depois - e somente depois - vêm os avisos da Comunidade e o Povo recebe a bênção e é despedido. Como podemos ver, a Celebração eucarística é toda ela bíblica. Com o tempo, mudam os ritos secundários, o modo de celebrar, mas nunca a essência.

É importante observar ainda que os gestos, as palavras, os ritos, as vestes, as várias funções, tudo isso tem um significado e deve ser respeitado e bem preparado. A Eucaristia deve ser celebrada sempre num clima de respeito, de piedade e reverência. O missal, que traz o rito da Missa, deve ser seguido fielmente. Nem a comunidade nem o sacerdote que preside podem fazer alterações que desobedeçam as normas litúrgicas da Igreja ou deturpem o sentido da celebração e a sua estrutura fundamental. A Eucaristia não é propriedade do celebrante nem da comunidade, mas sim um dom concedido a toda a Igreja, para que o guarde com amor e fidelidade, respeito e devoção até que o Senhor venha.

A Eucaristia XIV
15 de junho de 2020

No presente texto, ainda sobre a Eucaristia, retomemos a noção da presença real do Cristo morto e ressuscitado no Pão e no Vinho consagrados. Tendo em mente o Mistério eucarístico, São Paulo pergunta: “O cálice de bênção que abençoamos, não é comunhão com o Sangue de Cristo? O pão que partimos, não é comunhão com o Corpo de Cristo?” (1Cor 10,16) Tais afirmações, em forma de perguntas e, à primeira vista, tão simples, têm uma força e significação enormes.

Na Escritura Sagrada, o “sangue” não é simplesmente uma realidade material, o líquido vermelho que circula em nossas artérias, mas sobretudo a vida e, muitas vezes, a vida tirada violentamente. Dar o sangue quer dizer dar a vida, vida sofrida, violentada, arrancada de modo cruel; seria, como na nossa cultura, dizer “derramei meu suor”, “suei minha camisa”. “Sangue de Cristo” significa, portanto, a vida de Jesus, nosso Senhor, dada em sacrifício, tirada de modo violento; a vida que Ele entregou por nós.

“Corpo”, por sua vez, não significa primeiramente os músculos nossos, o corpo simplesmente no seu aspecto somático, mas sim o homem todo, a pessoa toda, na sua situação de criatura limitada, frágil, mortal. Assim, “Corpo de Cristo” significa a natureza humana que o Filho de Deus assumiu por nós de Maria, a Virgem: “O Verbo Se fez carne” (Jo 1,14), quer, então, dizer, fez-Se homem, fez-Se realmente humano, com um corpo humano e uma alma humana, com inteligência, vontade, consciência, afeto, sentimento e liberdade humanas, sonhos e finitude próprios dos filhos de Adão. Deste modo, quando o Cristo Jesus fala em dar o Seu Corpo significa dar-Se todo, dar toda Sua vida humana: Seus sonhos, cansaços, desilusões, sofrimentos. Dar tudo quanto Ele, o Filho divino feito verdadeiramente homem, é e viveu! Foi assim que o Senhor nosso Jesus Se nos deu: em todo o Seu ser, sem reservas; doou-nos Sua vida e Sua morte!

Pois bem, São Paulo afirma que o pão que partimos é comunhão com o Corpo do Senhor. Palavra estupenda! Comungar na Eucaristia significa entrar numa comunhão misteriosa e real com a Pessoa mesma de Jesus Cristo; mas não uma pessoa desencarnada: é entrar em comunhão com tudo quanto Ele viveu, experimentou em Sua existência humana; é ter comunhão com os ideais do Cristo Jesus, com o modo de viver e agir de Jesus, nosso Senhor, com as opções, esperanças e angústias de Jesus, com o sofrimento de Jesus, com a Morte e Sepultura de Jesus, com a Ressurreição e Glorificação de Jesus! Comungar daquele pão é comungar com Jesus Cristo na totalidade da Sua existência, é colocá-Lo na nossa existência, não mais viver por nós mesmos, sozinhos conosco, do nosso modo, mas viver nossa vida na vida do Senhor Jesus, que por nós morreu e ressuscitou (cf. 2Cor 5,15)! E o cálice, o Apóstolo diz que é comunhão no Sangue de Cristo; quer dizer comunhão na Sua entrega, na Sua Morte, morrida por nós! Participar do cálice do Senhor é estar dispostos a beber o cálice com Ele, a ser batizados no batismo de Morte no qual Ele foi batizado (cf. Mc 10,38)! Portanto, participar do pão e do vinho eucarísticos é entrar em comunhão de vida e morte com o Senhor, é “com-viver” com Cristo, é conhecê-Lo, conhecer o poder de Sua Ressurreição e a participação nos Seus sofrimentos, “com-formando-nos” com Ele na Sua Morte para alcançar a Sua Ressurreição dentre os mortos (cf. Fl 3,10).

Esta é a experiência central da vida cristã: viver nesta comunhão plena de vida e morte com o Senhor! E aqui, precisamente, cabem alguns urgentes questionamentos. Os cristãos têm consciência desta realidade? Individualmente e como Igreja, temos presente esta nossa misteriosa e estupenda vocação, que é trazer em nosso corpo a agonia do Cristo Jesus, a fim de que a vida de Jesus seja também manifestada em nosso corpo (cf. Fl 4,10)? Como os cristãos se comportam diante dos desafios da vida pessoal e comunitária? Estão os cristãos dispostos a viver para o Senhor ou somente para si mesmos, segundo a lógica do mundo contemporâneo? Nosso modo de viver a fé em Cristo onde levamos a existência diária tem levado a esta comunhão existencial com o Cristo no mistério da Sua vida, Morte e Ressurreição? Notemos que o que está em jogo aqui é a própria identidade do cristianismo! Sem esta consciência não há, de fato, uma vida cristã! Ser cristão não é primeiramente aderir a doutrinas ou a uma moral mas, antes de tudo, entrar em comunhão com Alguém, com o Senhor Jesus.

Pode-se, então, compreender aquelas palavras de fogo do Bispo de Antioquia, Santo Inácio, que no século I, ao dirigir-se para o martírio, no qual seria devorado pelas feras, exclamava: “Coisa alguma visível ou invisível me impeça de encontrar Jesus Cristo. Maravilhoso é, para mim, morrer por Jesus Cristo. A Ele é que procuro, Ele que morreu por nós; quero Aquele que ressuscitou por nossa causa. Permiti que eu seja imitador do sofrimento do meu Deus! Meu amor está crucificado! Quero o pão de Deus que é a Carne de Jesus Cristo, da descendência de Davi, e como bebida quero o Sangue d’Ele, que é amor incorruptível. Sou trigo de Deus e sou moído pelos dentes das feras, para encontrar-me como pão puro de Cristo. Quando lá chegar serei homem!” Palavras estonteantes! Inácio de Antioquia compreendera o que significava celebrar a Eucaristia, participar do Corpo e Sangue do Senhor! Quem dera nós também o compreendamos!

Nossas Eucaristias sejam realmente a celebração desta comunhão de vida, sonho, agir, morte e ressurreição com o Cristo, cujo corpo e sangue comungamos. É disto que o mundo tanto precisa; é isto que o mundo espera, mesmo sem o saber: o nosso testemunho de comunhão com o Salvador! Só assim tem realmente sentido proclamar nossa fé na presença real e amante do Senhor no Pão e no Vinho eucarísticos.



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