“A alegria do Senhor
será a vossa força” (Ne 8,10)
Na postagem anterior da nossa série sobre a leitura litúrgica dos livros da Sagrada Escritura analisamos, dentro do bloco dos
“livros históricos”, os dois Livros das
Crônicas (1Cr e 2Cr).
A história cronística, porém, continua com os livros de Esdras (Esd) e Neemias (Ne), sobre os quais nos deteremos nesta
postagem.
1. Breve introdução aos
Livros de Esdras e Neemias
Assim como Crônicas,
Esdras-Neemias originalmente era um único livro, integrando os Ketubim (ou Ketuvim), os “Escritos” da Bíblia Hebraica. Os dois textos são
também um único livro na tradução para o grego, a Septuaginta, sob o nome de 2
Esdras. O livro de 1 Esdras na Septuaginta é um texto apócrifo, uma versão distinta do nosso
livro, com alguns acréscimos.
Ícone do escriba Esdras |
Foi apenas na Vulgata,
a tradução para o latim feita por São Jerônimo, que a obra foi dividida em duas
partes, 2 e 3 Esdras, às quais
somam-se outro relato apócrifo (4 Esdras,
um texto apocalíptico utilizado sobretudo pela Igreja Ortodoxa Etíope) [1].
Posteriormente, os dois livros canônicos foram nomeados como
os conhecemos hoje, em referência aos seus protagonistas: o escriba Esdras e o
governador Neemias.
Como vimos em nossas postagens sobre o culto aos Santos do Antigo Testamento, o escriba Esdras é comemorado pelo Martirológio Romano no dia 13 de julho.
Os livros, com efeito, narram as reformas atribuídas a esses
dois personagens após o retorno do exílio da Babilônia, aproximadamente entre
os anos 538 e 428 a. C. (ou, segundo alguns estudiosos, até 398). A cronologia
presente nas obras é bastante truncada, e serve mais a propósitos teológicos
que históricos.
O início de Esdras
nos situa no ano 538 a. C., retomando os últimos versículos de 2Crônicas, com o edito do rei persa Ciro II autorizando o retorno dos exilados para Jerusalém e a reconstrução do Templo.
A seguir descrevem-se os passos da reforma, que constituíram
a identidade do Judaísmo pós-exílico:
a) Esd 1–6: Reconstrução do Templo;
b) Esd 7–10: Reforma da comunidade;
c) Ne 1–7: Construção da muralha da Jerusalém;
d) Ne 8–13: Proclamação da Lei e repovoamento de Jerusalém.
Como vimos em nossas postagens sobre os Livros das Crônicas, a maioria dos estudiosos propõe distintos
autores para Crônicas e Esdras-Neemias, embora se situem dentro
de uma mesma tradição. Com efeito, apesar do contexto histórico e temática
comuns, os escritos possuem diferenças teológicas.
Por exemplo, a “teologia da retribuição”, tão forte nas Crônicas, não está tão presente em Esdras-Neemias, enquanto o conflito com
os samaritanos, importante nesses últimos escritos, não aparecem nos primeiros.
Alguns estudiosos identificam uma série de paralelismos entre Esdras e Neemias: a reconstrução do templo em Esd
1–6 e a construção das muralhas em Ne 1–7; as orações em Esd 9 e Ne 9; entre
outros.
Ícone do governador Neemias |
O primeiro pilar da reforma, com efeito, é a reconstrução do
Templo, que teria ocorrido entre 538 e 515, entre várias dificuldades internas
(o desinteresse do povo) e externas (conflitos com os samaritanos). Nesse
período situa-se a atuação dos profetas Ageu
e Proto-Zacarias (Zc 1–8).
A construção das muralhas de Jerusalém, por sua vez,
iniciada provavelmente em 445, reforça a identidade de Israel como único povo,
“fechando-o” a influências externas, o que é corroborado pela proibição de
casamentos com estrangeiros.
Por fim, o terceiro pilar das reformas de Esdras e Neemias é
a Lei, solenemente proclamada provavelmente entre 430 e 428. Este é também o
período da atuação de alguns dos últimos profetas, como Malaquias e o Terceiro Isaías
(Is 56–66).
A redação dos livros teria ocorrido pouco tempo depois das
reformas, entre os séculos V e IV a. C., ainda durante o período persa. Foram
utilizadas várias fontes e gêneros literários: documentos oficiais (como
decretos e cartas dos reis persas), memórias de Esdras e Neemias, listas (de
objetos do Templo, de famílias, de trabalhadores da muralha, entre outros).
Para saber mais, confira a bibliografia indicada no final da
postagem.
2. Leitura litúrgica
de Esdras e Neemias: Composição harmônica
Em nossa análise da leitura litúrgica de Esdras-Neemias seguiremos os dois critérios de seleção dos textos
indicados pelo n. 66 do Elenco das
Leituras da Missa, começando pela composição harmônica: a escolha do texto em
sintonia com o tempo ou a festa [2].
a) Celebração
Eucarística
Na Celebração Eucarística temos apenas uma leitura de Esd-Ne em composição harmônica, mais
especificamente em um domingo do Tempo
Comum. Aqui as leituras do Antigo Testamento são escolhidas em “relação às
perícopes evangélicas” [3].
Assim, no III Domingo
do Tempo Comum do ano C lemos Ne 8,2-4a.5-6.8-10 [4]. Trata-se da solene
leitura do livro da Lei pelo escriba Esdras, que faz um paralelo com a leitura
da profecia de Isaías por Jesus na sinagoga de
Nazaré (Lc 1,1-4; 4,14-21).
Cumpre recordar que nesse dia celebra-se justamente o “Domingo
da Palavra de Deus”, instituído pelo Papa Francisco através do Motu proprio Aperuit illis (30 de
setembro de 2019), com uma alusão à leitura de Ne 8 no n. 4.
b) Sacramentos e
sacramentais
Além da Celebração Eucarística, encontramos uma leitura dos
nossos livros no sacramento da Reconciliação.
Dentre os textos bíblicos propostos ad
libitum (à escolha) para esse sacramento consta Ne 9,1-20 [5], a “Liturgia
penitencial” celebrada após a leitura da Lei: “os israelitas se reuniram para o jejum (...) e se apresentaram para
confessar seus pecados” (vv. 1-2).
Segue-se aqui uma oração dos levitas, recordando as ações de Deus
em favor do seu povo (criação, aliança com Abraão, êxodo) e as infidelidades deste,
às quais o Senhor respondeu com misericórdia: “Tu és um Deus que perdoa, benigno e misericordioso, paciente e rico em
bondade” (v. 17).
Nos sacramentais,
por sua vez, identificamos a mesma perícope dos nossos livros em quatro
ocasiões:
- na Instituição de
Leitores (ad libitum): Ne
8,2-4a.5-6.8-10 [6]. Como vimos antes, este texto narra a solene leitura da Lei
pelo escriba Esdras. Esta é, com efeito, a mesma função dos leitores: proclamar
as leituras nas celebrações litúrgicas.
- na Dedicação de
igreja: Ne 8,2-4a.5-6.8.10 [7]. Esta é a 1ª leitura própria para a
dedicação de igrejas novas, após a solene entronização do Lecionário, com a
aclamação do Bispo: “A Palavra de Deus
ressoe sempre neste templo...” [8].
- na Bênção de uma
nova cátedra ou sede presidencial (ad
libitum): Ne 8,1-4a.5-6.8-10 [9]. O “estrado
de madeira” da perícope (v. 4a) é associado aqui à cátedra ou cadeira
presidencial, o assento do “Bom Pastor que veio para reunir as ovelhas
dispersas” [10]. A cadeira também se relaciona com a Palavra de Deus, pois dela
o sacerdote pode fazer a homilia, explicando a Palavra [11].
- na Bênção de um novo ambão (ad libitum): Ne 8,2-4a.5-6.8.10 [12]. O “estrado de madeira” no qual Esdras proclamou a Palavra de Deus é associado também ao ambão. O texto refere que Esdras estava “num lugar mais alto” (v. 5): ambão, com efeito, vem do grego ἀναβαίνω (anabaíno), “subir” [13].
O Papa Francisco faz a homilia do ambão da Basílica do Latrão (Ao fundo vê-se a cátedra do Bispo de Roma) |
c) Liturgia das Horas
Na Liturgia das Horas
há apenas uma perícope dos nossos livros em composição harmônica, como leitura
breve das Laudes dos domingos I-IV da
Quaresma: Ne 8,9b.10b [14].
Trata-se da conclusão do episódio da leitura da Lei, quando
Esdras afirma: “Este é um dia consagrado
ao Senhor”, expressão bem adequada ao domingo. O texto está particularmente
em harmonia com o IV Domingo da Quaresma, o chamado “Domingo Laetare”, com sua exortação à alegria: “a alegria do Senhor será nossa força”.
3. Leitura litúrgica
de Esdras e Neemias: Leitura semicontínua
Seguimos nosso percurso com o critério da leitura
semicontínua: a proclamação dos principais textos de um livro na sequência,
oferecendo aos fiéis um contato mais amplo com a Palavra de Deus [15].
a) Celebração
Eucarística
A leitura semicontínua de Esd-Ne ocorre na Celebração Eucarística
nos dias de semana do Tempo Comum,
quando se leem livros do Antigo e do Novo Testamento, várias semanas cada um,
conforme sua extensão [16].
O Livro de Esdras
é lido de segunda a quarta-feira da XXV semana do Tempo Comum do ano ímpar,
enquanto o Livro de Neemias é lido na
semana seguinte, na quarta e
quinta-feira da XXVI semana do Tempo
Comum do ano ímpar, intercalados por dois profetas do mesmo período
histórico: Ageu e Zacarias 1–8.
As perícopes escolhidas dos nossos dois livros são:
XXV semana do Tempo Comum
(ano ímpar):
Segunda-feira: Esd
1,1-6;
Terça-feira: Esd
6,7-8.12b.14-20;
Quarta-feira: Esd
9,5-9 [17].
XXVI semana do Tempo Comum
(ano ímpar):
Quarta-feira: Ne
2,1-8;
Quinta-feira: Ne
8,1-4a.5-6.7b-12 [18].
b) Liturgia das Horas
Na Liturgia das Horas a leitura semicontínua da Sagrada
Escritura é feita no Ofício das Leituras.
No ciclo anual do Ofício não há leituras de Esd-Ne. Porém, no ciclo bienal do Ofício das Leituras, que não foi traduzido para o
Brasil, nossos livros são proclamados entre
a XI e a XIII semanas do Tempo Comum no ano par, novamente intercalados
pela leitura dos profetas contemporâneos, Ageu
e Zacarias 1–8, como na Missa.
Nos anos pares desse ciclo bienal, como indica o n. 152 da Introdução Geral da Liturgia das Horas,
as leituras do Antigo Testamento no Tempo Comum narram “a História da Salvação
depois do exílio até o tempo dos Macabeus” [19].
Indicamos abaixo as treze leituras dos nossos livros, cinco
de Esd e oito de Ne [20]:
Ofício das Leituras
da XI semana do Tempo Comum (Ciclo
bienal: ano par)
Domingo: Prelúdio de
Is 44,21–45, 3: O rei Ciro, salvador
de Israel;
Segunda-feira: Esd 1,1-8; 2,68–3,8: Libertação do povo e retorno dos desterrados. Restauração do culto;
Terça-feira: Esd 4,1-5.24–5,5: Oposição à reconstrução do Templo;
Quarta-feira a sábado:
Ag e Zc 1–8.
Ofício das Leituras
da XII semana do Tempo Comum (Ciclo
bienal: ano par)
Domingo e segunda-feira:
Zc 1–8;
Terça-feira: Esd 6,1-5.14-22: Reconstrução do Templo e celebração da Páscoa;
Quarta-feira: Esd 7,6-28: Missão
do sacerdote Esdras;
Quinta-feira: Esd 9,1-9.15–10,5: Dissolução dos matrimônios proibidos pela Lei;
Sexta-feira: Ne 1,1–2,8: Permissão
do rei a Neemias para ir a Jerusalém;
Sábado: Ne 2,9-20: Neemias
prepara a reconstrução das muralhas de Jerusalém.
Ofício das Leituras
da XIII semana do Tempo Comum (Ciclo
bienal: ano par)
Domingo: Ne 3,33–4,17: Reconstrução
das muralhas de Jerusalém;
Segunda-feira: Ne 5,1-19: Neemias
liberta o povo da opressão dos poderosos;
Terça-feira: Ne 8,1-18: Esdras
lê pela primeira vez e de modo solene a Lei ao povo;
Quarta-feira: Ne 9,1-2.5-21: Liturgia penitencial. Oração dos levitas;
Quinta-feira: Ne 9,22-37: Oração
dos levitas;
Sexta-feira: Ne 12,27-47: Inauguração
da muralha de Jerusalém;
Sábado: Epílogo de Is 59,1-15:
Penitência e salvação.
O escriba Esdras faz a leitura do Livro da Lei (Menorah do Knesset - Jerusalém) |
Concluímos assim nosso percurso pelas leituras dos Livros de Esdras e Neemias nas
celebrações litúrgicas do Rito Romano, e com ele nosso estudo da “história
cronística”, que iniciamos com a análise dos Livros das Crônicas.
Na próxima postagem desta série (a ser publicada no dia 30 de novembro) abordaremos outros dois
livros históricos, os quais integram a chamada “história helenística”: 1 e 2 Macabeus.
Breve bibliografia
sobre Esdras e Neemias usada para esta postagem:
ABADIE, Philippe. Esdras-Neemias.
in: RÖMER, Thomas; MACCHI,
Jean-Daniel; NIHAN, Christophe [org.]. Antigo
Testamento: História, Escritura e Teologia. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2015,
pp. 701-713.
CARRASCO, Joaquín Menchén. Esdras e Neemias. in:
OPORTO, Santiago Guijarro; GARCÍA, Miguel Salvador [org.]. Comentário ao Antigo Testamento I. São Paulo: Ave Maria, 2002, pp.
587-614.
NORTH, Robert. Esdras
e Neemias. in: BROWN, Raymond E.;
FITZMYER, Joseph A.; MURPHY, Roland E. [org.]. Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Antigo Testamento. São Paulo:
Academia Cristã; Paulus, 2007, pp. 767-794.
SANTIAGO, Jesús Campos. Os
livros de Esdras e Neemias. in:
LAMADRID, Antonio González et al. História, narrativa, apocalíptica. São
Paulo: Ave-Maria, 2004, pp. 251-249-290. Coleção: Introdução ao estudo da Bíblia, v. 3B.
Notas:
[1] De 4Esdras 2,34-35 é tomado o célebre Introito (antífona de entrada) das Missas dos
defuntos:
“Réquiem aetérnam dona eis, Dómine,
et lux perpétua lúceat eis. Requiéscant in pace. Amen”
“Dai-lhes, Senhor,
o repouso eterno e brilhe para eles a vossa luz. Que descansem em paz. Amém”
(cf. MISSAL ROMANO, Tradução
portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1991, p.
694).
[2] ALDAZÁBAL, José. A
Mesa da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São
Paulo: Paulinas, 2007, p. 76.
[3] ibid., p. 103.
[4] LECIONÁRIO I: Dominical A-B-C. Tradução portuguesa da 2ª
edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1994, p. x.
[5] RITUAL DA PENITÊNCIA. Tradução portuguesa para o Brasil da segunda edição típica. São
Paulo: Paulus: 1999, p. 92.
[6] LECIONÁRIO IV: Lecionário
do Pontifical Romano. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil.
São Paulo: Paulus, 2000, p. 67.
[7] ibid., p. 177.
[8] PONTIFICAL ROMANO: Dedicação
de igreja e de altar. São Paulo: Paulus, 2000, p. 446. Na igreja onde já se
costuma celebrar (dedicada, por exemplo, por ocasião de uma reforma), deve
escolher-se outra leitura.
[9] RITUAL DE
BÊNÇÃOS. Tradução portuguesa da edição
típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1990, p. 326.
[10] cf. ibid., p. 325.
[11] cf. ALDAZÁBAL,
op. cit., 2007, p. 44.
[12] RITUAL DE BÊNÇÃOS, p. 331.
[13] Sobre o ambão, cf.
ALDAZÁBAL, op. cit., 2007, pp. 48-49.
[14] OFÍCIO DIVINO. Liturgia
das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição
típica. São Paulo: Paulus, 1999, v. II, pp. 76.133.190.247.
[15] cf. ALDAZÁBAL,
op. cit., p. 76.
[16] ibid., p.
105.
[17] LECIONÁRIO II: Semanal. Tradução portuguesa da 2ª edição
típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1995, pp. x-x.
[18] ibid., pp. x-x.
[19] cf. ALDAZÁBAL,
José. Instrução Geral sobre a Liturgia
das Horas - Texto e Comentário. São Paulo: Paulinas, 2010, p. 88.
[20] Os títulos das leituras foram traduzidos livremente do
texto espanhol divulgado pelo site Dei
Verbum.
Nenhum comentário:
Postar um comentário