terça-feira, 23 de novembro de 2021

Leitura litúrgica dos Livros de Esdras e Neemias

“A alegria do Senhor será a vossa força” (Ne 8,10)

Na postagem anterior da nossa série sobre a leitura litúrgica dos livros da Sagrada Escritura analisamos, dentro do bloco dos “livros históricos”, os dois Livros das Crônicas (1Cr e 2Cr).

A história cronística, porém, continua com os livros de Esdras (Esd) e Neemias (Ne), sobre os quais nos deteremos nesta postagem.

1. Breve introdução aos Livros de Esdras e Neemias

Assim como Crônicas, Esdras-Neemias originalmente era um único livro, integrando os Ketubim (ou Ketuvim), os “Escritos” da Bíblia Hebraica. Os dois textos são também um único livro na tradução para o grego, a Septuaginta, sob o nome de 2 Esdras. O livro de 1 Esdras na Septuaginta é um texto apócrifo, uma versão distinta do nosso livro, com alguns acréscimos.

Ícone do escriba Esdras

Foi apenas na Vulgata, a tradução para o latim feita por São Jerônimo, que a obra foi dividida em duas partes, 2 e 3 Esdras, às quais somam-se outro relato apócrifo (4 Esdras, um texto apocalíptico utilizado sobretudo pela Igreja Ortodoxa Etíope) [1].

Posteriormente, os dois livros canônicos foram nomeados como os conhecemos hoje, em referência aos seus protagonistas: o escriba Esdras e o governador Neemias.

Como vimos em nossas postagens sobre o culto aos Santos do Antigo Testamento, o escriba Esdras é comemorado pelo Martirológio Romano no dia 13 de julho.

Os livros, com efeito, narram as reformas atribuídas a esses dois personagens após o retorno do exílio da Babilônia, aproximadamente entre os anos 538 e 428 a. C. (ou, segundo alguns estudiosos, até 398). A cronologia presente nas obras é bastante truncada, e serve mais a propósitos teológicos que históricos.

O início de Esdras nos situa no ano 538 a. C., retomando os últimos versículos de 2Crônicas, com o edito do rei persa Ciro II autorizando o retorno dos exilados para Jerusalém e a reconstrução do Templo.

A seguir descrevem-se os passos da reforma, que constituíram a identidade do Judaísmo pós-exílico:
a) Esd 1–6: Reconstrução do Templo;
b) Esd 7–10: Reforma da comunidade;
c) Ne 1–7: Construção da muralha da Jerusalém;
d) Ne 8–13: Proclamação da Lei e repovoamento de Jerusalém.

Como vimos em nossas postagens sobre os Livros das Crônicas, a maioria dos estudiosos propõe distintos autores para Crônicas e Esdras-Neemias, embora se situem dentro de uma mesma tradição. Com efeito, apesar do contexto histórico e temática comuns, os escritos possuem diferenças teológicas.

Por exemplo, a “teologia da retribuição”, tão forte nas Crônicas, não está tão presente em Esdras-Neemias, enquanto o conflito com os samaritanos, importante nesses últimos escritos, não aparecem nos primeiros.

Alguns estudiosos identificam uma série de paralelismos entre Esdras e Neemias: a reconstrução do templo em Esd 1–6 e a construção das muralhas em Ne 1–7; as orações em Esd 9 e Ne 9; entre outros.

Ícone do governador Neemias

O primeiro pilar da reforma, com efeito, é a reconstrução do Templo, que teria ocorrido entre 538 e 515, entre várias dificuldades internas (o desinteresse do povo) e externas (conflitos com os samaritanos). Nesse período situa-se a atuação dos profetas Ageu e Proto-Zacarias (Zc 1–8).

A construção das muralhas de Jerusalém, por sua vez, iniciada provavelmente em 445, reforça a identidade de Israel como único povo, “fechando-o” a influências externas, o que é corroborado pela proibição de casamentos com estrangeiros.

Por fim, o terceiro pilar das reformas de Esdras e Neemias é a Lei, solenemente proclamada provavelmente entre 430 e 428. Este é também o período da atuação de alguns dos últimos profetas, como Malaquias e o Terceiro Isaías (Is 56–66).

A redação dos livros teria ocorrido pouco tempo depois das reformas, entre os séculos V e IV a. C., ainda durante o período persa. Foram utilizadas várias fontes e gêneros literários: documentos oficiais (como decretos e cartas dos reis persas), memórias de Esdras e Neemias, listas (de objetos do Templo, de famílias, de trabalhadores da muralha, entre outros).

Para saber mais, confira a bibliografia indicada no final da postagem.

2. Leitura litúrgica de Esdras e Neemias: Composição harmônica

Em nossa análise da leitura litúrgica de Esdras-Neemias seguiremos os dois critérios de seleção dos textos indicados pelo n. 66 do Elenco das Leituras da Missa, começando pela composição harmônica: a escolha do texto em sintonia com o tempo ou a festa [2].

a) Celebração Eucarística

Na Celebração Eucarística temos apenas uma leitura de Esd-Ne em composição harmônica, mais especificamente em um domingo do Tempo Comum. Aqui as leituras do Antigo Testamento são escolhidas em “relação às perícopes evangélicas” [3].

Assim, no III Domingo do Tempo Comum do ano C lemos Ne 8,2-4a.5-6.8-10 [4]. Trata-se da solene leitura do livro da Lei pelo escriba Esdras, que faz um paralelo com a leitura da profecia de Isaías por Jesus na sinagoga de Nazaré (Lc 1,1-4; 4,14-21).

Cumpre recordar que nesse dia celebra-se justamente o “Domingo da Palavra de Deus”, instituído pelo Papa Francisco através do Motu proprio Aperuit illis (30 de setembro de 2019), com uma alusão à leitura de Ne 8 no n. 4.

Papa Francisco abençoa com o Evangeliário
(Domingo da Palavra de Deus - 2020)

b) Sacramentos e sacramentais

Além da Celebração Eucarística, encontramos uma leitura dos nossos livros no sacramento da Reconciliação. Dentre os textos bíblicos propostos ad libitum (à escolha) para esse sacramento consta Ne 9,1-20 [5], a “Liturgia penitencial” celebrada após a leitura da Lei: “os israelitas se reuniram para o jejum (...) e se apresentaram para confessar seus pecados” (vv. 1-2).

Segue-se aqui uma oração dos levitas, recordando as ações de Deus em favor do seu povo (criação, aliança com Abraão, êxodo) e as infidelidades deste, às quais o Senhor respondeu com misericórdia: “Tu és um Deus que perdoa, benigno e misericordioso, paciente e rico em bondade” (v. 17).

Nos sacramentais, por sua vez, identificamos a mesma perícope dos nossos livros em quatro ocasiões:

- na Instituição de Leitores (ad libitum): Ne 8,2-4a.5-6.8-10 [6]. Como vimos antes, este texto narra a solene leitura da Lei pelo escriba Esdras. Esta é, com efeito, a mesma função dos leitores: proclamar as leituras nas celebrações litúrgicas.

- na Dedicação de igreja: Ne 8,2-4a.5-6.8.10 [7]. Esta é a 1ª leitura própria para a dedicação de igrejas novas, após a solene entronização do Lecionário, com a aclamação do Bispo: “A Palavra de Deus ressoe sempre neste templo...” [8].

- na Bênção de uma nova cátedra ou sede presidencial (ad libitum): Ne 8,1-4a.5-6.8-10 [9]. O “estrado de madeira” da perícope (v. 4a) é associado aqui à cátedra ou cadeira presidencial, o assento do “Bom Pastor que veio para reunir as ovelhas dispersas” [10]. A cadeira também se relaciona com a Palavra de Deus, pois dela o sacerdote pode fazer a homilia, explicando a Palavra [11].

- na Bênção de um novo ambão (ad libitum): Ne 8,2-4a.5-6.8.10 [12]. O “estrado de madeira” no qual Esdras proclamou a Palavra de Deus é associado também ao ambão. O texto refere que Esdras estava “num lugar mais alto” (v. 5): ambão, com efeito, vem do grego ἀναβαίνω (anabaíno), “subir” [13].

O Papa Francisco faz a homilia do ambão da Basílica do Latrão
(Ao fundo vê-se a cátedra do Bispo de Roma)

c) Liturgia das Horas

Na Liturgia das Horas há apenas uma perícope dos nossos livros em composição harmônica, como leitura breve das Laudes dos domingos I-IV da Quaresma: Ne 8,9b.10b [14].

Trata-se da conclusão do episódio da leitura da Lei, quando Esdras afirma: “Este é um dia consagrado ao Senhor”, expressão bem adequada ao domingo. O texto está particularmente em harmonia com o IV Domingo da Quaresma, o chamado “Domingo Laetare”, com sua exortação à alegria: “a alegria do Senhor será nossa força”.

3. Leitura litúrgica de Esdras e Neemias: Leitura semicontínua

Seguimos nosso percurso com o critério da leitura semicontínua: a proclamação dos principais textos de um livro na sequência, oferecendo aos fiéis um contato mais amplo com a Palavra de Deus [15].

a) Celebração Eucarística

A leitura semicontínua de Esd-Ne ocorre na Celebração Eucarística nos dias de semana do Tempo Comum, quando se leem livros do Antigo e do Novo Testamento, várias semanas cada um, conforme sua extensão [16].

O Livro de Esdras é lido de segunda a quarta-feira da XXV semana do Tempo Comum do ano ímpar, enquanto o Livro de Neemias é lido na semana seguinte, na quarta e quinta-feira da XXVI semana do Tempo Comum do ano ímpar, intercalados por dois profetas do mesmo período histórico: Ageu e Zacarias 1–8.

As perícopes escolhidas dos nossos dois livros são:

XXV semana do Tempo Comum (ano ímpar):
Segunda-feira: Esd 1,1-6;
Terça-feira: Esd 6,7-8.12b.14-20;
Quarta-feira: Esd 9,5-9 [17].

XXVI semana do Tempo Comum (ano ímpar):
Quarta-feira: Ne 2,1-8;
Quinta-feira: Ne 8,1-4a.5-6.7b-12 [18].

O governador Neemias guia o retorno dos exilados
(Menorah do Knesset - Jerusalém)

b) Liturgia das Horas

Na Liturgia das Horas a leitura semicontínua da Sagrada Escritura é feita no Ofício das Leituras.

No ciclo anual do Ofício não há leituras de Esd-Ne. Porém, no ciclo bienal do Ofício das Leituras, que não foi traduzido para o Brasil, nossos livros são proclamados entre a XI e a XIII semanas do Tempo Comum no ano par, novamente intercalados pela leitura dos profetas contemporâneos, Ageu e Zacarias 1–8, como na Missa.

Nos anos pares desse ciclo bienal, como indica o n. 152 da Introdução Geral da Liturgia das Horas, as leituras do Antigo Testamento no Tempo Comum narram “a História da Salvação depois do exílio até o tempo dos Macabeus” [19].

Indicamos abaixo as treze leituras dos nossos livros, cinco de Esd e oito de Ne [20]:

Ofício das Leituras da XI semana do Tempo Comum (Ciclo bienal: ano par)
Domingo: Prelúdio de Is 44,21–45, 3: O rei Ciro, salvador de Israel;
Segunda-feira: Esd 1,1-8; 2,68–3,8: Libertação do povo e retorno dos desterrados. Restauração do culto;
Terça-feira: Esd 4,1-5.24–5,5: Oposição à reconstrução do Templo;
Quarta-feira a sábado: Ag e Zc 1–8.

Ofício das Leituras da XII semana do Tempo Comum (Ciclo bienal: ano par)
Domingo e segunda-feira: Zc 1–8;
Terça-feira: Esd 6,1-5.14-22: Reconstrução do Templo e celebração da Páscoa;
Quarta-feira: Esd 7,6-28: Missão do sacerdote Esdras;
Quinta-feira: Esd 9,1-9.15–10,5: Dissolução dos matrimônios proibidos pela Lei;
Sexta-feira: Ne 1,1–2,8: Permissão do rei a Neemias para ir a Jerusalém;
Sábado: Ne 2,9-20: Neemias prepara a reconstrução das muralhas de Jerusalém.

Ofício das Leituras da XIII semana do Tempo Comum (Ciclo bienal: ano par)
Domingo: Ne 3,33–4,17: Reconstrução das muralhas de Jerusalém;
Segunda-feira: Ne 5,1-19: Neemias liberta o povo da opressão dos poderosos;
Terça-feira: Ne 8,1-18: Esdras lê pela primeira vez e de modo solene a Lei ao povo;
Quarta-feira: Ne 9,1-2.5-21: Liturgia penitencial. Oração dos levitas;
Quinta-feira: Ne 9,22-37: Oração dos levitas;
Sexta-feira: Ne 12,27-47: Inauguração da muralha de Jerusalém;
Sábado: Epílogo de Is 59,1-15: Penitência e salvação.

O escriba Esdras faz a leitura do Livro da Lei
(Menorah do Knesset - Jerusalém)

Concluímos assim nosso percurso pelas leituras dos Livros de Esdras e Neemias nas celebrações litúrgicas do Rito Romano, e com ele nosso estudo da “história cronística”, que iniciamos com a análise dos Livros das Crônicas.

Na próxima postagem desta série (a ser publicada no dia 30 de novembro) abordaremos outros dois livros históricos, os quais integram a chamada “história helenística”: 1 e 2 Macabeus.

Breve bibliografia sobre Esdras e Neemias usada para esta postagem:

ABADIE, Philippe. Esdras-Neemias. in: RÖMER, Thomas; MACCHI, Jean-Daniel; NIHAN, Christophe [org.]. Antigo Testamento: História, Escritura e Teologia. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2015, pp. 701-713.

CARRASCO, Joaquín Menchén. Esdras e Neemias. in: OPORTO, Santiago Guijarro; GARCÍA, Miguel Salvador [org.]. Comentário ao Antigo Testamento I. São Paulo: Ave Maria, 2002, pp. 587-614.

NORTH, Robert. Esdras e Neemias. in: BROWN, Raymond E.; FITZMYER, Joseph A.; MURPHY, Roland E. [org.]. Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Antigo Testamento. São Paulo: Academia Cristã; Paulus, 2007, pp. 767-794.

SANTIAGO, Jesús Campos. Os livros de Esdras e Neemias. in: LAMADRID, Antonio González et al. História, narrativa, apocalíptica. São Paulo: Ave-Maria, 2004, pp. 251-249-290. Coleção: Introdução ao estudo da Bíblia, v. 3B.

Notas:
[1] De 4Esdras 2,34-35 é tomado o célebre Introito (antífona de entrada) das Missas dos defuntos:
Réquiem aetérnam dona eis, Dómine, et lux perpétua lúceat eis. Requiéscant in pace. Amen
“Dai-lhes, Senhor, o repouso eterno e brilhe para eles a vossa luz. Que descansem em paz. Amém”
(cf. MISSAL ROMANO, Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1991, p. 694).


[2] ALDAZÁBAL, José. A Mesa da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São Paulo: Paulinas, 2007, p. 76.
[3] ibid., p. 103.
[4] LECIONÁRIO I: Dominical A-B-C. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1994, p. x.
[5] RITUAL DA PENITÊNCIA. Tradução portuguesa para o Brasil da segunda edição típica. São Paulo: Paulus: 1999, p. 92.
[6] LECIONÁRIO IV: Lecionário do Pontifical Romano. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 2000, p. 67.
[7] ibid., p. 177.
[8] PONTIFICAL ROMANO: Dedicação de igreja e de altar. São Paulo: Paulus, 2000, p. 446. Na igreja onde já se costuma celebrar (dedicada, por exemplo, por ocasião de uma reforma), deve escolher-se outra leitura.
[9] RITUAL DE BÊNÇÃOS. Tradução portuguesa da edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1990, p. 326.
[10] cf. ibid., p. 325.
[11] cf. ALDAZÁBAL, op. cit., 2007, p. 44.
[12] RITUAL DE BÊNÇÃOS, p. 331.
[13] Sobre o ambão, cf. ALDAZÁBAL, op. cit., 2007, pp. 48-49.
[14] OFÍCIO DIVINO. Liturgia das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição típica. São Paulo: Paulus, 1999, v. II, pp. 76.133.190.247.
[15] cf. ALDAZÁBAL, op. cit., p. 76.
[16] ibid., p. 105.
[17] LECIONÁRIO II: Semanal. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1995, pp. x-x.
[18] ibid., pp. x-x.
[19] cf. ALDAZÁBAL, José. Instrução Geral sobre a Liturgia das Horas - Texto e Comentário. São Paulo: Paulinas, 2010, p. 88.
[20] Os títulos das leituras foram traduzidos livremente do texto espanhol divulgado pelo site Dei Verbum.

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