“De alegria estremece
o universo por tua santa Apresentação, Virgem sem mancha” (Jorge de Nicomédia).
Continuamos nossa série de postagens sobre os ícones das festas litúrgicas com a segunda grande festa mariana do calendário bizantino: a
Entrada da Santíssima Mãe de Deus no Templo (Εἴσοδος τῆς Παναγίας Θεοτόκου εις
τον Ναόν), ou, como é conhecida no Ocidente, a Apresentação da Bem-aventurada
Virgem Maria, celebrada no dia 21 de novembro [1].
1. História e
significado da festa
Como no caso da Natividade de Maria, a tradição a respeito
da sua Apresentação no Templo de Jerusalém foi compilada no Protoevangelho de Tiago, texto apócrifo
escrito em grego na metade do século II, atribuído a Tiago, o “Irmão do Senhor”
[2].
A escolha do dia 21 de novembro para a celebração desse
mistério está relacionada à dedicação da igreja de Santa Maria “Nova” em
Jerusalém no ano de 543.
Apesar da destruição da igreja no ano de 614, a festa se
propagou no Oriente a partir do século VIII, como testemunham as homilias dos
Padres da Igreja.
No Ocidente, por sua vez, a celebração chegou mais tarde,
através de alguns mosteiros do sul da Itália sob influência oriental. De certa
forma, o conteúdo teológico da festa da Apresentação - isto é, a total
consagração de Maria a Deus - é destacado no Ocidente na Solenidade da
Imaculada Conceição, celebrada poucos dias depois, a 08 de dezembro.
Em 1471 o Papa Sisto IV (†1484) permitiu que a festa fosse
celebrada em toda a Igreja de Rito Romano e, em 1585, Sisto V (†1590) a
inscreveu definitivamente no Calendário Romano Geral.
Para saber mais, confira nossa postagem sobre a história da Memória da Apresentação de Maria.
A Apresentação de Maria serve de “prelúdio” ao mistério da Encarnação:
ela é o verdadeiro “templo do Senhor”, a “arca da nova aliança”, pois foi em
seu ventre que “o Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14). No “sim” da Mãe e do Filho cumpriram-se as promessas
feitas pelo Senhor aos patriarcas e profetas.
O relato da Apresentação de Maria, com efeito, possui
diversos paralelos com alguns textos do Antigo Testamento, sobretudo com a história
do profeta Samuel, consagrado ao Senhor por sua mãe, Ana (1Sm 1–3).
“O templo puríssimo do Salvador, a Virgem, a preciosíssima câmara nupcial, o sagrado tesouro da glória de Deus, é apresentada hoje à casa do Senhor, introduzindo com ela a graça do Espírito Divino. Os anjos de Deus a louvam, clamando: Esta é o tabernáculo celeste!”
(Kondákion da festa no Rito Bizantino) [3].
2. O ícone
O ícone da Apresentação da Mãe de Deus é claramente
inspirado no relato do Protoevangelho de
Tiago, traçando também alguns paralelos com o ícone da Apresentação do Senhor,
como veremos a seguir.
a) O ambiente:
O ambiente é, naturalmente, o Templo de Jerusalém. No fundo
do ícone temos o muro, que delimita o espaço sagrado, e a porta, que nos remete
à Ezequiel sobre a porta oriental do Templo, que permaneceria fechada até a
vinda do Senhor: “Esta porta ficará
fechada. Não se abrirá e ninguém entrará por ela, porque por ela entrará o
Senhor, Deus de Israel” (Ez
44,2). Este versículo sempre foi interpretado pelos Padres da Igreja em alusão
à maternidade divina e à perpétua virgindade de Maria.
Além da porta, encontramos também no fundo da cena um
baldaquino ou cibório, que recorda a “tenda da reunião”, associação reforçada
pela presença de uma cortina, a qual encobria o “santo dos santos” (Ex 26). É esta a cortina que se rasga no
momento da Morte de Jesus, indicando o fim da primeira aliança (Mt 27,5; Mc 15,38; Lc 23,45).
Do alto do baldaquino pende uma lâmpada, símbolo da aliança perene
de Israel com Deus: no Templo, com efeito, permanecia sempre acesa a menorah (Ex 25; Lv 24), candelabro
de sete braços que remete tanto à sarça ardente (Ex 3) quanto aos dias da criação (Gn 1).
Sob o baldaquino há um trono ou altar, o qual deveria
custodiar a antiga arca da aliança, mas que se encontra vazio: Maria é a verdadeira
arca da nova e eterna aliança, a qual se consumará na entrega livre e amorosa
do próprio Filho de Deus.
Esse altar, portanto, integra um crescendo: na Apresentação de Maria está vazio, pois as profecias
ainda estão para cumprir-se; na Apresentação do Senhor, por sua vez, tem sobre
si o livro, pois “o Verbo se fez carne e armou sua tenda no meio de nós” (Jo 1,14).
b) Maria:
No centro do ícone encontra-se Maria, representada em
pequenas proporções (por ser uma criança), mas com o porte e as vestes de uma
mulher adulta, simbolizando que sua entrega ao Senhor é livre e consciente. O
mesmo atesta a posição de suas mãos, abertas em direção ao templo (o gesto do
orante na iconografia cristã).
As vestes da menina são as mesmas com as quais ela é tradicionalmente representada: túnica azul, para simbolizar que seu
ventre será fecundado pelo divino, que ela carregará nele o próprio céu; e
manto vermelho cobrindo-a quase inteiramente, recordando-nos a sua humanidade.
Além disso, podem aparecer as tradicionais três estrelas na
fronte e nos ombros. Essas estrelas remetem à Trindade, que a “cobriu com sua
sombra” (Lc 1,35), e à sua virgindade
perpétua, isto é, sua consagração total a Deus no passado, no presente e no
futuro.
Uma vez referido o número três, segundo o relato do Protoevangelho de Tiago a Virgem está
com três anos de idade, recordando o sacrifício de Ana na consagração de Samuel:
um novilho de três anos (1Sm 1,24). Trata-se
também de uma referência à Trindade, como atesta Germano de Constantinopla (†740):
“Posto que uma Pessoa da Santíssima Trindade, anterior a
todo princípio, dispunha-se, com o beneplácito do Pai, a encerrar-se no seio
desta menina, virgem e mãe, por sua própria vontade e através da sombra do
santíssimo Espírito, convinha que também ela fosse consagrada da forma mais
excelsa e enaltecida pela virtude deste número, em virtude do qual é levada ao
templo na idade de três anos” [4].
Em algumas versões do ícone o simbolismo é reforçado pela
presença da menina no terceiro degrau da escadaria do Templo. A escada, com
efeito, é sempre símbolo da ascensão espiritual: na profecia de Ezequiel o
Templo possui sete degraus (Ez
40,22.26), número da perfeição.
Na tradição ocidental, o Templo na Apresentação de Maria
passará a ser representado com quinze degraus, mesmo número dos “salmos das
subidas” que os peregrinos entoavam a caminho de Jerusalém (Sl 120–134). No calendário judaico, além
disso, cujo mês começava sempre na lua nova, o 15º dia do mês caía sempre na
lua cheia, sendo portanto um número associado à luz.
O Protoevangelho
destaca ainda que a menina “não olha para trás” ao subir os degraus do Templo (cf. Lc
9,62), colocando toda a sua vida sob o “sinal” da obediência ao Senhor.
c) O sacerdote,
Joaquim e Ana:
Junto ao baldaquino encontramos o sacerdote que recebe a
menina, que os Padres da Igreja tradicionalmente identificam com Joaquim, pai
de João Batista (Lc 1).
Alguns Padres compõem inclusive um longo diálogo entre o
sacerdote e os pais da Virgem Maria, Joaquim e Ana, representados atrás dela em
uma atitude orante e de entrega, com as mãos estendidas ou junto ao coração.
Nesse diálogo, enquanto os pais pedem ao sacerdote que
acolha e cuide de sua filha, o sacerdote louva a Deus pelo cumprimento das
promessas feitas ao longo da primeira aliança, que têm seu ápice no “sim” de
Maria.
Ana ao sacerdote: “Recebe-a e conduze-a ao
mais ao mais íntimo sagrado do templo do Senhor e cuida dela. Ela me foi dada
como fruto da promessa de entregá-la alegremente e cheia de fé a Deus. Ela é o
tabernáculo supercelestial!”.
Sacerdote: “Esta
menina imaculada que aqui e agora apresentas, tinham-na já imaginado e
celebrado todos os profetas, a Lei e os justos anteriores à Lei, revelando ao
mesmo tempo o mistério que por seu intermédio tinha de manifestar-se a todos os
fiéis. Ela é o tabernáculo supercelestial!” [5].
d) As virgens:
Junto a Joaquim e Ana encontramos um grupo de jovens com
velas acesas nas mãos, que acompanham Maria até o Templo. São as virgens
mencionadas no Protoevangelho de Tiago,
que retomam o Salmo 44:
“Majestosa, a princesa
real vem chegando, vestida de ricos brocados de ouro. Em vestes vistosas ao Rei
se dirige, e as virgens amigas lhe formam cortejo. Entre cantos de festa e com
grande alegria, ingressam, então, no palácio real” (Sl 44,14-16).
Além disso, a presença das virgens com lâmpadas acesas dá à
cena uma dimensão nupcial (Mt
25,1-13): é a união mística de Maria com o Senhor e o prelúdio da Encarnação de
Cristo, Luz do mundo, como canta José, o hinógrafo:
“As virgens, com as tochas acesas, vão adiante de ti,
predestinada a acolher em teu interior a Luz que procede da Luz, e em coro
acompanham-te ao templo resplandecente do Senhor” [6].
e) O anjo:
Por fim, em algumas versões do ícone Maria é retratada também
em uma das janelas do Templo sendo alimentada por um anjo. Este dado também é
mencionado no Protoevangelho, tanto como
um prelúdio da Anunciação quanto como símbolo da atitude orante de Maria no Templo,
pois o “pão angelical” que recebe é a contemplação, pois “os anjos contemplam sem cessar a face do Pai do céu” (Mt 18,10).
“Hoje é o prelúdio da benevolência de Deus e a proclamação
preliminar da salvação dos homens. A Virgem apresenta-se com esplendor no
templo de Deus e antecipadamente anuncia Cristo a todos. A ela, nós também clamemos
em alta voz: Salve, ó realização da economia do Criador!”
(Tropárion da festa no Rito Bizantino) [7].
Notas:
[1] No calendário juliano, utilizado pela maioria das
Igrejas Orientais (tanto Católicas quanto Ortodoxas), com 13 dias de diferença
em relação ao gregoriano, o dia 21 de novembro corresponde a 04 de dezembro no
calendário gregoriano.
[2] cf. PROENÇA,
Eduardo de [org.]. Apócrifos e
pseudo-epígrafos da Bíblia, vol. I. São Paulo: Fonte Editorial, 2005, pp. 520-522.
[3] SPERANDIO, João Manoel; TAMANINI, Paulo Augusto [org.]. Liturgikon: Próprio das Festas no Rito
Bizantino. Teresina: Editora da Universidade Federal do Piauí, 2015, pp. 15-16.
[4] PASSARELLI, O
ícone da Apresentação de Maria. São Paulo: Ave Maria, 1996, p. 19. Coleção:
Iconostásio, 5.
[5] ibid., pp.
23-24.
[6] ibid., p. 20.
[7] SPERANDIO, op.
cit., p. 15.
Referências:
DONADEO, Madre Maria. O
Ano Litúrgico Bizantino. São Paulo: Ave Maria, 1998, pp. 41-45.
PASSARELLI, Gaetano. O
ícone da Apresentação de Maria. São Paulo: Ave Maria, 1996. Coleção:
Iconostásio, 5.
Postagem publicada originalmente em 21 de novembro de 2019.
Revista e ampliada em 28 de outubro de 2022.
Nenhum comentário:
Postar um comentário