“Cristo ressuscitou de
entre os mortos, com sua morte destruiu a morte e aos que jaziam no sepulcro
deu a vida” - Tropário da Páscoa
[1]
Em nossa série de postagens sobre os ícones das festas litúrgicas, após refletir sobre o primeiro dia do Tríduo Pascal, o Dia do
Senhor Crucificado, e calar sobre o segundo, o Dia do Senhor Sepultado,
chegamos ao terceiro dia, o Dia do Senhor Ressuscitado. É a mãe de todas as
festas, o centro e o ápice de todo o Ano Litúrgico: a Páscoa da Ressurreição de
nosso Senhor Jesus Cristo.
Origem e conteúdo da
festa:
A Páscoa da Ressurreição é a mais antiga de todas as festas
cristãs, celebrada em seu ritmo semanal (o domingo) desde os tempos apostólicos,
e como festa anual desde o século II.
No início, enquanto algumas igrejas celebravam a Páscoa no
dia 14 do mês judaico do Nisã (primeira lua cheia da primavera no hemisfério
norte), enfatizando o mistério da Paixão, outras celebravam no domingo seguinte,
enfatizando assim a Ressurreição. O Concílio de Niceia (325) irá ratificar a
celebração da Páscoa cristã sempre no domingo.
No Rito Romano, o centro da celebração é a Vigília Pascal na
noite de sábado, que começou a desenvolver-se no século IV e possui quatro
“Liturgias”: da luz, da Palavra (com até nove leituras), do Batismo e da
Eucaristia. Há uma segunda Missa, celebrada no domingo, mas que não possui a
mesma solenidade.
No Rito Bizantino, por sua vez, ocorre o inverso: as
Vésperas e a Divina Liturgia do sábado, com quinze leituras, não possuem tanta
solenidade, diferentemente da Divina Liturgia do domingo, celebrada à
meia-noite ou nas primeiras horas da manhã, com uma solene procissão ao redor
da igreja e textos litúrgicos de incomparável beleza, como o Cânon Pascal de
São João Damasceno [2].
Paradoxalmente, porém, as representações iconográficas da
Ressurreição nas duas tradições enfatizam outros aspectos do mesmo mistério: no
Ocidente, enquanto a principal Liturgia é a do sábado, as imagens retratam o
Cristo Ressuscitado em pé sobre o sepulcro, na manhã de domingo; no Oriente,
por sua vez, a principal celebração é a do domingo, mas o ícone retrata o
mistério do sábado: a descida de Cristo ao Hades, a “mansão dos mortos”.
Tal tema encontra seu fundamento em 1Pd 3,18-20: Cristo “foi
pregar também aos espíritos na prisão”. O próprio Jesus já havia prefigurado
este mistério, traçando o paralelo com Jonas, “sepultado” por três dias no
ventre do monstro marinho (Mt 12,38-40):
“[Cristo] caiu nas
fauces da morte e, como Jonas no ventre do cetáceo, repousou entre os mortos,
não como vencido, mas para recuperar a dracma perdida, para resgatar a ovelha
desgarrada, isto é, Adão. Lâmpada luminosa, a carne de Deus dissipa as trevas
da mansão dos mortos. E brilha a luz em meio às trevas” (Lc 1,78-79) [3].
O Cristo que desce ao Hades para resgatar Adão, isto é, a
humanidade caída, é um tema recorrente em escritos apócrifos e antigas
homilias, sendo a mais célebre a que consta no Ofício das Leituras do Sábado
Santo, que remonta ao século IV [4]. Elementos destes relatos estão presentes
no ícone, como veremos a seguir.
O ícone
O ambiente: O
ambiente é a morada dos mortos (em grego, Hades; em hebraico, Sheol), retratada
como um abismo escuro, o mesmo já prefigurado nos ícones da Natividade, da
Teofania e da Crucificação.
Traçando o paralelo com o episódio de Jonas, o Hades pode
ser representado como um grande monstro marinho com as fauces abertas. Ele está
para “vomitar” o Cristo Ressuscitado e, com Ele, todos os que havia engolido.
Por isso Paulo “debocha” da morte na Primeira Carta aos Coríntios: “Morte, onde
está a tua vitória? Morte, onde está o teu aguilhão?” (1Cor 15,55).
É mais comum, porém, suas duas “fauces” serem representadas
como duas montanhas, como no ícone da Teofania, as quais são “rasgadas” pela
descida de Cristo, retomando os elementos do relato mateano da Paixão: o véu do
templo que se rasga e o terremoto que parte ao meio as rochas (Mt 27,51).
Além da profundidade do abismo, as montanhas podem evocar
também a “solidez dos fundamentos da nossa fé” [5] e a verdade da Ressurreição,
como evoca Paulo: “Se Cristo não ressuscitou, vã é nossa fé” (1Cor 15,14.17)
Além disso, as “fauces” aparecem também como as duas portas
do Hades, arrancadas dos umbrais e caídas sob os pés de Cristo, junto com suas
trancas quebradas. O próprio Jesus havia anunciado que tais portas não teriam
poder sobre sua Igreja (Mt 16,18).
Por fim, vemos em algumas versões do ícone o próprio Hades
personificado junto às portas, na forma de um homem acorrentado, vencido pelo Senhor.
Cristo: O centro
do ícone é ocupado por Cristo, que está em pé sobre as portas da morte. Aparece
com uma longa túnica branca, cor que aqui indica a luz que dissipa as trevas do
pecado e da morte, as mesmas vestes prefiguradas na Transfiguração (Mt 17,1-8 e
paralelos):
“É a toga viril,
símbolo da afirmação, da responsabilidade assumida, de poder conquistado e
reconhecido, de renascimento levado à consumada plenitude, de consagração. O branco, em uma palavra, é o símbolo da
revelação, da transfiguração deslumbrante. O resplendor das vestes de Cristo
emana luz: tudo ao seu redor aparece, efetivamente, como uma grande auréola ou
o arco-íris como símbolo de todas as cores” [6].
A auréola costuma aparece ao redor de Cristo na forma oval,
recordando o ovo, símbolo da vida nova. A auréola começa mais clara nas
extremidades e vai escurecendo à medida que se avança para o centro, onde
está Jesus: é um duplo simbolismo da luz
que Ele concede e do abismo onde desceu.
Sobre a túnica branca, pendendo sobre o ombro direito, está
uma estola dourada: trata-se de um símbolo de sua dignidade sacerdotal (a estola)
e régia (a cor dourada).
Em algumas versões do ícone Cristo traz apoiada no ombro
esquerdo a cruz, símbolo da sua vitória, representada como o cajado do pastor
com o qual Ele vem resgatar a ovelha perdida.
A cruz é a “chave de
vitória e de redenção”: Cristo a traz “como
libertador daqueles que eram verdadeiros prisioneiros” [7], como Ele
proclama no Apocalipse: “Estive morto, mas eis que estou vivo pelos séculos dos
séculos e tenho as chaves da Morte e do Hades” (Ap 1,18).
A cruz é ainda “a
escada de Jacó e o caminho dos anjos (Gn
28,10-19), e nela está realmente apoiado
o Senhor (...) ela é a árvore de dimensões celestes que se eleva da terra ao
céu (...) é o sustentáculo de todas as coisas e o apoio do universo” [8].
Os anjos aparecem efetivamente em algumas versões deste
ícone acompanhando o Senhor e ajudando-o a arrebanhar as almas dos justos,
conduzindo-as ao paraíso. O tema da árvore, por sua vez, remete à presença de
Adão e Eva, como veremos a seguir, que pecaram junto de uma árvore e agora são
salvos pela árvore da cruz,
Os justos: Por
fim, completam o ícone as figuras dos justos do Antigo Testamento,
representados em vestes coloridas que evocam o arco-íris, sinal da aliança (Gn
9,12-17), que haure suas cores da luz que é Cristo, como evoca o texto paulino
repetido diversas vezes nos ritos bizantinos da Páscoa: “Vós que fostes
batizados em Cristo, vos revestistes de Cristo” (Gl 3,27)
Em primeiro plano temos Adão e Eva, geralmente segurando nas
mãos do Senhor, como narra a antiga homilia no Sábado Santo. Ao menos um dos
dois aparece trajando um vermelho muito forte, aqui símbolo do pecado. Adão
costuma ainda ser representado descalço, tradicional gesto de humildade no
Oriente (Ex 3,5).
Em algumas versões do ícone, Adão e Eva estão saindo de
pequenos túmulos, símbolo de sua participação no mistério da Ressurreição do
Senhor. São também o local onde “dormiam”, “esperando” o dia da Ressurreição e
o convite: “Acorda, tu que dormes, desperta dentre os mortos, e Cristo te
iluminará!” (Ef 5,14).
Atrás dos primeiros pais, dos dois lados de Cristo,
encontramos outros justos do Antigo Testamento. O primeiro deles, à direita de
Jesus, é geralmente João Batista: o Evangelho Apócrifo de Nicodemos (como vimos
no texto sobre o ícone da Teofania) narra sua descida ao Hades como precursor
do Senhor, anunciando sua vinda próxima.
Ao lado de João Batista aparecem geralmente Davi e Salomão,
facilmente identificáveis por suas coroas de reis do povo de Israel. Do outro
lado, à esquerda de Cristo, costumamos encontrar Moisés e alguns dos profetas (comumente Jonas entre eles, dado o paralelo com
a Ressurreição do episódio do monstro marinho).
“Desceste ao túmulo, ó Imortal, e destruíste o poder do Hades;
ressurgiste como um vencedor, ó Cristo Deus, anunciando às mirróforas:
Regozijai-vos!, e dando a paz a seus Apóstolos, tu que ofereces aos caídos a
ressurreição”
Kontákion da Páscoa [9]
[1] PASSARELLI, Gaetano. O
ícone da Ressurreição. São Paulo: Ave Maria, 1996, p. 36. Coleção: Iconostásio, 10.
[2] Sobre a história desta celebração confira:
ADAM, Adolf. O Ano
Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica.
São Paulo: Loyola, 2019, pp. 39-43.53-60.
DONADEO, Madre Maria. O
Ano Litúrgico Bizantino. São Paulo: Ave Maria, 1998, pp. 23-30.
RIGHETTI, Mario. Historia
de la Liturgia, v. I: Introducción general; El año litúrgico; El Breviario.
Madrid: BAC, 1945, pp. 812-840.
[3] PASSARELLI, op.
cit., p. 08.
[4] OFÍCIO DIVINO. Liturgia
das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição
típica. São Paulo: Paulus, 2000, v. 2: Tempo
da Quaresma, Tríduo Pascal, Tempo da Páscoa, pp. 439-440.
[5] PASSARELLI, op.
cit., p. 18.
[6] ibid., pp. 26-27.
[7] ibid., pp. 13-14.
[8] ibid., p. 14.
[9] DONADEO, op. cit.,
p. 26.
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