domingo, 2 de fevereiro de 2020

O ícone da Apresentação do Senhor

“Festejemos de maneira esplendorosa, com lâmpadas brilhantes, o mistério deste dia” - São Cirilo de Alexandria [1]

Na série sobre os ícones das festas litúrgicas já falamos das três grandes solenidades do Tempo do Natal (Natividade do Senhor, Santa Mãe de Deus e Teofania). Hoje vamos refletir sobre uma festa que é celebrada como “eco” deste tempo: a Apresentação do Senhor ou, como é conhecida na tradição oriental, Hypapanté (Festa do “Encontro”).

Origem e conteúdo da festa

O primeiro testemunho sobre a festa remonta ao século IV: a peregrina Etéria, em seu Itinerarium, narra as celebrações que ocorriam 40 dias após a Epifania (14 de fevereiro) em Jerusalém, com procissões solenes e a proclamação do Evangelho (Lc 2,22-39).

Durante os séculos seguintes a festa se estendeu a outras igrejas, chegando a Roma durante o pontificado do Papa Sérgio I, transferida para o dia 02 de fevereiro (40º dia após o Natal).

Ainda no século V foi introduzida a procissão acompanhada de tochas, evidenciando as palavras do cântico de Simeão, que proclama Cristo “luz das nações” (Lc 2,32). A partir da Gália as tochas foram substituídas por velas, abençoadas antes da procissão.

Com o tempo, porém, a Igreja de Roma daria a esta procissão festiva um caráter penitencial. A partir do século VIII também se muda o acento da festa: de cristológica, como sempre foi conservada na tradição oriental, passa a ser uma festa mariana, com o nome de “Purificação de Maria”. A data só recuperaria seu caráter cristológico com a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II [2].

De fato, como afirmamos acima, no Oriente esta festa se celebra com o nome de Hypapanté, “encontro”. Trata-se do encontro de Deus com o seu povo, na pessoa do Filho que é levado ao Templo por Maria e José para cumprir os preceitos da Lei (cf. Ex 13,1-2.11-16); é o encontro do Antigo e do Novo Testamentos, simbolizados respectivamente pelo velho Simeão e pela jovem Mãe com seu Filho nos braços.

Note-se que o acento está todo em Cristo que, embora não possa falar e tenha de ser levado nos braços por Maria, é Aquele que traz a salvação, como anuncia Simeão: “meus olhos viram a tua salvação” (Lc 2,31).

O ícone


O ambiente: Como no ícone da Apresentação de Maria, o ambiente é o templo de Jerusalém. Porém, o que na apresentação de Maria era profecia, agora é realidade: “graças ao misericordioso coração do nosso Deus, o Sol nascente nos veio visitar” (Lc 1,78).

Assim, o altar sob o baldaquino, que domina o centro da cena, não está mais vazio: sobre ele está um livro fechado, indicando que todas as profecias do Antigo Testamento se cumpriram e agora, em Cristo, tem início o Novo.

Atrás do baldaquino central costumam ser representados outros dois edifícios, imagens do Antigo e do Novo Testamentos, de Israel e da Igreja. Em algumas versões do ícone estes dois edifícios são unidos por um véu estendido: “é o véu da misericórdia de Deus (...) que une o Templo à Igreja como elementos integrais, ele e ela, do único culto que tem lugar no altar santo” [3].

A Mãe e o Filho: Neste ícone o Menino costuma ser representado nos braços estendidos de sua Mãe, que está para entregá-lo a Simeão (ou, em outras versões, nos braços do próprio ancião).

A Virgem está no centro da cena, logo abaixo da lâmpada que pende sob o baldaquino do templo. Ela é, com efeito, a “lâmpada resplandecente para quem está nas trevas e que, ao dar-nos a Luz imaterial, guia a todos para o conhecimento divino” [4].

Maria tem uma atitude orante, contemplativa, como que a “guardar no coração todas estas coisas” (Lc 2,19.51). Um hino de São Romanos, o Melode apresenta o “espanto” da Virgem diante do mistério do Deus feito homem em seus braços: “Que te darei: meu leite ou meus louvores?” [5].

A dupla natureza de Cristo é anunciada também nas vestes da Mãe: o manto é vermelho, cor que evoca a humanidade (sangue) e o “martírio” da Virgem, a espada de dor anunciada por Simeão (Lc 2,35). A túnica, porém, é azul, recordando o céu que Maria trouxe no ventre e o grande mistério da misericórdia de Deus.

O Menino, nos braços de Maria ou de Simeão, é representado em pequenas proporções, quase desaparecendo na cena, sinal de sua fragilidade (afinal, é um recém-nascido de 40 dias), indicando a verdade da Encarnação.

Costuma ser representado com um braço estendido: é o braço estendido para a ovelha perdida, é o braço que faz a ponte entre o Antigo e o Novo Testamentos. É o novo homem que vem para resgatar o velho homem, Adão, que antes havia estendido as mãos para tomar o fruto proibido: agora será Deus a estender livremente os braços na árvore da Cruz.

Em algumas interpretações, a mão estendida de Jesus remete à visão de Isaías (Is 6,1-7), que após contemplar a epifania do Deus três vezes Santo é purificado por um dos anjos, o qual estende para ele uma brasa acesa que “queima” seus pecados. É o que Cristo realizará ao longo de toda a sua vida e de maneira especial no mistério da Cruz.

Simeão: No canto direito do ícone encontramos Simeão, geralmente sobre um estrado, como o sacerdote no ícone da Apresentação de Maria. Em algumas versões segura o Menino em seus braços, em outras o está recebendo de Maria: mas em ambas tem as mãos encobertas pelo manto (como os anjos no ícone da Teofania) e o corpo encurvado, atitudes de humilde adoração.

Sua atitude humilde, como a de João Batista no ícone da Teofania, indica que não é ele a receber o Menino, mas que de certa forma é o Menino quem o acolhe. Como no caso do Batismo, no qual Jesus não desce às águas para purificar-se, mas para santificá-las, o mesmo acontece aqui: Ele e sua Mãe não necessitam de purificação, vêm ao Templo para santificá-lo com a sua presença.

Ao acolher o Salvador, Simeão representa todos os justos do Antigo Testamento. Isto é evidenciado pelo seu cântico: “Agora, Senhor, podes deixar teu servo ir em paz” (Lc 2,29), que remete à promessa que o próprio Deus fez a Abraão: “Quanto a ti, em paz irás para teus pais, serás sepultado numa velhice feliz” (Gn 15,15).

O encontro entre o Menino e o ancião se dá diante do altar, evidenciado o porquê da Encarnação: o Filho veio ao mundo para oferecer-se livremente em sacrifício por amor a nós. Ele é o “Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” (Jo 1,29).

O ícone não é apenas o retrato de um evento que aconteceu no passado, mas também um convite a nós hoje, como testemunha Orígenes: “Também tu (...) coloca todo teu esforço em deixar-se guiar pelo Espírito e em ir ao Templo de Deus. Se fores ao Templo movido pelo Espírito, encontrarás o Menino Jesus, o tomarás nos braços e pronunciarás tu também as palavras de Simeão” [6].

José e Ana: Por fim, no lado esquerdo do ícone, atrás da Virgem, encontramos a profetisa Ana e o justo José. Ana traz um rolo na mão, símbolo da profecia, enquanto José traz dois pombinhos a serem oferecidos em sacrifício (cf. Lv 5,7; 12,1-8).

Ambos, representados juntos, evocam a obediência à Lei, que não será revogada por Jesus, mas sim levada ao seu pleno cumprimento, sendo preenchida de sentido (cf. Mt 5,17). Além disso, anunciam com sua presença que a salvação é para todos: homens e mulheres, jovens e idosos, sábios e simples (Ana, com o pergaminho, evoca a sabedoria, enquanto José, o trabalhador, representa as pessoas simples).

Cristo Deus, que santificaste um seio virginal e abençoaste, como convinha, as mãos de Simeão, vieste e nos salvaste. Concede paz ao teu povo, (...) ó Amigo dos homens
Kontákion da festa [7]

[1] PASSARELLI, Gaetano. O ícone da Apresentação do Senhor. São Paulo: Ave Maria, 1996, p. 12. Coleção: Iconostásio, 8.
[2] Sobre a história desta festa confira:
ADAM, Adolf. O Ano Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica. São Paulo: Loyola, 2019, pp. 109-112.
DONADEO, Madre Maria. O Ano Litúrgico Bizantino. São Paulo: Ave Maria, 1998, pp. 52-56.
RIGHETTI, Mario. Historia de la Liturgia, v. I: Introducción general; El año litúrgico; El Breviario. Madrid: BAC, 1945, pp. 724-727.
[3] PASSARELLI, op. cit., p. 19.
[4] ibid., p. 23.
[5] ibid., p. 22.
[6] ibid., pp. 29-30.
[7] DONADEO, op. cit., p. 54. O texto, de São Romanos, o Melode, faz referência ainda às guerras e reza pelos governantes, trechos que aqui omitimos.

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