“Festejemos de maneira
esplendorosa, com lâmpadas brilhantes, o mistério deste dia” - São Cirilo
de Alexandria [1]
Na série sobre os ícones das festas litúrgicas já falamos das
três grandes solenidades do Tempo do Natal (Natividade do Senhor, Santa Mãe de Deus e Teofania). Hoje vamos refletir sobre uma festa que é celebrada como
“eco” deste tempo: a Apresentação do Senhor ou, como é conhecida na tradição
oriental, Hypapanté (Festa do
“Encontro”).
Origem e conteúdo da
festa
O primeiro testemunho sobre a festa remonta ao século IV: a
peregrina Etéria, em seu Itinerarium,
narra as celebrações que ocorriam 40 dias após a Epifania (14 de fevereiro) em
Jerusalém, com procissões solenes e a proclamação do Evangelho (Lc 2,22-39).
Durante os séculos seguintes a festa se estendeu a outras
igrejas, chegando a Roma durante o pontificado do Papa Sérgio I, transferida
para o dia 02 de fevereiro (40º dia após o Natal).
Ainda no século V foi introduzida a procissão acompanhada de
tochas, evidenciando as palavras do cântico de Simeão, que proclama Cristo “luz
das nações” (Lc 2,32). A partir da Gália as tochas foram substituídas por
velas, abençoadas antes da procissão.
Com o tempo, porém, a Igreja de Roma daria a esta procissão
festiva um caráter penitencial. A partir do século VIII também se muda o acento
da festa: de cristológica, como sempre foi conservada na tradição oriental,
passa a ser uma festa mariana, com o nome de “Purificação de Maria”. A data só
recuperaria seu caráter cristológico com a reforma litúrgica do Concílio
Vaticano II [2].
De fato, como afirmamos acima, no Oriente esta festa se
celebra com o nome de Hypapanté, “encontro”.
Trata-se do encontro de Deus com o seu povo, na pessoa do Filho que é levado ao
Templo por Maria e José para cumprir os preceitos da Lei (cf. Ex 13,1-2.11-16);
é o encontro do Antigo e do Novo Testamentos, simbolizados respectivamente pelo
velho Simeão e pela jovem Mãe com seu Filho nos braços.
Note-se que o acento está todo em Cristo que, embora não
possa falar e tenha de ser levado nos braços por Maria, é Aquele que traz a
salvação, como anuncia Simeão: “meus olhos viram a tua salvação” (Lc 2,31).
O ícone
O ambiente: Como
no ícone da Apresentação de Maria, o ambiente é o templo de Jerusalém. Porém, o
que na apresentação de Maria era profecia, agora é realidade: “graças ao
misericordioso coração do nosso Deus, o Sol nascente nos veio visitar” (Lc
1,78).
Assim, o altar sob o baldaquino, que domina o centro da
cena, não está mais vazio: sobre ele está um livro fechado, indicando que todas
as profecias do Antigo Testamento se cumpriram e agora, em Cristo, tem início o
Novo.
Atrás do baldaquino central costumam ser representados
outros dois edifícios, imagens do Antigo e do Novo Testamentos, de Israel e da
Igreja. Em algumas versões do ícone estes dois edifícios são unidos por um véu
estendido: “é o véu da misericórdia de
Deus (...) que une o Templo à Igreja como elementos integrais, ele e ela, do
único culto que tem lugar no altar santo” [3].
A Mãe e o Filho: Neste
ícone o Menino costuma ser representado nos braços estendidos de sua Mãe, que
está para entregá-lo a Simeão (ou, em outras versões, nos braços do próprio
ancião).
A Virgem está no centro da cena, logo abaixo da lâmpada que
pende sob o baldaquino do templo. Ela é, com efeito, a “lâmpada resplandecente para quem está nas trevas e que, ao dar-nos a
Luz imaterial, guia a todos para o conhecimento divino” [4].
Maria tem uma atitude orante, contemplativa, como que a
“guardar no coração todas estas coisas” (Lc 2,19.51). Um hino de São Romanos, o
Melode apresenta o “espanto” da Virgem diante do mistério do Deus feito homem
em seus braços: “Que te darei: meu leite
ou meus louvores?” [5].
A dupla natureza de Cristo é anunciada também nas vestes da
Mãe: o manto é vermelho, cor que evoca a humanidade (sangue) e o “martírio” da
Virgem, a espada de dor anunciada por Simeão (Lc 2,35). A túnica, porém, é
azul, recordando o céu que Maria trouxe no ventre e o grande mistério da
misericórdia de Deus.
O Menino, nos braços de Maria ou de Simeão, é representado
em pequenas proporções, quase desaparecendo na cena, sinal de sua fragilidade
(afinal, é um recém-nascido de 40 dias), indicando a verdade da Encarnação.
Costuma ser representado com um braço estendido: é o braço
estendido para a ovelha perdida, é o braço que faz a ponte entre o Antigo e o
Novo Testamentos. É o novo homem que vem para resgatar o velho homem, Adão, que
antes havia estendido as mãos para tomar o fruto proibido: agora será Deus a
estender livremente os braços na árvore da Cruz.
Em algumas interpretações, a mão estendida de Jesus remete à
visão de Isaías (Is 6,1-7), que após contemplar a epifania do Deus três vezes
Santo é purificado por um dos anjos, o qual estende para ele uma brasa acesa
que “queima” seus pecados. É o que Cristo realizará ao longo de toda a sua vida
e de maneira especial no mistério da Cruz.
Simeão: No canto
direito do ícone encontramos Simeão, geralmente sobre um estrado, como o
sacerdote no ícone da Apresentação de Maria. Em algumas versões segura o Menino
em seus braços, em outras o está recebendo de Maria: mas em ambas tem as mãos
encobertas pelo manto (como os anjos no ícone da Teofania) e o corpo encurvado,
atitudes de humilde adoração.
Sua atitude humilde, como a de João Batista no ícone da Teofania, indica que não é ele a receber o Menino, mas que de certa forma é o
Menino quem o acolhe. Como no caso do Batismo, no qual Jesus não desce às águas
para purificar-se, mas para santificá-las, o mesmo acontece aqui: Ele e sua Mãe
não necessitam de purificação, vêm ao Templo para santificá-lo com a sua
presença.
Ao acolher o Salvador, Simeão representa todos os justos do
Antigo Testamento. Isto é evidenciado pelo seu cântico: “Agora, Senhor, podes
deixar teu servo ir em paz” (Lc
2,29), que remete à promessa que o próprio Deus fez a Abraão: “Quanto a ti, em paz irás para teus pais, serás sepultado
numa velhice feliz” (Gn 15,15).
O encontro entre o Menino e o ancião se dá diante do altar,
evidenciado o porquê da Encarnação: o Filho veio ao mundo para oferecer-se
livremente em sacrifício por amor a nós. Ele é o “Cordeiro de Deus, que tira o
pecado do mundo” (Jo 1,29).
O ícone não é apenas o retrato de um evento que aconteceu no
passado, mas também um convite a nós hoje, como testemunha Orígenes: “Também tu (...) coloca todo teu esforço em deixar-se guiar pelo Espírito e em ir ao
Templo de Deus. Se fores ao Templo movido pelo Espírito, encontrarás o Menino
Jesus, o tomarás nos braços e pronunciarás tu também as palavras de Simeão”
[6].
José e Ana: Por
fim, no lado esquerdo do ícone, atrás da Virgem, encontramos a profetisa Ana e
o justo José. Ana traz um rolo na mão, símbolo da profecia, enquanto José traz
dois pombinhos a serem oferecidos em sacrifício (cf. Lv 5,7; 12,1-8).
Ambos, representados juntos, evocam a obediência à Lei, que
não será revogada por Jesus, mas sim levada ao seu pleno cumprimento, sendo
preenchida de sentido (cf. Mt 5,17). Além disso, anunciam com sua presença que
a salvação é para todos: homens e mulheres, jovens e idosos, sábios e simples
(Ana, com o pergaminho, evoca a sabedoria, enquanto José, o trabalhador, representa
as pessoas simples).
“Cristo Deus, que santificaste um seio virginal e abençoaste, como
convinha, as mãos de Simeão, vieste e nos salvaste. Concede paz ao teu povo,
(...) ó Amigo dos homens”
Kontákion da festa [7]
[1] PASSARELLI, Gaetano. O
ícone da Apresentação do Senhor. São Paulo: Ave Maria, 1996, p. 12.
Coleção: Iconostásio, 8.
[2] Sobre a história desta festa confira:
ADAM, Adolf. O Ano
Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica. São
Paulo: Loyola, 2019, pp. 109-112.
DONADEO, Madre Maria. O
Ano Litúrgico Bizantino. São Paulo: Ave Maria, 1998, pp. 52-56.
RIGHETTI, Mario. Historia
de la Liturgia, v. I: Introducción general; El año litúrgico; El Breviario.
Madrid: BAC, 1945, pp. 724-727.
[3] PASSARELLI, op.
cit., p. 19.
[4] ibid., p. 23.
[5] ibid., p. 22.
[6] ibid., pp.
29-30.
[7] DONADEO, op. cit.,
p. 54. O texto, de São Romanos, o Melode, faz referência ainda às guerras e
reza pelos governantes, trechos que aqui omitimos.
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