Enquanto o Rito Romano celebra no domingo após o Pentecostes
a Solenidade da Santíssima Trindade, no Rito Bizantino este dia é o “Domingo de
Todos os Santos” (Ὁι άγιοι Πάντες), pois o Espírito Santo é a fonte de toda a
santidade.
Tal celebração tem suas raízes em uma festa de todos os
mártires, celebrada no século IV em Antioquia, como atesta uma homilia de São
João Crisóstomo. A festa ganhou destaque no Oriente no século IX, sob o
patrocínio do Imperador de Constantinopla, Leão VI, o Sábio (866-912).
Após a morte de sua primeira esposa, Teófano, em 886, o
Imperador quis homenageá-la com uma igreja em honra de seu santo onomástico.
Porém, não havia nenhum santo canonizado com esse nome. A solução encontrada
foi construir uma igreja em honra de “todos os santos”, cuja festa passou a celebrar-se
justamente no domingo após o Pentecostes, então festa de todos os mártires.
Os textos da Divina Liturgia da festa, com efeito, fazem
referência sobretudo aos mártires, como podemos ver pelo tropário:
“Ó Cristo Deus, tua Igreja, revestida do
sangue de teus Mártires do mundo inteiro, como de linho e de púrpura, aclama
por seu intermédio: Tem piedade do teu povo, dá a paz ao teu rebanho e às
nossas almas, a grande misericórdia!” [1].
No século IX desenvolve-se também um ícone para a festa, cujos
elementos passaremos a comentar:
a) Os Patriarcas
No canto inferior esquerdo do ícone encontramos o Patriarca
Abraão, sentado em um trono com uma criança ao colo, e às vezes com uma
multidão de crianças atrás de si. As crianças simbolizam aqui as almas dos
justos, que encontram descanso no “seio de Abraão” (Lc 16,19-31).
No canto inferior direito temos o Patriarca Jacó, também
sentado em um trono, segurando as “doze tribos de Israel” em um pano, isto é,
todos os santos do Antigo Testamento.
Em volta dos Patriarcas são retratadas várias árvores e
arbustos, situando-nos no paraíso.
b) O ladrão arrependido
No centro da parte inferior do ícone é representado o
“ladrão arrependido” do Evangelho de
Lucas, carregando sua cruz. Sua “bula de canonização” foi proferida pelo
próprio Jesus: “Hoje mesmo estarás comigo no paraíso” (Lc 23,43).
No relato apócrifo da Descida
de Cristo ao Hades, parte do Evangelho
de Nicodemos, se narra como a multidão dos justos do Antigo Testamento,
libertada por Cristo, encontra a caminho do céu o “ladrão penitente” carregando
sua cruz [2].
c) A “nuvem de
testemunhas”
O centro do ícone é tomado por um círculo, formado pela
“grande nuvem de testemunhas” (Hb 12,1) dos santos de todos os tempos.
O círculo, na tradição cristã, é um símbolo da eternidade.
Assim, quer indicar não apenas que os santos habitam a “Jerusalém celeste”, mas
também que o seu número é sempre aberto, como indica o Apocalipse: “uma multidão enorme, que ninguém podia contar, de
todas as nações, tribos, povos e línguas” (Ap 7,9).
Com efeito, na Solenidade de Todos os Santos - celebrada no Rito Romano no dia 01 de novembro - não recordamos apenas aqueles que foram reconhecidos como tais pela Igreja, mas também aqueles
que “só Deus conhece o nome”, como testemunha o Papa Bento XVI:
“Os santos não são uma exígua casta de eleitos, mas uma multidão
inumerável, para a qual a Liturgia nos exorta a levantar o olhar. Em tal
multidão não estão somente os santos oficialmente reconhecidos, mas os batizados
de todas as épocas e nações, que procuraram cumprir com amor e fidelidade a
vontade divina. De uma grande parte deles não conhecemos os rostos e nem sequer
os nomes, mas com os olhos da fé vemo-los resplandecer, como astros repletos de
glória, no firmamento de Deus” (Homilia
na Solenidade de Todos os Santos, 01 de novembro de 2006).
No nosso ícone os santos são agrupados em “coros”.
Primeiramente, ladeando Cristo no centro do círculo, encontramos a Virgem
Maria, “cheia de graça” (Lc 1,28), e João Batista, “maior dentre os
nascidos de mulher” (Mt 11,11).
Geralmente atrás da Virgem Maria encontramos o coro dos
Apóstolos e atrás de João o coro dos Profetas do Antigo Testamento. Abaixo dos
Apóstolos geralmente estão os Bispos e abaixo dos Profetas os Monges e Ascetas.
Por fim, completam o ícone os demais Santos, homens e mulheres.
Alguns dos santos são reconhecíveis (como Pedro e Paulo, que
às vezes são retratados sustentando a Igreja), mas o objetivo do ícone é
representar uma multidão incontável, como vimos acima.
Embora na Divina Liturgia se enfatizem os Mártires, outros
textos da tradição bizantina celebram todos os coros dos santos:
“Vinde, fiéis, exultemos de alegria, celebremos piedosamente neste dia a
solenidade de todos os santos e veneremos a sua gloriosa memória dizendo:
Salve, apóstolos, profetas e mártires, pontífices, justos, bem-aventurados e
santas mulheres; orai ao Cristo pelo mundo inteiro para que lhe conceda a paz e
às nossas almas a salvação” [3].
d) O trono da
preparação
Abaixo de Cristo encontra-se o “trono da preparação”, “etimasía” (ἑτοιμασία). Trata-se de um trono vazio, ornado por um manto
(símbolo da autoridade), que está à espera de Cristo, que em sua última vinda
se sentará nele “para julgar os vivos e os mortos”.
Em algumas versões do ícone sobre o trono repousa um livro,
indicando que o critério do julgamento será nossa fidelidade à Palavra de Deus.
Junto ao trono estão prostrados Adão e Eva, nossos primeiros
pais, indicando que o julgamento de Cristo atingirá toda a humanidade.
e) A cruz
Em algumas versões do ícone abaixo do trono encontra-se a
cruz, sustentada por Santa Helena e seu filho, o Imperador Constantino. Em outras
versões, porém, a cruz é sustentada por anjos no alto do ícone.
De toda forma, a cruz, síntese do Mistério Pascal, recorda
que é pelo sacrifício de Cristo que fomos santificados, como canta o célebre
tropário da Páscoa: “Cristo ressuscitou
dos mortos; venceu a morte pela morte; e aos que estavam no túmulo, Cristo deu
a vida” [4].
f) Cristo
O centro do ícone é dominado pela figura de Cristo.
Geralmente este aparece com vestes douradas, símbolo da sua realeza. Mais
raramente veste a túnica vermelha sob o manto azul, recordando sua dupla
natureza, humana e divina.
Além das vestes douradas (e mesmo da coroa, em algumas versões),
símbolos do seu múnus régio, Cristo aparece com a estola sobre o ombro,
indicando o seu múnus sacerdotal, e com o livro na mão esquerda, recordando o
múnus profético.
O livro pode estar fechado ou aberto. Se aberto, pode trazer
a citação de Mt 25,34: “Vinde benditos de meu Pai...”.
Outros atributos comuns são o arco-íris, indicando a “ponte”
entre o céu e a terra traçada por Cristo, único mediador entre nós e o Pai (1Tm
2,5) e a aliança feita por Deus com a humanidade (Gn 9); e os círculos de fogo sob seus pés, em alusão à visão do profeta Ezequiel da majestade
divina (Ez 1).
Em volta de Cristo há uma mandorla (halo em forma de “amêndoa”) de luz que se estende em
direção aos coros dos santos. Ela expressa a “comunhão dos santos”, entre si e
com Deus, pois todos são iluminados pela mesma luz divina.
Além disso, a mandorla indica também a ação do Espírito Santo: os Padres da Igreja afirmam
que os santos no céu só podem ouvir nossas orações por meio da graça do
Espírito que os ilumina.
g) Os quatro seres
viventes
Em volta de Cristo, embora raros na arte bizantina, costumam
ser representados nesse ícone os quatro seres viventes, descritos tanto na
visão de Ezequiel (Ez 1) quanto no Apocalipse
(Ap 4).
Os quatro seres viventes - o homem, o leão, o touro e a
águia - costumam ser associados aos quatro evangelistas - respectivamente Mateus, Marcos, Lucas
e João. Por isso seguram o livro e possuem asas, indicando a difusão do
Evangelho pelos quatro cantos da terra.
h) Os anjos
Também em volta de Cristo são representados os espíritos
celestiais, isto é, os anjos, também em diversos coros: anjos, arcanjos, querubins,
serafins... Esses dois últimos, com suas múltiplas asas, geralmente estão mais
próximos de Cristo.
Os demais, dentre os quais às vezes é possível identificar
os Arcanjos Miguel e Gabriel (e, mais raramente, também Rafael), ora sustentam
a cruz no topo do ícone, como afirmamos anteriormente, ora simplesmente povoam
a esfera celeste, entoando seu eterno cântico de louvor.
i) Davi e Salomão
Por fim, nos dois cantos superiores do ícone encontramos os
reis Davi e Salomão. Davi, no canto direito, considerado o “patrono” dos
Salmos, segura um pergaminho com uma citação desse livro. Por exemplo: “Ó
justos, alegrai-vos no Senhor” (Sl 32,1)
Salomão, por sua vez, tido como o “rei sábio”, traz no seu
pergaminho uma citação dos livros sapienciais, como, por exemplo, “os justos
vivem para sempre” (Sb 5,15).
“Cantando a multidão dos teus santos, Senhor, pelas suas súplicas,
peço-te que ilumines com a tua luz o meu espírito, pois tu és a inacessível luz
que com o seu fulgor afasta as trevas do erro, ó Verbo de Deus, doador de luz”
[5].
Notas:
[1] SPERANDIO, João Manoel; TAMANINI, Paulo Augusto (orgs.).
Liturgikon: Próprio das Festas no Rito
Bizantino. Teresina: Editora da Universidade Federal do Piauí, 2015, p. 172.
[2] Descida de Cristo
ao Inferno: versão grega, cap. 10. in: PROENÇA, Eduardo de (Org.) Apócrifos e pseudo-epígrafos da Bíblia,
v. I. São Paulo: Fonte Editorial, 2005, p. 568.
[3] DONADEO, Madre Maria. O Ano Litúrgico Bizantino. São Paulo: Ave Maria, 1998, p. 114.
[4] SPERANDIO; TAMANINI, op.
cit., p. 132.
[5] DONADEO, op. cit.,
p. 114.
Fontes:
Reader's Guide to Orthodox Icons: All Saints Icon: The
Great Cloud of Witnesses
DONADEO, Madre Maria. O
Ano Litúrgico Bizantino. São Paulo: Ave Maria, 1998, pp. 111-114.
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