domingo, 30 de maio de 2021

O ícone de Todos os Santos

Enquanto o Rito Romano celebra no domingo após o Pentecostes a Solenidade da Santíssima Trindade, no Rito Bizantino este dia é o “Domingo de Todos os Santos” (Ὁι άγιοι Πάντες), pois o Espírito Santo é a fonte de toda a santidade.

Tal celebração tem suas raízes em uma festa de todos os mártires, celebrada no século IV em Antioquia, como atesta uma homilia de São João Crisóstomo. A festa ganhou destaque no Oriente no século IX, sob o patrocínio do Imperador de Constantinopla, Leão VI, o Sábio (866-912).

Após a morte de sua primeira esposa, Teófano, em 886, o Imperador quis homenageá-la com uma igreja em honra de seu santo onomástico. Porém, não havia nenhum santo canonizado com esse nome. A solução encontrada foi construir uma igreja em honra de “todos os santos”, cuja festa passou a celebrar-se justamente no domingo após o Pentecostes, então festa de todos os mártires.

Os textos da Divina Liturgia da festa, com efeito, fazem referência sobretudo aos mártires, como podemos ver pelo tropário:

Ó Cristo Deus, tua Igreja, revestida do sangue de teus Mártires do mundo inteiro, como de linho e de púrpura, aclama por seu intermédio: Tem piedade do teu povo, dá a paz ao teu rebanho e às nossas almas, a grande misericórdia!” [1].

No século IX desenvolve-se também um ícone para a festa, cujos elementos passaremos a comentar:


a) Os Patriarcas

No canto inferior esquerdo do ícone encontramos o Patriarca Abraão, sentado em um trono com uma criança ao colo, e às vezes com uma multidão de crianças atrás de si. As crianças simbolizam aqui as almas dos justos, que encontram descanso no “seio de Abraão” (Lc 16,19-31).

No canto inferior direito temos o Patriarca Jacó, também sentado em um trono, segurando as “doze tribos de Israel” em um pano, isto é, todos os santos do Antigo Testamento.

Em volta dos Patriarcas são retratadas várias árvores e arbustos, situando-nos no paraíso.

b) O ladrão arrependido

No centro da parte inferior do ícone é representado o “ladrão arrependido” do Evangelho de Lucas, carregando sua cruz. Sua “bula de canonização” foi proferida pelo próprio Jesus: “Hoje mesmo estarás comigo no paraíso” (Lc 23,43).

No relato apócrifo da Descida de Cristo ao Hades, parte do Evangelho de Nicodemos, se narra como a multidão dos justos do Antigo Testamento, libertada por Cristo, encontra a caminho do céu o “ladrão penitente” carregando sua cruz [2].

c) A “nuvem de testemunhas”

O centro do ícone é tomado por um círculo, formado pela “grande nuvem de testemunhas” (Hb 12,1) dos santos de todos os tempos.

O círculo, na tradição cristã, é um símbolo da eternidade. Assim, quer indicar não apenas que os santos habitam a “Jerusalém celeste”, mas também que o seu número é sempre aberto, como indica o Apocalipse: “uma multidão enorme, que ninguém podia contar, de todas as nações, tribos, povos e línguas” (Ap 7,9).

Com efeito, na Solenidade de Todos os Santos - celebrada no Rito Romano no dia 01 de novembro - não recordamos apenas aqueles que foram reconhecidos como tais pela Igreja, mas também aqueles que “só Deus conhece o nome”, como testemunha o Papa Bento XVI:

“Os santos não são uma exígua casta de eleitos, mas uma multidão inumerável, para a qual a Liturgia nos exorta a levantar o olhar. Em tal multidão não estão somente os santos oficialmente reconhecidos, mas os batizados de todas as épocas e nações, que procuraram cumprir com amor e fidelidade a vontade divina. De uma grande parte deles não conhecemos os rostos e nem sequer os nomes, mas com os olhos da fé vemo-los resplandecer, como astros repletos de glória, no firmamento de Deus” (Homilia na Solenidade de Todos os Santos, 01 de novembro de 2006).

No nosso ícone os santos são agrupados em “coros”. Primeiramente, ladeando Cristo no centro do círculo, encontramos a Virgem Maria, “cheia de graça” (Lc 1,28), e João Batista, “maior dentre os nascidos de mulher” (Mt 11,11).

Geralmente atrás da Virgem Maria encontramos o coro dos Apóstolos e atrás de João o coro dos Profetas do Antigo Testamento. Abaixo dos Apóstolos geralmente estão os Bispos e abaixo dos Profetas os Monges e Ascetas. Por fim, completam o ícone os demais Santos, homens e mulheres.

Alguns dos santos são reconhecíveis (como Pedro e Paulo, que às vezes são retratados sustentando a Igreja), mas o objetivo do ícone é representar uma multidão incontável, como vimos acima.

Embora na Divina Liturgia se enfatizem os Mártires, outros textos da tradição bizantina celebram todos os coros dos santos:

Vinde, fiéis, exultemos de alegria, celebremos piedosamente neste dia a solenidade de todos os santos e veneremos a sua gloriosa memória dizendo: Salve, apóstolos, profetas e mártires, pontífices, justos, bem-aventurados e santas mulheres; orai ao Cristo pelo mundo inteiro para que lhe conceda a paz e às nossas almas a salvação” [3].


d) O trono da preparação

Abaixo de Cristo encontra-se o “trono da preparação”, “etimasía” (ἑτοιμασία). Trata-se de um trono vazio, ornado por um manto (símbolo da autoridade), que está à espera de Cristo, que em sua última vinda se sentará nele “para julgar os vivos e os mortos”.

Em algumas versões do ícone sobre o trono repousa um livro, indicando que o critério do julgamento será nossa fidelidade à Palavra de Deus.

Junto ao trono estão prostrados Adão e Eva, nossos primeiros pais, indicando que o julgamento de Cristo atingirá toda a humanidade.

e) A cruz

Em algumas versões do ícone abaixo do trono encontra-se a cruz, sustentada por Santa Helena e seu filho, o Imperador Constantino. Em outras versões, porém, a cruz é sustentada por anjos no alto do ícone.

De toda forma, a cruz, síntese do Mistério Pascal, recorda que é pelo sacrifício de Cristo que fomos santificados, como canta o célebre tropário da Páscoa: “Cristo ressuscitou dos mortos; venceu a morte pela morte; e aos que estavam no túmulo, Cristo deu a vida” [4].

f) Cristo

O centro do ícone é dominado pela figura de Cristo. Geralmente este aparece com vestes douradas, símbolo da sua realeza. Mais raramente veste a túnica vermelha sob o manto azul, recordando sua dupla natureza, humana e divina.

Além das vestes douradas (e mesmo da coroa, em algumas versões), símbolos do seu múnus régio, Cristo aparece com a estola sobre o ombro, indicando o seu múnus sacerdotal, e com o livro na mão esquerda, recordando o múnus profético.

O livro pode estar fechado ou aberto. Se aberto, pode trazer a citação de Mt 25,34: “Vinde benditos de meu Pai...”.

Outros atributos comuns são o arco-íris, indicando a “ponte” entre o céu e a terra traçada por Cristo, único mediador entre nós e o Pai (1Tm 2,5) e a aliança feita por Deus com a humanidade (Gn 9); e os círculos de fogo sob seus pés, em alusão à visão do profeta Ezequiel da majestade divina (Ez 1).

Em volta de Cristo há uma mandorla (halo em forma de “amêndoa”) de luz que se estende em direção aos coros dos santos. Ela expressa a “comunhão dos santos”, entre si e com Deus, pois todos são iluminados pela mesma luz divina.

Além disso, a mandorla indica também a ação do Espírito Santo: os Padres da Igreja afirmam que os santos no céu só podem ouvir nossas orações por meio da graça do Espírito que os ilumina.

g) Os quatro seres viventes

Em volta de Cristo, embora raros na arte bizantina, costumam ser representados nesse ícone os quatro seres viventes, descritos tanto na visão de Ezequiel (Ez 1) quanto no Apocalipse (Ap 4).

Os quatro seres viventes - o homem, o leão, o touro e a águia - costumam ser associados aos quatro evangelistas - respectivamente Mateus, Marcos, Lucas e João. Por isso seguram o livro e possuem asas, indicando a difusão do Evangelho pelos quatro cantos da terra.


h) Os anjos

Também em volta de Cristo são representados os espíritos celestiais, isto é, os anjos, também em diversos coros: anjos, arcanjos, querubins, serafins... Esses dois últimos, com suas múltiplas asas, geralmente estão mais próximos de Cristo.

Os demais, dentre os quais às vezes é possível identificar os Arcanjos Miguel e Gabriel (e, mais raramente, também Rafael), ora sustentam a cruz no topo do ícone, como afirmamos anteriormente, ora simplesmente povoam a esfera celeste, entoando seu eterno cântico de louvor.

i) Davi e Salomão

Por fim, nos dois cantos superiores do ícone encontramos os reis Davi e Salomão. Davi, no canto direito, considerado o “patrono” dos Salmos, segura um pergaminho com uma citação desse livro. Por exemplo: “Ó justos, alegrai-vos no Senhor” (Sl 32,1)

Salomão, por sua vez, tido como o “rei sábio”, traz no seu pergaminho uma citação dos livros sapienciais, como, por exemplo, “os justos vivem para sempre” (Sb 5,15).

Cantando a multidão dos teus santos, Senhor, pelas suas súplicas, peço-te que ilumines com a tua luz o meu espírito, pois tu és a inacessível luz que com o seu fulgor afasta as trevas do erro, ó Verbo de Deus, doador de luz” [5].

Notas:
[1] SPERANDIO, João Manoel; TAMANINI, Paulo Augusto (orgs.). Liturgikon: Próprio das Festas no Rito Bizantino. Teresina: Editora da Universidade Federal do Piauí, 2015, p. 172.
[2] Descida de Cristo ao Inferno: versão grega, cap. 10. in: PROENÇA, Eduardo de (Org.) Apócrifos e pseudo-epígrafos da Bíblia, v. I. São Paulo: Fonte Editorial, 2005, p. 568.
[3] DONADEO, Madre Maria. O Ano Litúrgico Bizantino. São Paulo: Ave Maria, 1998, p. 114.
[4] SPERANDIO; TAMANINI, op. cit., p. 132.
[5] DONADEO, op. cit., p. 114.

Fontes:

Reader's Guide to Orthodox Icons: All Saints Icon: The Great Cloud of Witnesses

DONADEO, Madre Maria. O Ano Litúrgico Bizantino. São Paulo: Ave Maria, 1998, pp. 111-114.

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