“Estendidas tens na
cruz tuas mãos imaculadas, para unir todos os povos, que clamam: Glória a ti,
Senhor!” [1]
No ponto mais alto da iconostase de uma igreja bizantina costumamos encontrar o ícone da Crucificação do Senhor (ou ao menos uma cruz
ladeada pelas figuras de Maria e João). É sobre ele que meditaremos hoje em
nossa série de postagens sobre os ícones das festas litúrgicas.
Origem e conteúdo da
festa:
Estamos ainda no 1º dia do Tríduo Pascal, o dia do
Senhor Crucificado, que vai do pôr-do-sol da Quinta-feira (com a memória da
Ceia mística) até o pôr-do-sol da Sexta. Durante este dia, as Igrejas do
Oriente e do Ocidente meditam sobre os vários eventos da Paixão do Senhor
(condenação, crucificação, morte, sepultamento...).
Desde o século II o Domingo de Páscoa da Ressurreição do
Senhor era precedido por dois dias de jejum, na Sexta e no Sábado. Porém, será
a partir do século IV, como testemunha o célebre Itinerarium da peregrina Etéria, que as celebrações que aconteciam
em honra da cruz em Jerusalém difundiram-se por todo o mundo.
Em todas as tradições a Sexta é considerada dia alitúrgico,
isto é, sem a celebração da Eucaristia. As celebrações resumem-se à recitação
dos salmos, à Liturgia da Palavra e à adoração da cruz (na tradição bizantina
substituída pela veneração do Epitaphion,
o ícone do sepultamento do Senhor, já em vista do Sábado) [2].
Embora não tenha um uso litúrgico tão significativo, o ícone
da Crucificação resume o mistério deste dia. Nas palavras de São João
Crisóstomo: “Contemplo-o crucificado e o
chamo de Rei” [3]. A tradição oriental enfatiza sempre o aspecto glorioso,
vivificante da cruz.
Por esta razão, o ícone da Crucificação omite a inscrição “O rei dos judeus” (Mt 27,37 e paralelos),
substituindo-a por “O rei da glória”.
A celebração da Paixão já prefigura a Ressurreição: na cruz, a salvação é
comunicada a todos os homens.
Por isso, os fiéis querem neste dia suplicar ao Senhor como
o ladrão arrependido: “Lembra-te de mim, Senhor, quando vieres no teu Reino”
(Lc 23,42), frase repetida diversas vezes nos ofícios litúrgicos do rito
bizantino.
Uma das orações que se intercalam aos doze trechos dos
Evangelhos da Paixão lidos nas Matinas deste dia parece sintetizar a celebração
através de vários paralelos, os quais remetem aos célebres Impropérios
(Lamentos do Senhor) da Liturgia romana:
“Hoje foi suspenso no
madeiro Aquele que suspendeu a terra sobre as águas.
Com uma coroa de
espinhos foi coroado o Rei dos Anjos.
Foi envolvido numa
púrpura mendaz Aquele que envolve o céu com as nuvens.
Foi esbofeteado Aquele
que salvou Adão no Jordão,
Foi perfurado por
cravos o Esposo da Igreja.
Foi transpassado pela
lança o Filho da Virgem.
Adoramos a tua Paixão,
ó Cristo; mostra-nos também a tua Ressurreição” [4].
Para acessar nossa postagem sobre a história da Celebração da Paixão do Senhor, clique aqui.
O ícone
O ambiente: O
ícone nos situa no Monte Gólgota ou Calvário (Mt 27,33 e
paralelos): “a cruz está plantada na
terra para unir as coisas que se acham na terra e nos infernos com as coisas
celestes” [5].
Em nossa série de postagens já refletimos diversas vezes
sobre o simbolismo da montanha como o lugar do encontro com Deus. Aqui ela
recorda o monte do sacrifício de Isaac, como registra um poema de Romanos, o
Melodes, imaginando uma visão de Abraão na qual o Pai lhe fala:
“Como teu Isaac levou
a lenha nas costas, assim meu Filho carregou a cruz nas costas. Teu grande amor
te permitiu entrever o futuro. Contempla o cordeiro preso entre os espinheiros
e assim começarás a entender o mistério. Está preso pelos chifres, que são
símbolo das mãos do meu Filho” [6]
Ao fundo vemos as muralhas de Jerusalém, que no ícone da ressurreição de Lázaro eram profecia, mas agora são realidade: o Cordeiro é
imolado fora dos muros da cidade (cf. Hb 13,12). Assim, a cruz simboliza aqui o
altar da nova e eterna aliança, instaurada no sacrifício realizado uma vez por
todas pelo Filho.
“Cristo Deus oferece
seu sacrifício que não pode e não deve ficar limitado por muros de nenhuma
espécie” [7]. Ao contemplar este ícone, atualiza-se para nós hoje o convite
da Carta aos Hebreus: “Saiamos, portanto, ao seu encontro... porque não temos
aqui cidade permanente” (Hb 13,13-15). Aqui se realiza o que Jesus havia dito à
samaritana: começa o culto “em espírito e verdade” (Jo 4,23-24).
Por fim, encontramos sob o monte uma gruta, retratada com
forte cor escura, como no ícone da Natividade: é a imagem da morada dos mortos,
o Hades, também ela destinatária da salvação oferecida por Cristo.
Dentro desta caverna encontramos um crânio e alguns ossos.
Mais do que dar nome ao monte (Gólgota é o termo aramaico para “lugar da
caveira”), esses ossos, embora possam parecer estranhos à sensibilidade
moderna, possuem aqui um profundo significado teológico: são os ossos de Adão!
Segundo uma antiga tradição, o Gólgota situa-se exatamente
sobre o túmulo de Adão. No momento da morte de Cristo, um terremoto sacudiu o
monte e abriu uma fenda (Mt 27,51), fazendo com que o sangue do Redentor,
escorrendo da cruz, molhasse os ossos de nosso primeiro pai.
Evidentemente que se trata apenas de uma tradição, mas que
simboliza aqui a universalidade da salvação oferecida por Cristo na cruz: toda
a humanidade, representada pelos ossos de Adão, mesmo os mortos (como veremos
no ícone da Ressurreição), é destinatária da misericórdia de Deus.
Cristo: Em Cristo
crucificado vemos o cumprimento das profecias e imagens do Antigo Testamento: a
serpente levantada no deserto (Nm 21,5-8; Jo 3,14-15), o estandarte sob o qual
se reunirão todas as nações (Is 5,26; Jo 12,32), entre outros.
Mas o grande paralelo do ícone, tão querido para Paulo, é
entre Cristo e Adão (cf. Rm 5, 12-21).
Se o primeiro Adão pecou ao estender a mão para tomar o fruto da árvore, Cristo
nos redime ao estender livremente as mãos na cruz para tudo doar. “Como em Adão
todos morrem, em Cristo todos reviverão (1Cor 15,22)
Ele é aqui a árvore da vida, a “videira verdadeira” (Jo
15,1-6) que estende seus ramos (seus braços) até os confins da terra, para
“salvar o que estava perdido” (Lc 19,10).
No ícone, Jesus geralmente aparece já morto, com a cabeça inclinada
para o lado. Veste apenas um “perizoma”,
isto é, um pano branco, o mesmo do ícone da Teofania. Sua nudez, além de remeter à nudez dos primeiros pais, evoca aqui seu
despojamento total (Fl 2,6-11), o qual parece “escândalo para os judeus e loucura
para os pagãos”, mas que na verdade é “poder e sabedoria de Deus” (1Cor
1,23-24).
Os anjos:
Ladeando, no alto da cruz, a inscrição “O rei da glória”, encontramos dois
anjos. São os mesmos que no ícone da Natividade anunciavam alegres o nascimento
do Senhor, mas que aqui choram ou cobrem o rosto de tristeza por sua morte.
Em algumas versões do ícone encontramos ainda outros dois
anjos: um, à direita, afasta uma mulher, enquanto o outro, à esquerda, aproxima uma mulher do lado de Cristo, do qual recolhe em um cálice “o sangue e
a água” (Jo 19,34). Em outras versões há apenas este último, a recolher o
sangue e a água, enquanto os outros dois recolhem o sangue que brota das mãos
de Cristo.
A primeira mulher, expulsa pelo anjo, simboliza a “Sinagoga”, isto é, aqueles que não acolheram a mensagem do Salvador. Em contrapartida, a
mulher que se aproxima de Cristo é a “Igreja”, o novo Povo de Deus, que acolheu
sua mensagem e que nasce do lado aberto do seu Esposo e Senhor, renovando-se “no sangue e na água”, isto é, no Batismo e na
Eucaristia, sacramentos da nova e eterna aliança.
Maria e João: Por
fim, ladeiam Cristo os personagens que os relatos bíblicos colocam “aos pés da
cruz”, divididos em dois grupos: de um lado Maria e as santas mulheres, do
outro João e o centurião (Jo 19,25-27 e paralelos).
À esquerda estão as mulheres (Maria Madalena, Maria de Cléofas
e Salomé), que permaneceram firmes junto à cruz, enquanto os Apóstolos fugiram. São
as mirróforas (portadoras de perfumes), as primeiras a ouvir o anúncio do anjo
na manhã da Ressurreição.
À direita encontramos o Apóstolo João e o centurião, os dois
homens que acreditaram no Deus crucificado (Mt 527,54 e paralelos; Jo 19,35). Eles
representam aqui, mais uma vez, a universalidade da salvação: todos são
chamados, do antigo Israel (representado por João) e do novo Israel, a Igreja
(representada pela figura de um pagão, o centurião romano), como no ícone da Natividade com os pastores e os magos.
Em algumas versões deste ícone encontramos também José de
Arimateia e Nicodemos, os dois homens piedosos que se encarregaram do
sepultamento do Senhor (Mt 27,57-60 e paralelos). Sua presença prefigura o
Sábado Santo, o 2º dia do Tríduo Pascal (do pôr-do-sol da Sexta ao
pôr-do-sol do Sábado), o dia do grande silêncio, durante o qual a
Igreja espera junto ao sepulcro pela Ressurreição do Divino Esposo.
Na boca de José de Arimateia a tradição coloca neste momento
o célebre Triságion, o hino do Deus “três vezes Santo”: “Santo Deus, Santo Forte, Santo Imortal, tende piedade de nós!”.
“Vinde todos celebrar quem por nós foi crucificado! Ao vê-lo no madeiro
Maria dizia: Embora carregues a cruz, tu és o meu Filho e o meu Deus”
Kontákion do dia [8]
Notas:
[1] PASSARELLI, Gaetano. O
ícone da Crucifixão. São Paulo: Ave Maria, 1996, p. 27. Coleção: Iconostásio, 09.
[2] Sobre a história desta celebração confira:
ADAM, Adolf. O Ano Litúrgico:
Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica. São Paulo:
Loyola, 2019, pp. 48-53.
DONADEO, Madre Maria. O
Ano Litúrgico Bizantino. São Paulo: Ave Maria, 1998, pp. 97-99.
RIGHETTI, Mario. Historia
de la Liturgia, v. I: Introducción general; El año litúrgico; El Breviario.
Madrid: BAC, 1945, pp. 803-812.
[3] PASSARELLI, op.
cit., p. 11.
[4] DONADEO, op. cit.,
p. 97.
[5] PASSARELLI, op.
cit., p. 18.
[6] ibid., p. 23.
[7] ibid., p. 22.
[8] DONADEO, op. cit.,
p. 98.
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