“Ouve, Israel, o
Senhor nosso Deus é o único Senhor” (Dt 6,4)
Em nossa série de postagens sobre leitura litúrgica, já
analisamos livros de três blocos da Sagrada Escritura: proféticos (Joel e
Miqueias), sapienciais (Sabedoria e Provérbios) e epístolas (Cartas de João e Cartas de Paulo aos Tessalonicenses). Em sintonia com o tema do “Mês da Bíblia”
proposto pela Igreja no Brasil para este ano de 2020, contemplaremos agora um
escrito do Pentateuco: o Livro do Deuteronômio (Dt).
1. Breve introdução
ao Livro do Deuteronômio
O Livro do Deuteronômio (grego para “segunda lei”) é o
último dos cinco escritos que formam o Pentateuco ou Torá (hebraico para “Lei”), fazendo a transição entre a caminhada
do povo de Israel pelo deserto e a entrada na terra de Canaã.
Os primeiros versículos do livro nos situam no quadragésimo
ano desta peregrinação e indicam conter as últimas instruções de Moisés ao povo
antes de sua morte, sobre o monte Nebo (na atual Jordânia).
O livro, com efeito, estrutura-se em quatro discursos de
Moisés, introduzidos pelas expressões “estas são” (‘elleh) ou “esta é” (wezo’t):
- “Estas são as palavras de Moisés” (1,1–4,43): O primeiro
discurso é mais narrativo, marcado pela recordação da caminhada no deserto. Dessa expressão vem o nome do livro em hebraico: Debarim, "as palavras";
- “Esta é a Lei” (4,44–28,68): Este discurso, o mais longo,
constitui o núcleo do livro. Depois de recordar o Decálogo (Dt 5,1-22), seguem-se
leis sobre diversos assuntos, concluindo-se com uma série de maldições e
bênçãos;
- “Estas são as palavras da aliança” (28,69–32,52): O
terceiro discurso, conjugando narrativas e prescrições legais, centra-se sobre
no tema da aliança, e encerra com um cântico de Moisés;
- “Esta é a bênção” (33–34): O capítulo 33 contém bênçãos às
doze tribos de Israel e o capítulo 34 traz a narração da morte de Moisés.
A evolução histórica do Dt
é bastante complexa. A parte mais antiga seria o Código Deuteronômico
propriamente dito (cap. 12–25). Parte de suas leis seria do Reino do Norte
(Israel), levadas ao Reino do Sul (Judá) na iminência da invasão assíria e
sistematizadas no tempo de Ezequias (séc. VIII a. C.).
O material original teria sido ampliado na reforma do rei
Josias (séc. VII; ver 2Rs 22), incluindo-se os cap. 6–10 e 26, centrados no
tema da aliança. Posteriormente, sucessivas “molduras” foram acrescidas: por
exemplo, os textos narrativos e poéticos elaborados durante e após o exílio da
Babilônia (séc. VI).
Como vimos, o livro é formado por diversos gêneros
literários, sobressaindo os textos legais (leis), além de narrativas, parêneses
(exortações morais), poesias (hinos), bênçãos e maldições.
Para saber mais, confira a bibliografia indicada no final da
postagem [1].
2. Leitura litúrgica
de Dt: Composição harmônica
Como temos feito nas postagens desta série, analisaremos a
leitura litúrgica do Dt a partir dos
critérios propostos no n. 66 do Elenco
das Leituras da Missa: a composição harmônica e a leitura semicontínua [2].
Começamos pela composição harmônica, isto é, pelos textos escolhidos por sua
sintonia com o tempo ou a festa litúrgica.
a) Celebração
Eucarística
O Tempo da Quaresma, seguindo o ciclo do Ano Litúrgico, é o
primeiro a conter leituras do nosso livro, presente em quatro celebrações.
Nos domingos deste tempo, “as leituras do Antigo Testamento referem-se
à história da salvação (...). Cada ano há uma série de textos que apresentam os
principais elementos desta história” [3]. Assim, no I Domingo da Quaresma do ano C a 1ª leitura é o texto de Dt 26,4-10,
que recorda a libertação do Egito e exorta a oferecer a Deus as primícias da
terra após a entrada em Canaã.
Nos dias de semana da Quaresma, “as leituras do Evangelho e
do Antigo Testamento foram escolhidas de modo que tivessem uma relação mútua;
elas tratam de diversos temas próprios da catequese quaresmal” [4].
Seguindo este critério, já no início desse tempo, na Quinta-feira depois das Cinzas, lemos Dt
30,15-20, que traz o tema dos dois caminhos, da vida e da morte. O caminho da
vida é proposto por Cristo no Evangelho deste dia (Lc 9,22-25): “Se alguém me
quer seguir, renuncie a si mesmo, tome sua cruz cada dia, e siga-me” (v. 23).
No Sábado da I semana
da Quaresma, por sua vez, lê-se Dt 26,16-19, quando Moisés exorta a cumprir
os mandamentos. À exortação do profeta responde Jesus no Evangelho (Mt 5,43-48)
dando-nos o seu mandamento: “Amai os vossos inimigos e rezai por aqueles que
vos perseguem” (v. 44)
Moisés com os Dez Mandamentos (Phillipe de Champaigne, séc. XVII) |
Por fim, na Quarta-feira
da III semana da Quaresma somos exortados duas vezes a cumprir os
mandamentos: por Moisés na leitura de Dt 4,1.5-9 e pelo Senhor no Evangelho (Mt
5,17-19), que veio para dar à Lei “pleno cumprimento” (v. 17).
Após o Ciclo da Páscoa, encontramos o nosso escrito nas três
Solenidades do Senhor no Tempo Comum celebradas na sequência do Pentecostes. A
primeira delas, no domingo seguinte, é a Solenidade
da Santíssima Trindade que, no ano B,
tem como 1ª leitura o texto de Dt 4,32-34.39-40. Aqui Moisés recorda os grandes
feitos do Senhor em favor do seu povo: a criação, a libertação do Egito, a
eleição de Israel.
A próxima solenidade, na quinta-feira seguinte, é o Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo (Corpus Christi), que no ano A traz-nos a perícope de Dt
8,2-3.14b-16a, uma recordação da travessia do deserto e de como Deus alimentou
o seu povo com o maná.
Enfim, na sexta-feira da semana seguinte, celebramos a Solenidade do Sagrado Coração de Jesus,
que, novamente no ano A, oferece-nos
a leitura de Dt 7,6-11, na qual Moisés recorda a eleição do povo e o amor de
Deus: “o Senhor vos amou (...) um Deus fiel que guarda a aliança e a misericórdia”
(vv. 8-9).
Passando aos domingos do Tempo Comum, encontramos o Dt em seis (sendo quatro deles no ano
B), sempre em sintonia com o Evangelho proclamado [5]:
No ano A (ano do Evangelho de Mateus), temos uma
ocorrência do nosso livro, no IX Domingo
do Tempo Comum. Aqui se lê Dt 11,18.26-28, retomando a metáfora dos dois
caminhos: o da bênção (obediência a Deus) e o da maldição (desobediência). No
Evangelho (Mt 7,21-27), por sua vez, Jesus usa a imagem da casa construída
sobre a rocha ou sobre a areia.
No ano B (ano do Evangelho de Marcos), encontramos quatro
leituras do Dt. A primeira delas no IV Domingo do Tempo Comum: Dt 18,15-20,
quando Moisés anuncia que Deus enviará outro profeta como ele. No Evangelho (Mc
1,21-28), Jesus é apresentado como este “novo Moisés”, com uma dupla referência
à sua “autoridade”.
A leitura do IX
Domingo do Tempo Comum é tomada da narração do Decálogo no Dt, particularmente o 3º mandamento,
sobre a observância do sábado: Dt 5,12-15. No Evangelho (Mc 2,23–3,6), Jesus amplia
a reflexão sobre este dia: “O sábado foi feito para o homem, e não o homem para
o sábado” (v. 27).
No XXII Domingo do
Tempo Comum retoma-se um trecho já lido na Quaresma, Dt 4,1-2.6-8, no qual
se exorta a cumprir os mandamentos. No Evangelho (Mc 7,1-8.14-15.21-23), Jesus
mais uma vez amplia a reflexão, discernindo entre os mandamentos de Deus e as
tradições dos homens (v. 8), além de ensinar sobre o tema da pureza.
Memorial de Moisés no Monte Nebo (Jordânia) |
O último dos domingos desse ano que contêm uma leitura do Dt é o XXXI Domingo do Tempo Comum, quando se lê Dt 6,2-6. Este é um texto
fundamental, o chamado “Shemá, Israel”
(“Ouve, Israel”), que Jesus cita no Evangelho (Mc 12,28b-34) como o primeiro
dos mandamentos, unido ao amor ao próximo (cf.
Lv 19,18).
“Ouve, Israel, o Senhor, nosso Deus, é o único Senhor. Amarás o Senhor
teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas
forças. E trarás gravadas em teu coração
todas estas palavras que hoje te ordeno” (Dt 6,4-6)
Por fim, no ano C
(ano do Evangelho de Lucas), lemos o Dt apenas no XV Domingo do Tempo Comum. Trata-se de Dt 30,10-14, mais uma
exortação a cumprir os mandamentos que não são difíceis demais, nem estão fora
do nosso alcance (v. 11), corroborando a “parábola do bom samaritano”, narrada
no Evangelho (Lc 10,25-37).
* * *
Concluímos assim a primeira parte do nosso estudo sobre a
leitura litúrgica do Livro do
Deuteronômio. Na próxima postagem continuaremos analisando sua leitura em
composição harmônica nas celebrações dos Santos e outras Missas especiais, nos
demais sacramentos, nos sacramentais e na Liturgia das Horas.
[Para acessar a segunda parte desse estudo, publicada no dia 09 de setembro, clique aqui]
[Para acessar a terceira parte desse estudo, publicada no dia 16 de setembro, clique aqui]
Segue abaixo uma versão musicada do Shemá, Israel (em hebraico e português):
Notas
[1] LÓPEZ, Félix Gárcia. O
Livro do Deuteronômio. - in: O Pentateuco: Introdução à leitura dos cinco
primeiros livros da Bíblia. São Paulo: Ave-Maria, 2004, pp. 229-270 (Coleção:
Introdução ao estudo da Bíblia, v.
3A).
ROSE, Martin. Deuteronômio.
- in: RÖMER, Thomas; MACCHI,
Jean-Daniel; NIHAN, Christophe [org.]. Antigo
Testamento: História, Escritura e Teologia. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2015,
pp. 260-279.
[2] ALDAZÁBAL, José. A
Mesa da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São
Paulo: Paulinas, 2007, p. 76.
[3] ibid., p. 97.
[4] ibid.
[5] cf. ibid., pp.
103-104.
[Observação:
Devido ao distanciamento social ocasionado pela atual pandemia de coronavírus
(Covid-19), não temos acesso aos Lecionários I-III para indicar as páginas das
leituras. Assim que a situação se normalizar, atualizaremos a postagem com as
devidas referências]
Nenhum comentário:
Postar um comentário