No último dia 12 de setembro foi divulgada uma Carta do Cardeal Robert Sarah, Prefeito da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, aos Presidentes das Conferências Episcopais sobre o retorno das celebrações litúrgicas após a pandemia de Covid-19. O texto foi expressamente aprovado pelo Papa Francisco no dia 03 de setembro.
Segue a Carta na íntegra, conforme divulgada pelo Secretariado Nacional de Liturgia de Portugal:
Congregação para o
Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos
Voltemos com alegria à Eucaristia!
Carta aos Presidentes
das Conferências Episcopais da Igreja Católica sobre a celebração da Liturgia
durante e após a pandemia de Covid-19
A pandemia devida ao vírus Covid-19 produziu mutações não só
nas dinâmicas sociais, familiares, econômicas, formativas e laborais, mas
também na vida da comunidade cristã, incluindo a dimensão litúrgica. Para
impedir o contágio do vírus tornou-se necessário um rígido distanciamento
social que teve repercussões sobre um aspecto fundamental da vida cristã: «Onde
estão dois ou três reunidos em meu nome, aí estou Eu, no meio deles» (Mt
18,20); «Eram assíduos ao ensino dos Apóstolos, à união fraterna, à fração do pão
e às orações… Todos os crentes viviam unidos e possuíam tudo em comum» (At
2,42-44).
A dimensão comunitária tem um significado teológico: Deus é
relação de Pessoas na Trindade Santíssima; cria o homem na complementaridade
relacional entre homem e mulher porque «não é bom que o homem esteja só» (Gn
2,18), relaciona-se com o homem e a mulher e chama-os, por sua vez, à relação
consigo: como bem intuiu Santo Agostinho, o nosso coração está inquieto
enquanto não encontra Deus e n’Ele repousa (cf.
Confissões, I,1). O Senhor Jesus iniciou o seu ministério público chamando para
junto de si um grupo de discípulos para que partilhassem com ele a vida e o
anúncio do Reino; desta pequena grei nasce a Igreja. Para descrever a vida
eterna, a Escritura usa a imagem de uma cidade: a Jerusalém celeste (cf. Ap 21); uma cidade é uma comunidade
de pessoas que partilham valores, realidades humanas e espirituais
fundamentais, lugares, tempos e atividades organizadas e que concorrem para a
consecução do bem comum. Enquanto os pagãos construíam templos dedicados às
divindades aos quais as pessoas não tinham acesso, os cristãos, assim que
gozaram da liberdade de culto, logo edificaram lugares que fossem domus Dei et domus ecclesiae, onde os
fiéis se pudessem reconhecer como comunidade de Deus, povo convocado para o
culto e constituído em assembleia santa. Deus pode, portanto, proclamar: «Eu
sou o teu Deus, tu serás o meu povo» (cf.
Ex 6,7; Dt 14,2). O Senhor mantém-se fiel à sua Aliança (cf. Dt 7,9) e Israel torna-se por isso mesmo Morada de Deus, lugar
santo da sua presença no mundo (cf.
Ex 29,45; Lv 26,11-12). Por isso, a casa de Deus supõe a presença da família
dos filhos de Deus. Também hoje, na oração de dedicação de uma nova igreja, o
Bispo pede que ela seja o que por sua natureza deve ser:
«Seja esta casa lugar para sempre santificado […].
Aqui sejam destruídos os pecados dos homens pela torrente da
graça divina, para que os vossos filhos, ó Pai, mortos para o pecado, sejam
regenerados para a vida do alto.
Aqui, os vossos fiéis, reunidos em volta da mesa do altar,
celebrem o memorial da Páscoa e sejam alimentados no banquete da Palavra e do
Corpo de Cristo.
Aqui ressoe jubilosa a oblação do louvor, voz dos homens
unida aos cânticos dos Anjos, e incessantemente suba para Vós a oração pela
salvação do mundo.
Aqui encontrem os pobres a misericórdia, alcancem os
oprimidos a verdadeira liberdade, e todos os homens se revistam da dignidade de
filhos vossos, até chegarem, exultantes de alegria, à Jerusalém do alto, a
cidade do Céu».
A comunidade cristã nunca procurou o isolamento e jamais fez
da Igreja uma cidade de portas fechadas. Formados para o valor da vida
comunitária e para a procura do bem comum, os cristãos sempre procuraram
inserir-se na sociedade, embora conscientes da uma alteridade: estar no mundo
sem lhe pertencer nem a ele se reduzir (cf.
Carta a Diogneto, 5-6). Também na emergência pandêmica, sobressaiu um grande
sentido de responsabilidade: à escuta e em colaboração com as autoridades de
saúde e com os peritos, os Bispos e as suas Conferências territoriais estiveram
prontos para assumir decisões difíceis e dolorosas, incluindo a suspensão
prolongada da participação dos fiéis na celebração da Eucaristia. Esta
Congregação está profundamente grata aos Bispos pelo empenhamento e esforço
despendidos na tentativa de responder, do melhor modo possível, a uma situação
imprevista e complexa.
Logo, porém, que as circunstâncias o permitam, é necessário
e urgente retomar a normalidade da vida cristã, que tem o edifício igreja como
casa e a celebração da Liturgia, particularmente da Eucaristia, como o «cume
para o qual tende a ação da Igreja e, simultaneamente, a fonte de onde promana
toda a sua força» (Sacrosanctum Concilium,
10).
Conscientes do fato de que Deus jamais abandona a humanidade
que criou e que até as provações mais duras podem dar frutos de graça,
aceitamos a distância do altar do Senhor como um tempo de jejum eucarístico,
útil para nos fazer redescobrir a sua importância vital, a sua beleza e
preciosidade incomensurável. Logo que possível, porém, é preciso voltar à
Eucaristia com o coração purificado, com um renovado maravilhamento, com um
desejo acrescido de encontrar o Senhor, de estar com Ele, de recebê-lo para levá-lo
aos irmãos com o testemunho de uma vida plena de fé, amor e esperança.
Este tempo de privação pode dar-nos a graça de compreender o
coração dos nossos irmãos mártires de Abitínia (inícios do século IV), os quais
responderam aos seus juízes com serena determinação, mesmo perante uma
condenação à morte certa: «Sine Dominico
non possumus». O absoluto non
possumus (não podemos) e a densidade de significado do substantivo neutro Dominicum (o que é do Senhor) não se
podem traduzir com uma só palavra. Uma brevíssima expressão encerra uma grande
riqueza de matizes e significados que hoje se oferecem à nossa meditação:
- Não podemos viver, ser cristãos, realizar em pleno a nossa
humanidade e os desejos de bem e de felicidade que o nosso coração acalenta sem
a Palavra do Senhor, que na celebração ganha corpo e se torna palavra viva,
pronunciada por Deus para quem abre hoje o coração à escuta;
- Não podemos viver como cristãos sem participar no
sacrifício da Cruz em que o Senhor Jesus se dá sem reservas para salvar, com a
sua morte, o homem que estava morto por causa do pecado; o Redentor associa a
si a humanidade e a reconduz ao Pai; no abraço do Crucifixo encontra luz e
conforto todo o humano sofrimento;
- Não podemos viver sem o banquete da Eucaristia, mesa do
Senhor à qual somos convidados como filhos e irmãos para receber o próprio
Cristo Ressuscitado, presente em corpo, sangue, alma e divindade como Pão do
céu que nos sustenta nas alegrias e nas canseiras da peregrinação terrena;
- Não podemos viver sem a comunidade cristã, a família do
Senhor: precisamos encontrar os irmãos que partilham a filiação de Deus, a
fraternidade de Cristo, a vocação e a procura da santidade e da salvação das
suas almas na rica diversidade de idades, histórias pessoais, carismas e
vocações;
- Não podemos viver sem a casa do Senhor, que é a nossa
casa, sem os lugares santos onde nascemos para a fé, onde descobrimos a
presença providente do Senhor e descobrimos o seu abraço misericordioso que
levanta quem caiu, onde consagramos a nossa vocação no seguimento religioso ou
no matrimónio, onde suplicamos e agradecemos, exultamos e choramos, onde
confiamos ao Pai os nossos entes queridos que completaram a sua peregrinação
terrena;
- Não podemos viver sem o dia do Senhor, sem o Domingo que
dá luz e sentido ao suceder-se dos dias do trabalho e das responsabilidades
familiares e sociais.
Por muito que os meios de comunicação desempenhem um
prestimoso serviço em prol dos doentes e de quantos estão impedidos de se
deslocar à Igreja, e prestaram um grande serviço na transmissão da Santa Missa
no tempo em que não era possível celebrar comunitariamente, nenhuma transmissão
se pode equiparar à participação pessoal ou a pode substituir. Aliás, estas
transmissões, por si sós, correm o risco de nos afastarem de um encontro
pessoal e íntimo com o Deus encarnado que se entregou a nós não de modo
virtual, mas realmente, dizendo: «Quem come a minha carne e bebe o meu sangue
permanece em mim e eu nele» (Jo 6, 56). Este contato físico com o Senhor é
vital, indispensável, insubstituível. Logo que estejam identificadas e adotadas
as medidas concretamente disponíveis para reduzir ao mínimo o contágio do
vírus, é necessário que todos retomem o seu lugar na assembleia dos irmãos,
redescubram a insubstituível preciosidade e beleza da celebração, chamem e
atraiam com o contágio do entusiasmo os irmãos e irmãs desanimados, temerosos,
ausentes ou distraídos há demasiado tempo.
Este Dicastério entende reafirmar alguns princípios e
sugerir algumas linhas de ação para promover um rápido e seguro regresso à
celebração da Eucaristia.
A devida atenção às normas higiênicas e de segurança não
pode levar à esterilização dos gestos e dos ritos, à indução, ainda que
inconsciente, de receio e insegurança nos fiéis.
Confia-se na ação prudente mas firme dos Bispos para que a
participação dos fiéis na celebração da Eucaristia não seja desqualificada
pelas autoridades públicas como uma «aglomeração» e não seja considerada como
equiparável ou até subordinável a formas de agregação recreativas.
As normas litúrgicas não são matéria sobre a qual as
autoridades civis possam legislar, mas são da exclusiva competência das
autoridades eclesiásticas (cf. Sacrosanctum Concilium, 22).
Facilite-se a participação dos fiéis nas celebrações, mas
sem improvisadas experimentações rituais e no pleno respeito pelas normas
contidas nos livros litúrgicos que regulam a sua realização. Na Liturgia,
experiência de sacralidade, de santidade e de beleza que transfigura,
saboreia-se já a harmonia da felicidade eterna: tenha-se, portanto, cuidado com
a dignidade dos lugares, das alfaias sagradas, das modalidades celebrativas,
segundo a autorizada indicação do Concílio Vaticano II: «Os ritos resplandeçam
pela nobre simplicidade» (Sacrosanctum
Concilium, 34).
Reconheça-se aos fiéis o direito de receber o Corpo de
Cristo e de adorar o Senhor presente na Eucaristia, nos modos previstos, sem
limitações que chegam mesmo a ir além do previsto pelas normas higiênicas
emanadas pelas autoridades públicas ou pelos Bispos.
Os fiéis na Celebração Eucarística adoram Jesus Ressuscitado
presente; e vemos que com demasiada facilidade se perde o sentido da adoração,
a oração de adoração. Pedimos aos Pastores que insistam, nas suas catequeses,
na necessidade da adoração.
Um princípio seguro para não errar é a obediência.
Obediência às normas da Igreja, obediência aos Bispos. Em tempos de dificuldade
(por exemplo, pensamos nas guerras, nas pandemias), os Bispos e as Conferências
Episcopais podem dar normas provisórias às quais se deve obedecer. A obediência
guarda o tesouro confiado à Igreja. Essas medidas ditadas pelos Bispos e pelas
Conferências Episcopais caducam quando a situação regressa à normalidade.
A Igreja continuará a defender a pessoa humana na sua
totalidade. Ela testemunha a esperança, convida a confiar em Deus, recorda que
a existência terrena é importante mas muito mais importante é a vida eterna:
partilhar a própria vida de Deus por toda a eternidade é a nossa meta, a nossa
vocação. Esta é a fé da Igreja, testemunhada ao longo dos séculos por legiões
de mártires e de santos, um anúncio positivo que liberta de reducionismos
unidimensionais, de ideologias: à preocupação necessária pela saúde pública a
Igreja une o anúncio e o acompanhamento para a salvação eterna das almas.
Continuemos, pois, a entregar-nos com confiança à misericórdia de Deus, a
invocar a intercessão da Bem-aventurada Virgem Maria, salus infirmorum et auxilium christianorum, para todos quantos são
provados duramente pela pandemia e por qualquer outra aflição, perseveremos na
oração por aqueles que deixaram esta vida e, ao mesmo tempo, renovemos o
propósito de ser testemunhas do Ressuscitado e anunciadores de uma esperança
certa, que transcende os limites deste mundo.
Vaticano, 15 de agosto
de 2020, Solenidade da Assunção da Virgem Maria.
O Sumo Pontífice
Francisco, na audiência concedida a 03 de setembro de 2020 ao subscrito Cardeal
Prefeito da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos,
aprovou esta carta e ordenou a sua publicação.
Cardeal Robert Sarah -
Prefeito
Nenhum comentário:
Postar um comentário