“José era justo” (Mt
1,19)
Nas últimas semanas publicamos aqui em nosso blog um estudo sobre o culto a São João Batista, o último e maior dos Profetas. Complementando este
estudo, analisaremos agora o culto a São José, o último e maior dos Patriarcas.
Nesta primeira parte analisaremos sua presença nas
celebrações litúrgicas em geral, enquanto na próxima postagem trataremos das
suas celebrações específicas: 19 de março e 01 de maio.
São José está em destaque desde o último dia 08 de dezembro, com a publicação da Carta Apostólica Patris corde (Com coração de pai) do Papa Francisco e a concessão de indulgências por ocasião dos 150 anos da sua proclamação como Padroeiro da Igreja Universal.
1. Uma breve
introdução ao culto de São José
Na postagem sobre São João Batista, vimos como seu culto teve
desde cedo um alcance universal. O mesmo não se pode dizer, porém, de São José:
seu culto é, como veremos, relativamente recente na história da Liturgia.
O Cardeal Schuster, em seu Liber Sacramentorum, assim como Mario Righetti em sua Historia de la Liturgia, analisam a
precedência que o Batista obteve em relação a José. Da reflexão de Schuster
podemos colher três motivos: a “bula de canonização” do Batista assinada pelo
próprio Jesus - “De todos os homens que já nasceram, nenhum é maior que João”
(Mt 11,11; Lc 7,28); sua ampla presença nos Evangelhos; e o seu martírio (no início da Igreja os únicos
santos venerados eram os mártires).
Apesar do seu papel singular na história da salvação como esposo
de Maria e pai nutrício de Jesus, José é uma figura muito discreta nos
Evangelhos: aparece poucas vezes e nunca chega a tomar a palavra. Desaparece
após os relatos de infância, salvo nas menções a Jesus como “filho de José” (Lc
4, 22) ou “filho do carpinteiro” (Mt 13,55) [1].
Os textos apócrifos tentam “preencher as lacunas”, como o Proto-Evangelho de Tiago (séc. II) e a História de José, o Carpinteiro (séc.
VI-VII). Estes, porém, tiveram mais influência sobre o Oriente: seus
manuscritos mais antigos são todos em línguas orientais, como o copta e o
siríaco, e as cópias em latim vieram muito depois.
O culto a São José no Ocidente seria promovido a partir do
século XV pelos franciscanos, especialmente São Bernardino de Sena (1380-1444)
e o Beato Bernardino de Feltre (1439-1494), ambos na Itália; pelos carmelitas e
pelo teólogo Jean Gerson (1363-1429), Chanceler da Universidade de Paris.
São Bernardino de Sena |
Porém, será apenas com os Papas dos séculos XIX e XX que São
José ganharia um culto universal. O Beato Pio IX (1846-1878), através do
Decreto Quemadmodum Deus, de 08 de
dezembro de 1870, atendendo ao pedido feito por alguns Bispos durante o
Concílio Vaticano I, proclamou São José como Patrono da Igreja Universal: assim
como cuidou do Cristo-Cabeça, cabe a ele o cuidado do seu Corpo, que é a
Igreja.
Beato Pio IX |
Em seguida, seu sucessor Leão XIII (1878-1903), escreveu em
15 de agosto de 1889 a Encíclica Quamquam
Pluries, promovendo a devoção a São José e compondo uma oração em sua
honra, a ser recitada no final do rosário.
São Pio X (1903-1914) aprovou em 1909 a Ladainha de São
José, sobre a qual falaremos adiante; Bento XV (1914-1922) aprovou em 1919 o
Prefácio de São José, sendo então o único santo a possuir um prefácio próprio;
Pio XII (1939-1958) instituiu em 1955 a Memória de São José Operário (que trataremos
na próxima postagem).
São João XXIII (1958-1963), através da Carta Apostólica Le Voci, de 19 de março de 1961, confiou
a São José o patrocínio do Concílio Vaticano II. Por fim, São João Paulo II
(1978-2005), dedicou-lhe a Exortação Apostólica Redemptoris Custos (promulgada a 15 de agosto de 1989).
2. A presença de São
José nas celebrações litúrgicas
a) Advento
Juntamente com João Batista, José está entre as
“figuras-modelo” do Advento elencadas por Augusto Bergamini: “José é o anel de
conjunção que, através de Davi, de quem descende, une Cristo à ‘grande
promessa’, isto é, a Abraão” [2].
Como indica o n. 93 do Elenco
das Leituras da Missa, o Evangelho do IV Domingo do Advento refere-se “aos
acontecimentos que preparam de perto o nascimento do Senhor” [3]. A presença de
José é destacada no IV Domingo do ano A, através da perícope de Mt 1,18-24, o
relato mateano da “origem de Jesus Cristo”, onde José é o destinatário do
anúncio do anjo em um sonho [4], o que remete a outros patriarcas, como Jacó,
que sonha com os anjos e a escada para o céu (Gn 28,10-19).
Nos últimos dias antes do Natal, quando novamente “leem-se
os acontecimentos que preparam imediatamente o nascimento do Senhor” [5], propõe-se,
no dia 17 de dezembro, a genealogia de Jesus, na qual José aparece como último
elo da corrente (Mt 1,1-17); no dia 18, por sua vez, retoma-se o “sonho de
José” (Mt 1,18-24).
Ainda sobre o Advento, vale recordar a Festa do anúncio a
São José do Rito Ambrosiano (próprio da Arquidiocese de Milão), no dia 16 de
dezembro. Esta antecede os dias de preparação próxima para o Natal (17 a 24 de
dezembro).
O sonho de José (Batistério de Florença) |
b) Natal
Fazendo a ponte entre o Advento e o Natal, na Missa da
Vigília desta solenidade se propõe novamente o Evangelho da genealogia de Jesus
e o anúncio do anjo a José (Mt 1,1-25). Porém, essa Missa raramente é
celebrada, sendo “eclipsada” pela Missa da Noite (com o Evangelho de Lc
2,1-14).
Ainda nesse Tempo, São José aparece naturalmente na Festa da
Sagrada Família, no domingo após o Natal (ou no dia 30 de dezembro, quando o Natal
cai no domingo).
Dentre os Evangelhos dessa festa, merece destaque novamente
o ano A, com a leitura de Mt 2,13-15.19-23, a fuga e o retorno do Egito, onde
José é destacado. Nos Evangelhos do ano B (Lc 2,22-40: a apresentação de Jesus
no templo) e do ano C (Lc 2,41-52: Jesus entre os doutores), José é apenas
mencionado.
No Rito Bizantino, o Patriarca está diretamente ligado ao
Natal: o domingo anterior ao Natal é o “Domingo da genealogia”, enquanto o domingo
seguinte é a celebração de José junto com seu antepassado, o rei Davi,
como canta o tropárion desse dia:
“Ó José, anuncia a Davi, ancestral do Senhor, os prodígios: viste a
Virgem grávida, glorificaste com os Pastores, adoraste com os Magos e foste
avisado pelo Anjo. Intercede perante o Cristo Deus pela salvação de nossas
almas!” [6].
Cabe mencionar ainda a Festa dos “Esponsais” de Maria e José
(Desponsatione B. Mariae Virginis cum S.
Joseph), que em alguns calendários locais era celebrada no dia 23 de janeiro,
após a Festa da Sagrada Família (então no domingo após a Epifania). A festa do
casamento de Maria e José foi suprimida no Missale
Romanum de 1962.
O casamento da Virgem Maria e de São José (Bartolomé Esteban Murillo - séc. XVII) |
c) Oração Eucarística:
Uma vez mencionado o Missale
Romanum de 1962, promulgado por São João XXIII, cabe ressaltar o acréscimo
de São José no Cânon Romano, na época a única Oração Eucarística do Rito
Romano.
Como vimos na postagem sobre João Batista, o Cânon traz dois
grupos de santos: no Communicantes
temos a Virgem Maria seguida dos doze Apóstolos e doze Mártires; e, no Nobis quoque, o Batista seguido de sete homens
e sete mulheres.
A inserção de São José no Communicantes está diretamente relacionada ao seu papel de esposo
de Maria. Podemos até dizer que os dois compõem uma só invocação, afinal, uma vez que se casaram, “já
não são dois, mas sim uma só carne” (Mt 19,6):
“Em comunhão com toda
a Igreja, veneramos a sempre virgem Maria, mãe de nosso Deus e Senhor Jesus
Cristo; e também São José, esposo de Maria...” (Missal Romano, p. 470).
No final do seu pontificado, o Papa Bento XVI desejava
inserir o nome de São José também nas outras três Orações Eucarísticas
principais do Rito Romano (II, III e IV), o que acabou sendo feito pelo Papa
Francisco, com o Decreto Paternas vices de
01 de maio de 2013.
d) Ladainhas e piedade popular:
Na Liturgia, o importante papel de José é reforçado por sua
invocação em todas as versões atuais da Ladainha de Todos os Santos (Vigília
Pascal, Batismo, Ordenações, Profissão religiosa, etc.), logo após João Batista
e antes dos Apóstolos. Ele é mencionado também, após a Virgem Maria, na
“fórmula de louvores” recitada após a Bênção com o Santíssimo Sacramento.
Além disso, José é o único santo a possuir uma Ladainha
própria reconhecida oficialmente pela Igreja [7]. Esta, como vimos acima, foi
aprovada pelo Papa São Pio X em 1909 e consta de 24 invocações, algumas
inspiradas na Ladainha de Nossa Senhora.
Dentre as demais devoções ligadas a São José, o Diretório sobre Piedade popular e Liturgia
(n. 222) menciona [8]:
- “As sete quartas-feiras em sua honra”: na próxima postagem
veremos como a quarta-feira tornou-se um dia de devoção a São José, mas cabe
salientar que originalmente seu dia votivo era o sábado, junto com a Virgem
Maria.
- “As piedosas invocações que florescem nos lábios dos fiéis”:
por exemplo, jaculatórias pedindo a sua intercessão junto aos agonizantes, uma
vez que, segundo a tradição, em sua morte ele teria sido assistido por Jesus e
Maria. Um exemplo: “Jesus, Maria e José, assisti-me na última agonia” [9];
- “A coroa das sete dores e sete alegrias de São José”:
derivada da devoção às dores e alegrias de Maria (recordadas, respectivamente,
na Quaresma e na Páscoa).
Cabe mencionar ainda a devoção ao coração de José, que
partindo de Portugal e Espanha chegou ao Brasil no século XVIII, derivada sem
dúvida da devoção aos Corações de Jesus e Maria e relacionada à devoção da
Sagrada Família.
Enquanto o Coração de Jesus é retratado com a coroa de
espinhos e o de Maria com uma coroa de rosas, ao coração de José é anteposto um
lírio, símbolo bíblico de eleição e de pureza [10], sinal portanto de sua eleição como casto
esposo de Maria.
e) Arte sacra:
Sobre a iconografia de José, entre os orientais ela é incipiente,
salvo nos ícones das festas onde aparece (como a Natividade e a Apresentação
do Senhor). No Ocidente seu retrato é muito mais frequente, ora como jovem, ora
como velho (influência dos apócrifos), geralmente com os instrumentos de
trabalho e o lírio.
Detalhe para algumas representações de José com um livro nas
mãos. Como não foi escritor, não aparece a pena (atributo, por exemplo, dos
Evangelistas), mas sim é retratado lendo o livro, simbolizando que, atento à
palavra do anjo, obedeceu sempre a Deus (Mt 1,24; 2,14.21).
Imagem de São José com o livro, de Ambrogio Buonvicino (Basílica de Santa Maria Maior, Roma) |
Localização da estátua de São José na Capela Paulina da Basílica (à direita da foto) (À esquerda da foto encontramos a estátua de S. João Evangelista) |
Notas:
[1] Embora José seja comumente referido como “carpinteiro”,
o termo usado no Evangelho é τέκτων (tékton),
relacionado à palavra τέχνη (tékhne,
arte ou ofício manual, donde vem “técnica”), que pode referir-se a qualquer
pessoa que trabalha com as mãos, por exemplo, um pedreiro - como em ἀρχιτέκτων
(arkhitékton, chefe dos
construtores). Em latim, São Jerônimo usou na Vulgata o termo faber, que é usado para qualquer
operário que trabalha com materiais duros (pedra, madeira, mármore, etc.).
[2] BERGAMINI, Augusto. Cristo,
festa da Igreja: O ano litúrgico. 3ª ed. São Paulo: Paulinas, 2004, p. 186.
[3] ALDAZÁBAL, José. A
Mesa da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São
Paulo: Paulinas, 2007, p. 93.
[4] O Evangelho de Mateus foi escrito para uma comunidade de
cristãos de origem judaica. Assim, o autor quer demonstrar como em Jesus
cumpriram-se as profecias do Antigo Testamento. Por isso o destaque dado a
José, descendente de Davi.
[5] ALDAZÁBAL, op. cit., p. 94.
[6] SPERANDIO, João Manoel; TAMANINI, Paulo Augusto (orgs.).
Liturgikon: Próprio das Festas no Rito
Bizantino. Teresina: Editora da Universidade Federal do Piauí, 2015, p. 25.
[7] O Manual das
Indulgências lista seis ladainhas aprovadas: do Santíssimo Nome de Jesus,
do Sagrado Coração de Jesus, do Preciosíssimo Sangue de Jesus, de Nossa
Senhora, de São José e de Todos os Santos (INDULGÊNCIAS: Orientações Litúrgico-pastorais. São Paulo: Paulus, 2005, p. 62).
Em 2013 a Congregação para o Culto Divino aprovou outras duas: a Ladainha de
Jesus Cristo, Sacerdote e Vítima e a Ladainha do Santíssimo Sacramento (cf. Revista
Notitiae, 561-562, vol. 49 (2013), nn.
5-6, pp. 236-247).
[8] CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E A DISCIPLINA DOS
SACRAMENTOS. Diretório sobre Piedade
Popular e Liturgia: Princípios e orientações. São Paulo: Paulinas, 2003, p.
191.
[9] RITUAL DA UNÇÃO DOS ENFERMOS E SUA ASSISTÊNCIA PASTORAL.
Tradução portuguesa da edição típica para
o Brasil. São Paulo: Paulus, 2000, p. 76.
[10] cf.
HEINZ-MOHR, Gerd. Dicionário dos
símbolos: Imagens e sinais da arte cristã. São Paulo: Paulus, 1994, pp.
222-223.
Referências:
ADAM, Adolf. O Ano
Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica.
São Paulo: Loyola, 2019, pp. 169-171.
RIGHETTI, Mario. Historia
de la Liturgia, v. I: Introducción general; El año litúrgico; El Breviario.
Madrid: BAC, 1955, pp. 950-953.
SCHUSTER, Cardeal Alfredo Ildefonso. Liber sacramentorum, v. VII: Le Feste dei Santi dalla Quaresima
all'ottava dei Principi degli Apostoli. Torino-Roma: Marietti, 1930, pp. 273-274
(para a questão da precedência entre João Batista e José).
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