“Houve um homem
enviado por Deus. Seu nome era João” (Jo 1,6)
Em nosso recente estudo sobre os santos do Antigo Testamento,
vimos como estes são integrados em dois “coros”: os Patriarcas e os Profetas, representados no Novo Testamento por São João Batista, o maior dos Profetas, e São José, o maior dos Patriarcas.
Neste tempo do Advento, no qual estes dois personagens
aparecem em destaque, analisaremos o seu culto na Liturgia, começando com São
João Batista. Nesta postagem analisaremos sua presença nas celebrações
litúrgicas em geral, enquanto que na próxima contemplaremos suas duas
celebrações específicas: a Natividade (24 de junho) e o Martírio (29 de agosto).
1. A presença de São
João Batista nas celebrações litúrgicas
a) Advento:
Augusto Bergamini elenca João Batista como uma das
“figuras-modelo” deste tempo [1], uma vez que “encarna” o seu espírito: o
“Advento escatológico”, com o seu convite à conversão, e o “Advento natalício”,
com o seu nascimento, que antecede o do Messias.
As leituras desse tempo fazem referência ao Precursor em
três ocasiões. Primeiramente, como indica o n. 93 do Elenco das Leituras da Missa [2], João Batista é referido no II e
no III Domingos do Advento.
No II Domingo lemos sempre sua exortação à conversão,
conforme os três Evangelhos Sinóticos: Mt 3,1-12 (ano A); Mc 1,1-8 (ano B); Lc
3,1-6 (ano C). No III Domingo, por sua vez, propõem-se outros textos sobre
João: Mt 11,2-11 (ano A); Jo 1,6-8.19-28 (ano B); Lc 3,10-18 (ano C).
Destaque para o Evangelho do ano A, que contém o elogio
feito por Jesus: “De todos os homens que já nasceram, nenhum é maior que João”
(Mt 11,11; Lc 7,28), que o Cardeal Schuster chama de sua “bula de canonização”,
influenciando o seu grande culto.
O segundo bloco de leituras sobre o Precursor é indicado no
n. 94 do Elenco: “A partir da
quinta-feira da segunda semana começam as leituras do Evangelho sobre João
Batista” [3]. Estas leituras estendem-se até a sexta-feira da III semana.
Por fim, “na última semana antes do Natal, leem-se os
acontecimentos que preparam imediatamente o nascimento do Senhor” [4]. Aqui
encontramos referências a João em três dias:
- 19 de dezembro, o anúncio de
seu nascimento a Zacarias (Lc 1,5-25);
- 23 de dezembro, o relato do seu
nascimento (Lc 1,57-66);
- 24 de dezembro (Missa da manhã), o cântico de
Zacarias (Lc 1,67-79).
b) O cântico de Zacarias (Benedictus):
O cântico de Zacarias, o Benedictus
(Lc 1,68-79), com efeito, é retomado todos os dias na Liturgia das Horas, como cântico
evangélico das Laudes, a oração da manhã. Os últimos versículos deste cântico
(vv. 76-79) fazem referência direta ao Batista:
“Serás profeta do Altíssimo, ó
menino,
pois irás andando à frente do Senhor
para aplainar e preparar os
seus caminhos,
anunciando ao seu povo a salvação (...)”.
c) A Festa do Batismo do Senhor:
Além do Advento, João está associado naturalmente à Festa do
Batismo do Senhor (ou, no Oriente, à Festa da Teofania). Segundo Louis Duchesne
em sua obra Origines du culte chrétien
[5], a festa mais antiga em honra do Precursor deveria ter sido celebrada nas
proximidades da Teofania, em consonância com o uso do Oriente. No Rito
Bizantino, com efeito, é costume celebrar os personagens de uma festa no dia
seguinte; assim, no dia 07 de janeiro se celebra a “Sinaxe de São João Batista,
o Precursor”.
O Batismo de Cristo (Joachim Patinir - séc. XVI) |
Para conhecer o simbolismo do ícone oriental do Batismo do Senhor, clique aqui.
d) A Liturgia Eucarística:
Além das celebrações do Ano Litúrgico, o Batista é
mencionado também no Cânon Romano (Oração Eucarística I). Nesta Oração temos
dois grupos de santos: o primeiro no Communicantes
e o segundo no Nobis quoque. Segundo
Andreas Jungmann, os dois grupos possuem a mesma estrutura: “uma figura
sobressalente no início (...) depois duas vezes um número biblicamente sagrado”
[6].
Assim, no Communicantes
temos a Virgem Maria (e São José, acrescentado mais tarde) seguida de duas vezes doze santos: doze Apóstolos e doze
Mártires. No Nobis quoque, por sua vez, é João Batista que preside o duplo grupo de sete santos:
sete homens e sete mulheres.
“E a todos nós, pecadores, que confiamos na vossa imensa
misericórdia, concedei, não por nossos méritos, mas por vossa bondade, o
convívio dos Apóstolos e Mártires: João Batista...” (Missal Romano,
p. 475)
Ainda no Ordinário da Missa, as palavras de João Batista são
retomadas na tríplice invocação que acompanha a fração do pão, que, como atesta
Jungmann, teria sido inserida pelo Papa Sérgio I (687-701) [7]: “Cordeiro de
Deus, que tirais o pecado do mundo, tende piedade de nós...”. Em seguida, o
sacerdote, ao mostrar aos fiéis a hóstia, confirma: “Eis o Cordeiro de Deus,
que tira o pecado do mundo” (Missal Romano, p. 503; cf. Jo 1,29).
Altar lateral na igreja da Dormição de Maria - Jerusalém |
e) Ladainha de Todos os Santos:
Cabe ressaltar ainda, em relação à Liturgia, a invocação obrigatória de
São João Batista em todas as versões atuais da Ladainha de Todos os Santos
(Vigília Pascal, Batismo, Ordenações, Profissão religiosa, etc.), logo após os
santos anjos e antes de São José.
f) A arte sacra:
Por fim, vale recordar o lugar de destaque que João
Batista ocupa na arte sacra: no Oriente, lembramos a sua presença na deesis (palavra grega para oração ou
súplica), ao lado esquerdo de Cristo, em paralelo com Maria ao lado direito. O
exemplo mais famoso é o mosaico da deesis da Basílica de Hagia Sophia em Constantinopla, parcialmente destruído ao
longo da história.
A deesis de Hagia Sophia (Santa Sofia) |
O Batista também está à esquerda de Cristo, tanto no Oriente
como no Ocidente, nas diversas representações do Juízo final. Este lugar
destacado lhe é dado por sua “canonização” pelo próprio Jesus, como vimos acima
(cf. Mt 11,11; Lc 7,28).
"Juízo final" de Stefan Lochner (séc. XV) João aparece de verde, indicando que "fez florir o deserto" |
Na arte oriental, João é representado às vezes com asas como
de um anjo, em alusão à sua função de mensageiro (em grego, angelos). No Ocidente sua missão como
mensageiro é atestada pelo dedo indicador da mão direita que aponta e o bastão
encimado pela cruz (ainda que anacrônica) na mão esquerda, às vezes ornado por
uma bandeira com a inscrição “Ecce
Agnus Dei” - “Eis o Cordeiro de Deus” (Jo 1,29) [8].
[Para acessar a próxima parte, dedicada às celebrações próprias de São João Batista, publicada no dia 09 de dezembro, clique aqui]
Notas:
[1] BERGAMINI, Augusto. Cristo,
festa da Igreja: O ano litúrgico. 3ª ed. São Paulo: Paulinas, 2004, pp.
184-185.
[2] ALDAZÁBAL, José. A
Mesa da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São
Paulo: Paulinas, 2007, p. 93.
[3] ibid., p. 94.
II semana: Quinta-feira: Mt 11,11-15 / Sexta-feira: Mt
11,16-19 / Sábado: Mt 17,10-13.
III semana: Segunda-feira: Mt 21,23-27 / Terça-feira: Mt
21,28-32 / Quarta-feira: Lc 7,19-23 / Quinta-feira: Lc 7,24-30 / Sexta-feira:
Jo 5,33-36.
[4] ibid.
[5] cf. RIGHETTI,
Mario. Historia de la Liturgia, v. I:
Introducción general; El año litúrgico; El Breviario. Madrid: BAC, 1955, p.
948.
[6] JUNGMANN, Josef Andreas. Missarum Solemnia: Origens, liturgia, história e teologia da Missa
romana. São Paulo: Paulus, 2009, p. 710.
[7] ibid., p. 778.
[8] Sobre a iconografia de João cf. HEINZ-MOHR, Gerd. Dicionário
dos símbolos: Imagens e sinais da arte cristã. São Paulo: Paulus, 1994, pp.
190-194.
Referências:
ADAM, Adolf. O Ano
Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica.
São Paulo: Loyola, 2019, pp. 171-173.
RIGHETTI, Mario. Historia
de la Liturgia, v. I: Introducción general; El año litúrgico; El Breviario.
Madrid: BAC, 1945, pp. 947-950.
SCHUSTER, Cardeal Alfredo Ildefonso. Liber sacramentorum, v. VII: Le Feste dei Santi dalla Quaresima
all'ottava dei Principi degli Apostoli. Torino-Roma: Marietti, 1930, pp. 269-276.
Idem. Liber
sacramentorum, v. VIII: Le Feste dei Santi dall'ottava dei Principi degli
Apostoli alla Dedicazione di S. Michele. Torino-Roma: Marietti, 1932, pp.
217-220.
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