quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

A história do culto a São João Batista: Introdução

Houve um homem enviado por Deus. Seu nome era João” (Jo 1,6)

Em nosso recente estudo sobre os santos do Antigo Testamento, vimos como estes são integrados em dois “coros”: os Patriarcas e os Profetas, representados no Novo Testamento por São João Batista, o maior dos Profetas, e São José, o maior dos Patriarcas.

Neste tempo do Advento, no qual estes dois personagens aparecem em destaque, analisaremos o seu culto na Liturgia, começando com São João Batista. Nesta postagem analisaremos sua presença nas celebrações litúrgicas em geral, enquanto que na próxima contemplaremos suas duas celebrações específicas: a Natividade (24 de junho) e o Martírio (29 de agosto).


1. A presença de São João Batista nas celebrações litúrgicas

a) Advento:

Augusto Bergamini elenca João Batista como uma das “figuras-modelo” deste tempo [1], uma vez que “encarna” o seu espírito: o “Advento escatológico”, com o seu convite à conversão, e o “Advento natalício”, com o seu nascimento, que antecede o do Messias.

As leituras desse tempo fazem referência ao Precursor em três ocasiões. Primeiramente, como indica o n. 93 do Elenco das Leituras da Missa [2], João Batista é referido no II e no III Domingos do Advento.

No II Domingo lemos sempre sua exortação à conversão, conforme os três Evangelhos Sinóticos: Mt 3,1-12 (ano A); Mc 1,1-8 (ano B); Lc 3,1-6 (ano C). No III Domingo, por sua vez, propõem-se outros textos sobre João: Mt 11,2-11 (ano A); Jo 1,6-8.19-28 (ano B);  Lc 3,10-18 (ano C).

Destaque para o Evangelho do ano A, que contém o elogio feito por Jesus: “De todos os homens que já nasceram, nenhum é maior que João” (Mt 11,11; Lc 7,28), que o Cardeal Schuster chama de sua “bula de canonização”, influenciando o seu grande culto.

Jesus e João Batista
(Bartolomé Esteban Murillo - séc. XVII)

O segundo bloco de leituras sobre o Precursor é indicado no n. 94 do Elenco: “A partir da quinta-feira da segunda semana começam as leituras do Evangelho sobre João Batista” [3]. Estas leituras estendem-se até a sexta-feira da III semana.

Por fim, “na última semana antes do Natal, leem-se os acontecimentos que preparam imediatamente o nascimento do Senhor” [4]. Aqui encontramos referências a João em três dias:
- 19 de dezembro, o anúncio de seu nascimento a Zacarias (Lc 1,5-25);
- 23 de dezembro, o relato do seu nascimento (Lc 1,57-66);
- 24 de dezembro (Missa da manhã), o cântico de Zacarias (Lc 1,67-79).

b) O cântico de Zacarias (Benedictus):

O cântico de Zacarias, o Benedictus (Lc 1,68-79), com efeito, é retomado todos os dias na Liturgia das Horas, como cântico evangélico das Laudes, a oração da manhã. Os últimos versículos deste cântico (vv. 76-79) fazem referência direta ao Batista:

Serás profeta do Altíssimo, ó menino,
pois irás andando à frente do Senhor
para aplainar e preparar os seus caminhos,
anunciando ao seu povo a salvação (...)”.

c) A Festa do Batismo do Senhor:

Além do Advento, João está associado naturalmente à Festa do Batismo do Senhor (ou, no Oriente, à Festa da Teofania). Segundo Louis Duchesne em sua obra Origines du culte chrétien [5], a festa mais antiga em honra do Precursor deveria ter sido celebrada nas proximidades da Teofania, em consonância com o uso do Oriente. No Rito Bizantino, com efeito, é costume celebrar os personagens de uma festa no dia seguinte; assim, no dia 07 de janeiro se celebra a “Sinaxe de São João Batista, o Precursor”.

O Batismo de Cristo
(Joachim Patinir - séc. XVI)

Para conhecer o simbolismo do ícone oriental do Batismo do Senhor, clique aqui.

d) A Liturgia Eucarística:

Além das celebrações do Ano Litúrgico, o Batista é mencionado também no Cânon Romano (Oração Eucarística I). Nesta Oração temos dois grupos de santos: o primeiro no Communicantes e o segundo no Nobis quoque. Segundo Andreas Jungmann, os dois grupos possuem a mesma estrutura: “uma figura sobressalente no início (...) depois duas vezes um número biblicamente sagrado” [6].

Assim, no Communicantes temos a Virgem Maria (e São José, acrescentado mais tarde) seguida de duas vezes doze santos: doze Apóstolos e doze Mártires. No Nobis quoque, por sua vez, é João Batista que preside o duplo grupo de sete santos: sete homens e sete mulheres.

E a todos nós, pecadores, que confiamos na vossa imensa misericórdia, concedei, não por nossos méritos, mas por vossa bondade, o convívio dos Apóstolos e Mártires: João Batista...” (Missal Romano, p. 475)

Ainda no Ordinário da Missa, as palavras de João Batista são retomadas na tríplice invocação que acompanha a fração do pão, que, como atesta Jungmann, teria sido inserida pelo Papa Sérgio I (687-701) [7]: “Cordeiro de Deus, que tirais o pecado do mundo, tende piedade de nós...”. Em seguida, o sacerdote, ao mostrar aos fiéis a hóstia, confirma: “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” (Missal Romano, p. 503; cf. Jo 1,29).

Altar lateral na igreja da Dormição de Maria - Jerusalém

e) Ladainha de Todos os Santos:

Cabe ressaltar ainda, em relação à Liturgia, a invocação obrigatória de São João Batista em todas as versões atuais da Ladainha de Todos os Santos (Vigília Pascal, Batismo, Ordenações, Profissão religiosa, etc.), logo após os santos anjos e antes de São José.

f) A arte sacra:

Por fim, vale recordar o lugar de destaque que João Batista ocupa na arte sacra: no Oriente, lembramos a sua presença na deesis (palavra grega para oração ou súplica), ao lado esquerdo de Cristo, em paralelo com Maria ao lado direito. O exemplo mais famoso é o mosaico da deesis da Basílica de Hagia Sophia em Constantinopla, parcialmente destruído ao longo da história.

A deesis de Hagia Sophia (Santa Sofia)

O Batista também está à esquerda de Cristo, tanto no Oriente como no Ocidente, nas diversas representações do Juízo final. Este lugar destacado lhe é dado por sua “canonização” pelo próprio Jesus, como vimos acima (cf. Mt 11,11; Lc 7,28).

"Juízo final" de Stefan Lochner (séc. XV)
João aparece de verde, indicando que "fez florir o deserto"

Na arte oriental, João é representado às vezes com asas como de um anjo, em alusão à sua função de mensageiro (em grego, angelos). No Ocidente sua missão como mensageiro é atestada pelo dedo indicador da mão direita que aponta e o bastão encimado pela cruz (ainda que anacrônica) na mão esquerda, às vezes ornado por uma bandeira com a inscrição “Ecce Agnus Dei” - “Eis o Cordeiro de Deus” (Jo 1,29) [8].

[Para acessar a próxima parte, dedicada às celebrações próprias de São João Batista, publicada no dia 09 de dezembro, clique aqui]

Notas:
[1] BERGAMINI, Augusto. Cristo, festa da Igreja: O ano litúrgico. 3ª ed. São Paulo: Paulinas, 2004, pp. 184-185.
[2] ALDAZÁBAL, José. A Mesa da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São Paulo: Paulinas, 2007, p. 93.
[3] ibid., p. 94.
II semana: Quinta-feira: Mt 11,11-15 / Sexta-feira: Mt 11,16-19 / Sábado: Mt 17,10-13.
III semana: Segunda-feira: Mt 21,23-27 / Terça-feira: Mt 21,28-32 / Quarta-feira: Lc 7,19-23 / Quinta-feira: Lc 7,24-30 / Sexta-feira: Jo 5,33-36.
[4] ibid.
[5] cf. RIGHETTI, Mario. Historia de la Liturgia, v. I: Introducción general; El año litúrgico; El Breviario. Madrid: BAC, 1955, p. 948.
[6] JUNGMANN, Josef Andreas. Missarum Solemnia: Origens, liturgia, história e teologia da Missa romana. São Paulo: Paulus, 2009, p. 710.
[7] ibid., p. 778.
[8] Sobre a iconografia de João cf. HEINZ-MOHR, Gerd. Dicionário dos símbolos: Imagens e sinais da arte cristã. São Paulo: Paulus, 1994, pp. 190-194.

Referências:
ADAM, Adolf. O Ano Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica. São Paulo: Loyola, 2019, pp. 171-173.
RIGHETTI, Mario. Historia de la Liturgia, v. I: Introducción general; El año litúrgico; El Breviario. Madrid: BAC, 1945, pp. 947-950.
SCHUSTER, Cardeal Alfredo Ildefonso. Liber sacramentorum, v. VII: Le Feste dei Santi dalla Quaresima all'ottava dei Principi degli Apostoli. Torino-Roma: Marietti, 1930, pp. 269-276.
Idem. Liber sacramentorum, v. VIII: Le Feste dei Santi dall'ottava dei Principi degli Apostoli alla Dedicazione di S. Michele. Torino-Roma: Marietti, 1932, pp. 217-220.

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