Publicamos aqui as homilias de Natal (Missa da Noite e Missa do Dia) do Patriarca de Lisboa, Cardeal Manuel José Macário do Nascimento Clemente neste ano de 2020:
Homilia na Missa da Noite de
Natal
O modo de Deus acontecer no mundo
Celebremos verdadeiramente o
Natal. Celebremo-lo sem passar depressa demais pelas palavras e pelo
difícil contexto em que o fazemos este ano, tão marcado pela pandemia e as suas
consequências no campo da saúde, do trabalho e da vida em geral.
É neste contexto que celebramos o Natal de Cristo. Sabemos como se tornou
motivo direto e indireto de outras coisas, legítimas certamente, como a reunião
familiar, as iluminações e as prendas, as saudações e os bons votos a presentes
e ausentes. Ainda bem que assim foi e continua a ser, embora condicionados
pelas atuais restrições. Não se reduza a boa vontade, que encontra sempre modo
de chegar aos outros, pois o coração vence as distâncias.
Importa, porém, não deixar que
outros motivos diluam ou encubram o que realmente originou o Natal. Muito menos
que o contradigam, como se fizéssemos deste dia algo diferente do que ele foi.
Natal significa nascimento - e
nascimento de Jesus Cristo. Os Evangelhos da Infância de Jesus dizem-nos o que
aconteceu, no mais profundo desse acontecer. Estão envoltos em motivos
bíblicos, que preenchem o significado do presépio de Belém. Se bem repararmos,
o essencial é ter sido assim, de modo tão original e interpelante, hoje como
então.
A originalidade do nascimento de Cristo, como admirou na altura e nos admira
agora, interroga-nos a todos e esclarece os crentes sobre aquilo a que podemos
chamar a surpresa de Deus neste mundo.
Reparemos que há muitos
séculos se vinha desenvolvendo na tradição profética de Israel a expetativa de
um Messias (= Cristo), cheio do Espírito de Deus para anunciar a Boa Nova aos
pobres. Assim se apresentou Jesus, anos mais tarde, na sinagoga de Nazaré
(cf. Lc 4,18). Aliás, entre os próprios romanos, havia quem
anunciasse a chegada duma nova idade do mundo, coincidente com o Império de
Octávio César Augusto...
Grandes expectativas, mas dificilmente aproximáveis do modo, tão desprovido e
simples, como Jesus nasceu, viveu e morreu. Ou como os crentes O sentem agora,
bem presente nas suas vidas, tão forte como discreto “Emanuel”, que que dizer
“Deus conosco” - proposta permanente e imposição nenhuma.
Deus conosco, como Deus
acontece no mundo e nas vidas. Não O imaginemos doutra forma, pois só nos
veríamos a nós, mais ou menos sonhados e fantasiados. Fixemo-nos no Presépio e
no concreto daquela situação e respetivos circunstantes.
Creio que esta fixação no
presépio de Belém nos ajudará especialmente no momento atual, com as
dificuldades sobrevindas e que a muitos atingem gravemente, por esse mundo além
ou aquém. Contemplado com persistência e devoção, aquele Menino reflete-se em
tantos outros, nascidos ou por nascer, cujas famílias também não encontram
lugar apropriado e capaz. Entrevemo-Lo já, no seu percurso depois, próximo dos
pobres de todas as pobrezas, inteiramente solidário em palavras e obras.
Mas tudo começou daquele modo,
num lugar recôndito e tão diverso de Roma com o seu imperador, ou mesmo de
Jerusalém com o seu rei. Isto mesmo nos importa, para sabermos como fazer
agora, diante da vida própria e alheia, como nos toca a todos e a tanta gente pesa.
Se quisermos realmente
celebrar e viver este Natal de 2020, façamo-lo à única luz daquela noite em
Belém de Judá. Aceitemos cada um como sinal de Deus a aparecer neste mundo,
sobretudo nos mais carentes e frágeis. O presépio onde nasceu pode ser agora a
cama dum hospital, ou o leito doméstico dum doente. A solidão que envolvia
aquele reduzido grupo, pode ser hoje a que entristece tantas pessoas sós e à
espera da visita que tarda ou da mensagem que não chega. Sejamos para os outros
os presentes que o Menino não teve. Neles nos espera, no grande presépio do
mundo.
A eterna lição do Natal de
Cristo é o modo de Deus nos acontecer. Convertamo-nos de vez ao modo divino de
ser e de fazer. Veio ao nosso encontro numa pequenez inaudita. Viveu poucos
anos num espaço limitado. Aí mesmo lançou à terra a menor das sementes, que foi
sempre crescendo pelo mundo além. Dois milênios depois, estamos nós aqui,
celebrando e confirmando a força invencível da fragilidade divina.
Nós aqui, neste templo vetusto. Outros mais longe, onde nem os templos se podem
levantar, ou permanecer seguros. Mas o Natal sempre cresce, com a força que só
Deus lhe garante.
Aprendemos assim o certíssimo
modo de ir resolvendo as coisas, mesmo as mais difíceis. Chegando ao muito pelo
pouco, ao grande pelo pequeno e à humanidade de todos pela atenção a cada um.
Mais do que com grandiosos projetos e meios formidáveis, as grandes obras
começam com grandes corações. Corações que se fortalecem na medida em que
acolhem o Coração divino. Esse mesmo que pulsou naquela noite abençoada.
Dois mil anos de Evangelho, nas mais diversas latitudes e circunstâncias, por
vezes bem difíceis como foram e como são, garantem-nos absolutamente que é
assim. Alarga-se continuamente o portal do Presépio de Belém.
Há um ano, o Papa Francisco
dirigiu-nos uma belíssima mensagem, para nos fixar o olhar no Presépio, sem nos
distrairmos com motivos que nos alheiem dele e do seu verdadeiro significado.
Este ano, noutro magnífico texto, apresenta-nos a figura tutelar de São José,
que, adotando Jesus, nos adota também a nós. Assim escreve: «O objetivo desta Carta Apostólica é aumentar o amor por este grande Santo, para nos sentirmos
impelidos a implorar a sua intercessão e para imitarmos as suas virtudes e o
seu desvelo» (Carta Apostólica Patris corde, conclusão).
São José acompanha-nos sempre,
sobretudo com o seu exemplo, cumprindo uma missão que o ultrapassava mas não
dispensava. Acompanhemos os outros, como São José cuidou do Menino que Deus lhe
confiou.
Com Jesus, Maria e José, houve
e continuará a haver Natal neste mundo!
Sé de Lisboa, 24 de dezembro de 2020.
Homilia da Missa do Dia do
Natal
A eterna lição do Natal
De novo em Natal, para um
Natal sempre novo. Assim podemos dizer e assim deve ser, hoje também. Hoje,
quando as condições sanitárias nos obrigam a grandes cuidados e nos restringem
as habituais convivências. Hoje, quando tantas famílias se preocupam com algum
membro atingido pela pandemia e tantos profissionais da saúde se desdobram no
tratamento de doentes. Hoje, quando os responsáveis dos vários setores se
mantém vigilantes e ativos para que a vida de todos se mantenha segura e
sustentável. Hoje, quando ainda há tanto a fazer para que a ninguém falte
abrigo, alimentação e trabalho. Hoje, quando os nossos idosos não podem receber
as visitas dos seus e tantos cuidadores se desvelam para não lhes faltar o
conforto. Hoje, quando por esse mundo além e aquém se multiplicam refugiados e
emigrantes forçados, que têm inegável direito a ser acolhidos e respeitados em
qualquer lugar onde cheguem. Não consta que São José tenha encontrado
dificuldades de maior, quando se refugiou no Egito, com o Menino e Sua Mãe.
Hoje, da parte de Deus, é seguramente Natal. Da nossa parte há de sê-lo também,
no que a cada um lhe caiba e no que a todos compete. Da parte de Deus, como em
Belém de Judá há dois milénios, aconteceu com tal força própria que acabou por
se repercutir na cultura e na sensibilidade humanas, com inegável persuasão e
até para além da confessionalidade estrita.
Mesmo quando não o celebram liturgicamente, mesmo quando as circunstâncias
parecem contradizê-lo, mesmo quando não o nomeiam expressamente, homens e
mulheres do mundo inteiro, crianças, adultos ou idosos, esperam o “Natal”,
buscam-lhe os sinais e adivinham-lhe a necessidade, ainda como esperança.
Desejam que “seja Natal todos os dias”, aspiram à paz que anuncia,
descontentam-se por não ser assim, finalmente e já.
O Natal de Cristo tornou-se lição universal e este dia é o seu exame para
todos. - Como nos classificaremos este ano, depois das dificuldades
enfrentadas, pessoal, social e até eclesialmente falando? Positiva é certamente
a nota relativa à vontade de responder às incidências da pandemia, por
entidades públicas e particulares. Vontade de responder que foi geral e muitas
vezes abnegada, aumentando o esforço e superando lacunas, também por parte de
paróquias e instituições religiosas. Mas é essa boa vontade, solidária, competente
e criativa, que permitirá aumentar ainda mais a classificação geral das provas
natalícias de ano para ano.
Se a lição do Natal se tornou
tão forte e duradoura, tal se deve essencialmente ao fato de ser divina,
surpreendentemente divina. As lições que a humanidade pretende dar-se só por
si, valem o que valem, por vezes muito, mas sempre de menos. Nunca conseguem ir
além do humano, demasiadamente humano, mesmo que se destinem a todos, ou a
todos se queiram impor.
Nas sucessivas formas
culturais e civilizacionais, marcam-se inícios, apogeus e declínios. Nunca se
volta exatamente ao ponto de partida, porque algo se acumulou entretanto, como
experiência convivida e alguma inovação alcançada. Mas nunca basta e somam-se
interrupções e atrasos. Por vezes apresentam-se como “progressos
civilizacionais” autênticos retrocessos humanitários, como no que diz respeito
à integralidade da vida humana, quando deixa de ser legalmente protegida em
todo o seu devir e não se usam os recursos que o progresso científico nos
oferece para fazê-lo, de forma positiva e generalizada, até ao termo natural de
cada um.
A lição do Natal é divina,
porque ninguém o imaginava do modo como realmente foi. Desde que a humanidade
ganhou consciência de si, manifestou vontade em ter alguma ciência da
divindade, plural ou singular. Mas dificilmente saiu de si própria,
transpondo-se para o além, agigantando a sua pequenez, procurando segurança
algures. Dos primeiros traços que deixou, nas paredes de grutas ou construções
pré-históricas, aos grandes edifícios dos primeiros e últimos impérios,
ressalta sempre e sobretudo a projeção humana além de si - hesitante, situada e
finalmente impossível.
Mas «o Verbo fez-se carne e
habitou entre nós. E nós vimos a sua glória...». Neste magnífico hino das
origens cristãs, está a lição do Natal plenamente enunciada, colocando-nos a
atenção, a contemplação e a devoção no exclusivo ponto onde devem estar, isto
é, na irredutível iniciativa divina.
Não seremos nós a dizer Deus,
é Deus que unicamente se diz. Podemos concluir que razoavelmente é assim e sem
alternativa capaz. Mas a iniciativa foi sua e em pleno contraste com qualquer
construção humana, por mais intelectual e bem propositada que fosse.
Deus verbaliza-se, diz-se
naquele Menino único onde cabem todas as idades, ligando a fragilidade da carne
à realidade absoluta d’Aquele que a assume e ressuscita. Não deixará de ser
“carne”, sentindo e sofrendo, do presépio à cruz, mas sanando-a pela constante
ligação a Deus Pai, no Espírito que compartilham e nos inclui também.
Esta autorrevelação de Deus,
dito em Jesus, seu Verbo incarnado, aconteceu ali, naquele tempo e lugar. Mas,
exatamente por ser divina, irrompe por todo o espaço e tempo, preenchendo toda
a “carne” da humanidade que sente e que sofre, que ri e que chora, que oferece
ou implora.
Deixemo-nos surpreender pela
constante e inesgotável lição do Natal. Este é o presépio a que devemos acorrer
como os pastores, gente pobre e disponível; ou depois os magos, gente
desinstalada e à procura. Com todas as figurações que o seu dia-a-dia nos
trouxer, aí mesmo e só aí “veremos a sua glória”.
Santo Irineu, no segundo
século cristão, escreveu que «a glória de Deus é o homem vivo e a vida do homem
é a visão de Deus». Felicíssima síntese e arco perfeito, de Deus para o homem e
do homem para Deus, como no Natal se admira e contempla. Na humanidade
renascida do Verbo incarnado está a glória de Deus, a plena manifestação do seu
poder, que é o seu amor criador.
Não o perdendo nunca, da vista
e do coração, viveremos também e plenamente. Com o salmista cantaremos: «Em Vós
Senhor está a fonte da vida. Na vossa luz veremos a luz» (Sl 36,10)!
Sé de Lisboa, 25 de dezembro de 2020
+ Manuel, Cardeal-Patriarca
Fonte: Patriarcado de Lisboa
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