“Hoje o céu e a terra
cantam, os anjos e os homens celebram, uma vez que Deus, nascido de uma mulher,
revela-se na carne” [1]
Em nossa série de postagens sobre os ícones das festas litúrgicas, chegamos à grande celebração da “Natividade segundo a carne de
nosso Senhor, Deus e Salvador, Jesus Cristo”, ou simplesmente Solenidade do
Natal do Senhor, celebrada a 25 de dezembro.
Origem e conteúdo da
festa
Os primeiros registros dessa celebração remontam a meados do século IV, com notáveis diferenças entre Oriente e Ocidente: enquanto em Roma
se celebrava no dia 25 de dezembro uma festa específica em honra do nascimento
do Senhor, as igrejas orientais celebravam no dia 06 de janeiro uma festa mais
ampla de sua manifestação (Epifania), recordando tanto o seu nascimento em
Belém quanto o batismo no Jordão.
Com o tempo, sobretudo a partir das definições cristológicas
dos primeiros Concílios Ecumênicos, as duas tradições influenciaram-se
mutuamente e passaram a celebrar ambas as festas [2]. Porém, embora as duas
tradições fundamentem a festa do Natal no dogma da dupla natureza de Cristo
definido no Concílio de Calcedônia (451), Jesus Cristo verdadeiro Deus e
verdadeiro homem, celebram-na com ênfases diferentes.
As Igrejas ocidentais, sobretudo na piedade popular,
destacam os aspectos mais “históricos” ou “humanos” da celebração: a ternura da
Mãe que contempla o Filho recém-nascido, a pobreza do local do nascimento, etc.
A tradição oriental, por sua vez, enfatiza a dimensão
“teológica” ou “escatológica” da festa: o mistério do Cristo que se esvazia da
sua divindade para assumir a nossa humanidade, inaugurando assim uma “nova criação”;
o mistério do eterno que entra na história para santificá-la.
Tal teologia é visível no ícone da festa, um dos mais ricos
de simbolismos da tradição bizantina. Este ícone “representa o programa do admirável plano salvífico: a mais sublime
expressão de seu amor por nós, a união escatológica do eclesial e do terreno”
[3].
O ícone
As montanhas: Ao
fundo são representadas as montanhas, local da manifestação de Deus na Sagrada
Escritura. Basta pensar, por exemplo, na importância do Monte Sinai (também
chamado de Horeb) como local da epifania de Deus na sarça ardente (Ex 3) e da
entrega dos mandamentos da aliança (Ex 19-20).
Às vezes são representadas três montanhas que se
entrecruzam, sendo uma mais baixa que as demais: é uma dupla referência aos
mistérios da Trindade e da Encarnação, sendo o Filho simbolizado pela montanha
mais baixa, isto é, mais próxima de nós.
A gruta e o Menino:
No centro do ícone encontramos a gruta, representada em uma forte cor preta, a
mesma usada para representar o Hades, a morada dos mortos, no ícone da
Ressurreição. A gruta proclama, pois, a verdade da Encarnação: o Menino que ali
nasceu está agora sujeito à morte.
O tema da mortalidade é representado ainda pelas faixas que
envolvem o Menino, que está diante da gruta sobre o presépio: são as mesmas
faixas que o envolverão em sua Paixão e as quais os Apóstolos encontrarão
jogadas ao chão na manhã da Ressurreição.
São Romanos, o Melode faz uma leitura deste tema à luz do
pecado dos primeiros pais, Adão e Eva, enfatizando assim que Cristo assume
nossa humanidade para redimi-la: o Menino “está
escondido (pelas faixas) por culpa daqueles que certa vez vestiram-se com
túnicas de pele; e uma gruta constitui suas delícias por culpa daqueles que
recusaram as delícias do paraíso e preferiram a corrupção” [4].
Destaca-se ainda que a manjedoura aqui retratada lembra às vezes um altar, profetizando o sacrifício oferecido por Cristo uma vez por todas no altar da cruz. Sua matéria-prima, a madeira, evoca pois justamente a cruz, árvore da vida, e a árvore do paraíso, junto da qual os primeiros pais pecaram.
Dentro da gruta vemos um burro e um boi, que representam os
animais no grande louvor cósmico da Encarnação. Ausentes nos relato bíblicos da
Natividade, estes animais são uma leitura de Is 1,3: “O boi conhece o seu dono, e o jumento a manjedoura de seu senhor”.
Maria: Ao lado do
Menino se encontra sua Mãe, recordando as palavras do Salmo 44: “À vossa direita se encontra a Rainha, com
veste esplendente de ouro de Ofir” (v.10) e do Primeiro Livro dos Reis, no
qual Salomão “mandou colocar um trono
para a sua mãe, e ela sentou-se à sua direita” (1Rs 2,19).
Maria é, com efeito, a Mãe do rei, aquela que goza de
confiança divina. Ela é a maior imagem no ícone, recordando assim seu papel
fundamental na obra da salvação.
Sobre a Virgem Maria falaremos mais na postagem sobre o
ícone da Mãe de Deus. Destacamos aqui apenas mais dois elementos: primeiramente
sua atitude contemplativa, com as mãos cruzadas sobre o peito e o olhar
dirigido ao infinito, como que a guardar no coração tudo que acabara de
acontecer (Lc 2,19).
Maria está deitada sobre um tecido na cor vermelha, que
recorda aqui a nossa humanidade (cor do sangue). O tecido parece formar o
número oito, indicando que começou o “oitavo dia”, o dia da nova criação
inaugurada em Cristo. Além disso, o número oito na horizontal é o símbolo do
infinito: pelo mistério da Encarnação, o eterno entra na história.
Os anjos: Na
parte superior do ícone vemos os anjos, que se unem ao louvor da criação ao
Deus feito homem. O número de anjos varia: ora são três em alusão à Trindade,
ora seis em alusão aos dias da criação. Não obstante, um sempre aparece mais
baixo que os demais, anunciando aos pastores a boa-nova, consoante o relato de
Lucas (Lc 2,8-14).
No meio dos anjos encontramos ainda um facho de luz que
ilumina a cena e, ao aproximar-se da gruta, divide-se em três, clara alusão à
Trindade. A luz que ilumina a gruta é uma profecia da Ressurreição, quando
Cristo, luz do mundo, descerá ao Hades para iluminar “aqueles que jazem nas trevas e na sombra da morte” (Lc 1,79).
Os pastores e os
magos: Ainda na parte superior do ícone, logo abaixo da linha dos anjos,
encontramos de um lado os pastores com suas ovelhas e do outro os magos.
Os pastores, presentes no relato lucano, são as primeiras
testemunhas do nascimento do Salvador. Eles recordam-nos tanto a imagem de Deus
como pastor, recorrente na Sagrada Escritura, quanto sua predileção pelos
pequenos e pobres (Lc 1,51-53).
Em algumas versões do ícone, um dos pastores (às vezes uma
criança) toca uma corneta, referência ao shofar,
chifre de carneiro que soava no início dos jubileus: com o nascimento de Cristo
começa um “tempo de graça do Senhor” (Is 61,1-2; Lc 4,18-19).
Os magos, por sua vez, estão presentes no relato mateano da
Natividade (Mt 2,1-12). Como veremos na postagem própria, o Rito Romano recorda sua visita apenas na festa da Epifania, enquanto os orientais os incluem já
na celebração do Natal.
Sua presença evoca a profecia de Isaías da salvação estendida
a todas as nações, representadas pelos reis que trazem ouro e incenso em honra
do Messias (Is 60,1-6). O relato de Mateus acrescenta a mirra, contemplando
assim o número três com o qual os magos são associados, referência ao tríplice
múnus de Cristo: sacerdote (incenso), profeta (mirra) e rei (ouro).
Além disso, os magos que trazem perfumes são uma profecia
das mulheres mirróforas (portadoras de aromas) que vão ao túmulo do Senhor na
manhã da Ressurreição.
José: Na parte
inferior esquerda do ícone encontramos a figura de José, sentado em uma pedra
em atitude pensativa, com a cabeça apoiada nas mãos. Ele personifica o drama
humano diante do mistério.
Relatos apócrifos (como o Protoevangelho de Tiago) narram a
dúvida de José diante do nascimento do Filho de Deus. Ao seu lado é
representado o diabo disfarçado de pastor, o qual vem para fazer jus ao seu
nome, isto é, diabolos (aquele que
divide), introduzindo a dúvida no coração de José.
Este diabo carrega o tirso, um bastão utilizado nos cultos
ao deus greco-romano Dioniso (Baco), deus do vinho e da loucura. Porém, ao
bastão seco do paganismo opõe-se um arbusto verde presente ao lado, símbolo do
tronco que brotou da raiz de Jessé, isto é, o próprio Cristo, descendente de
Davi (Is 11,1-2.10-12).
O banho do Menino:
Por fim, no canto inferior direito contemplamos a cena do primeiro banho do
Menino, já presente no ícone da Natividade de Maria. O banho é aqui prelúdio do batismo de Jesus no Jordão e símbolo de sua humanidade, pois ser mergulhado em
água e dela sair são poderosas imagens de morte e ressurreição.
Junto ao Menino estão duas mulheres que o ajudam no banho.
Segundo o Protoevangelho de Tiago, são a parteira (que foi trazida por José das
redondezas) e uma mulher chamada Salomé. Tradições posteriores identificam
simbolicamente a parteira com Eva, a qual por sua desobediência introduziu o
pecado no mundo, mas que agora testemunha a salvação que veio pela obediência
de Maria.
“Hoje a Virgem dá à
luz o supersubstancial e a terra oferece uma gruta ao inacessível.
Os anjos com os
pastores cantam a sua glória, os magos avançam seguindo a estrela.
Para nós nasceu,
terna criatura, o Deus existente antes dos séculos”
Kontákion da festa [5]
[1] Trecho de um dos hinos processionais para as Vésperas da
festa (PASSARELLI, Gaetano. O ícone da Natividade
do Senhor. São Paulo: Ave Maria, 1996, p. 53. Coleção: Iconostásio, 6).
[2] Sobre a história desta festa confira:
ADAM, Adolf. O Ano
Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica. São
Paulo: Loyola, 2019, pp. 87-89.
DONADEO, Madre Maria. O
Ano Litúrgico Bizantino. São Paulo: Ave Maria, 1998, pp. 45-48.
RIGHETTI, Mario. Historia
de la Liturgia, v. I: Introducción general; El año litúrgico; El Breviario.
Madrid: BAC, 1945, pp. 687-692.
[3] PASSARELLI, op.
cit., pp. 12-13.
[4] Romanos, o Melode. Hinos
(PASSARELLI, op. cit., p. 23).
[5] DONADEO, op. cit.,
p. 45. Este kontákion, estrofe que
resume o mistério da festa, é de autoria de São Romanos, o Melode (séc. VI).
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