sábado, 15 de abril de 2023

História do Tempo Pascal

“Na verdade o Cristo ressuscitou, aleluia! A Ele o poder e a glória pelos séculos eternos” (Lc 24,34; Ap 1,6).

Dentre os eventos do Novo Testamento, dois podem ser facilmente “datados” conforme o calendário lunar judaico: a Ressurreição do Senhor, no domingo após a primeira lua cheia da primavera (no hemisfério norte), e a efusão do Espírito Santo sobre os Apóstolos, cinquenta dias depois.

Esses acontecimentos remetem às festas judaicas da Páscoa (Pessach) e das Semanas (Shavuot). A primeira celebra o êxodo do Egito e a segunda a aliança do Sinai, com a entrega dos Dez Mandamentos. Entre uma festa e outra decorre uma “semana de semanas” (7x7), culminando no 50º dia, chamado em grego Pentecostes (Πεντηκοστή).

Assim, o Domingo da Ressurreição e o Domingo de Pentecostes marcam o início e o fim do Tempo Pascal ou Tempo da Páscoa, cuja história gostaríamos de traçar brevemente nesta postagem.

Cristo Ressuscitado (Centro Aletti, Roma)

1. A celebração do Tempo Pascal nos primeiros séculos

Além de ser uma “semana de semanas”, o Tempo Pascal é também uma grande “oitava” de domingos, como vimos em nossa postagem sobre a Oitava da Páscoa, recordando o simbolismo do número “oito”: a nova criação em Cristo.

A “pedra fundamental” da Liturgia dos primeiros cristãos era, pois, a celebração do domingo, o “dia do Senhor”, “Páscoa semanal”, “primeiro” e “oitavo” dia. A partir do século II, por sua vez, começa a celebrar-se a “Páscoa anual”.

Logo a celebração da Páscoa anual se estende por cinquenta dias, dando origem à Quinquagesima paschalis, Quinquagesima laetitiae ou simplesmente Pentecostes (Πεντηκοστή). Nesse período, com efeito, o termo “Pentecostes” era usado para referir-se ao Tempo Pascal como um todo, aos cinquenta dias.

Já no final do século II temos uma referência a esse Tempo na Carta dos Apóstolos, escrita como se fosse um diálogo entre Cristo e os Apóstolos após a Ressurreição. O texto indica que a parusia, isto é, a última vinda do Senhor, devia ocorrer “nos dias do Pentecostes e da Páscoa” [1], dando a esse Tempo, portanto, um alcance escatológico.

A partir do início do século III diversos Padres da Igreja testemunham a celebração dos cinquenta dias, destacando vários dos seus aspectos. Indicamos aqui apenas alguns exemplos:

Tertuliano (†220) em seu Tratado sobre a oração (De oratione) indica que “no espaço de tempo do Pentecostes, cuja celebração é vivida na mesma alegria festiva [do dia da Ressurreição do Senhor]”, os cristãos não rezam de joelhos [2].

Santo Ambrósio (†397), em seu Comentário ao Evangelho de Lucas, acrescenta outro dado importante: “Nossos antepassados ensinaram-nos a celebrar os cinquenta dias do Pentecostes como pertencendo todos à Páscoa. (...) Durante estes cinquenta dias a Igreja ignora o jejum, como no domingo, dia da Ressurreição do Senhor, e esses dias são todos como o domingo” [3].

Além da ausência do jejum, destaca-se aqui a visão dos cinquenta dias pascais como “um só dia”, ou melhor, “um só domingo”, visão expressa também por Santo Atanásio (†373), que chama esse tempo “o grande Domingo” [4], e por São Basílio Magno em seu Tratado sobre o Espírito Santo:

“Todo o Pentecostes nos recorda a ressurreição que esperamos no século futuro. Com efeito, este dia um e primeiro, multiplicado sete vezes sete, completa as sete semanas do santo Pentecostes. Este termina no mesmo dia em que começou, o primeiro [o domingo], desdobrando-se cinquenta vezes no intervalo em jornadas semelhantes. Deste modo, esta semelhança faz com ele (o Pentecostes) imite a eternidade, uma vez que, como num movimento circular, o seu ponto de partida é o mesmo que o seu ponto de chegada” [5].


Santo Agostinho (†430), por fim, recorda diversas vezes em seus escritos e sermões que o Tempo Pascal é marcado pelo canto do Aleluia (do hebraico Halleluya, “louvai a Yahweh”):
“Chegaram os dias de cantar Aleluia” (Comentário ao Sl 110);
“Nos cinquenta dias que vão da Páscoa ao Pentecostes, e nos quais não se jejua (...) canta-se exclusivamente o Aleluia” (Carta 36);
“Estes dias que se seguem à Paixão de nosso Senhor, nos quais cantamos o Aleluia a Deus, são para nós dias de festa e de alegria, e prolongam-se até o Pentecostes, quando foi enviado do Céu o Espírito prometido” (Sermão 228);
“São tais estes dias que, quando ouvimos o Aleluia, sentimos transfigurado o nosso espírito!” (Sermão 229B);
“Não é sem motivo, meus irmãos, que a Igreja mantém a tradição antiga de cantar Aleluia durante estes cinquenta dias” (Sermão 252) [6].

Ao longo da história houveram algumas tentativas de “fragmentar” o Tempo Pascal. Já o Concílio de Elvira, no início do século IV, havia condenado a prática de concluir esse Tempo com a Ascensão do Senhor, celebrada no 40º dia da Páscoa (quinta-feira da VI semana): “Celebraremos todos o Pentecostes não no quadragésimo, mas sim no quinquagésimo dia depois da Páscoa” [7].

Posteriormente a Ascensão seria enriquecida com uma Oitava, que daria lugar ao “Tempo da Ascensão” (Tempus Ascensionis) no Missale Romanum de 1962, rompendo assim a unidade do Tempo Pascal.

Além disso, a Solenidade de Pentecostes foi gradativamente sendo considerada como celebração autônoma em honra do Espírito Santo, enriquecida inclusive com uma Oitava a partir do século VIII, extrapolando os cinquenta dias pascais.

Cabe mencionar ainda as Rogações, celebrações penitenciais nas quais os fiéis pediam pelo bom êxito das colheitas, no dia 25 de abril (Ladainhas Maiores) e nos três dias antes da Ascensão (Ladainhas Menores), ocasionando uma “pausa penitencial” na alegria pascal. Como esses dias foram escolhidas por circunstâncias históricas, atualmente se orienta transferir as Rogações para outra data.

2. O Tempo Pascal hoje

A reforma litúrgica do Concílio Vaticano II buscou recuperar a unidade do Tempo Pascal, suprimindo o “Tempo da Ascensão” e a Oitava de Pentecostes:

“Os cinquenta dias entre o domingo da Ressurreição e o domingo de Pentecostes sejam celebrados com alegria e exultação, como se fossem um só dia de festa, ou melhor, como um grande domingo” (Normas Universais sobre o Ano Litúrgico e o Calendário [NALC], n. 22).

Pentecostes (Centro Aletti)

Para reforçar essa unidade, os domingos desse Tempo não são mais chamados “Domingos após a Páscoa”, como era até então, mas sim “Domingos da Páscoa” (NALC, n. 23). A contagem prossegue até o VII Domingo da Páscoa (que em alguns países, como o Brasil, é substituído pela Solenidade da Ascensão do Senhor, transferida da quinta-feira), culminando no Pentecostes, o “VIII Domingo da Páscoa”.

Inclusive algumas novas orações dessa Solenidade reiteram a unidade dos cinquenta dias pascais. Por exemplo, a coleta (oração do dia) da Missa da Vigília de Pentecostes: “Deus eterno e todo-poderoso, quisestes que o Mistério Pascal se completasse durante cinquenta dias...” [8].

Uma vez mencionadas as orações, o Tempo Pascal foi enriquecido por diversos textos eucológicos: além das orações próprias para cada dia da Oitava e para os domingos, são propostas duas séries de orações para os dias feriais (semanas II, IV e VI e semanas III e V), além das orações próprias para a VII semana, já em “preparação para a vinda do Espírito Santo” (NALC, n. 26) [9].

Cabe destacar também os nada menos que cinco Prefácios pascais: “O Mistério Pascal”, “A vida nova em Cristo”, “O Cristo vivo, nosso intercessor”, “A restauração do universo pelo Mistério Pascal”, “O Cristo, sacerdote e vítima” [10].

Várias outras orações litúrgicas possuem formulários próprios para o Tempo Pascal, como é o caso da bênção e aspersão da água nos domingos: todo domingo, Páscoa semanal, é possível substituir o Ato Penitencial pela bênção e aspersão da água, especialmente na cinquentena pascal [11].

Também as celebrações dos Apóstolos e dos Mártires possuem textos próprios para o Tempo Pascal, tanto na Missa quanto na Liturgia das Horas, uma vez que com seu sacrifício participaram de maneira singular no mistério da Morte-Ressurreição de Cristo.

Outros elementos próprios desse tempo são a ampla presença do Aleluia nos textos litúrgicos, como já indicado por Santo Agostinho, e a presença do círio pascal em todas as celebrações desse tempo:

“O círio pascal, colocado junto do ambão ou perto do altar, permaneça aceso ao menos em todas as celebrações litúrgicas mais solenes deste tempo, tanto na Missa como nas Laudes e Vésperas, até ao domingo de Pentecostes” [12].

Círio pascal junto ao ambão
(Paróquia São Boaventura, Pádua)

Quanto à Liturgia da Palavra, o Tempo Pascal também foi enriquecido com diversas leituras, conforme os seguintes critérios:

a) Domingos:
Evangelho: nos domingos II e III leem-se as aparições do Ressuscitado; no IV domingo, o discurso do Bom Pastor (Jo 10); e nos domingos V a VII alguns trechos dos discursos de Jesus durante a Última Ceia [13];
1ª leitura: leitura semicontínua dos Atos dos Apóstolos. Há um ciclo de leituras para cada ano (A-B-C);
2ª leitura: leitura semicontínua da 1ª Carta de Pedro (ano A), da 1ª Carta de João (ano B) e do Apocalipse (ano C).

b) Dias de semana:
Leitura semicontínua dos Atos dos Apóstolos e do Evangelho de João, o qual já havia sido iniciado nas últimas semanas da Quaresma [14].

Também no Ofício das Leituras da Liturgia das Horas são lidos os três escritos “pascais” já indicados para a Missa: a 1ª Carta de Pedro (Oitava Pascal), o Apocalipse (semanas II-V) e a 1ª Carta de João (semanas VI-VII).

Ainda em relação à Liturgia das Horas, vale destacar os seis hinos para as Laudes, Vésperas e Ofício das Leituras:

Tempo da Páscoa até a Ascensão do Senhor
Vésperas: Ad cenam Agni próvidi (Às núpcias do Cordeiro) ou O rex aetérne, Dómine (Eterno Rei e Senhor);
Ofício das Leituras: Hic est dies verus Dei (Eis o dia de Deus verdadeiro) ou Laetáre, caelum, desuper (Exulte o céu do alto);
Laudes : Auróra lucis rútilat (Desdobra-se no céu) ou Chorus novae Ierúsalem (A fiel Jerusalém) [15].

Além disso, a Páscoa é o único tempo litúrgico com hinos próprios também para a Hora Média e para as Completas:

Tempo da Páscoa:
Hora Terça (9h): Iam surgit hora tértia (Surge a hora terceira, em que Cristo);
Hora Sexta (12h): Veníte, servi, súpplices (Vinde, servos suplicantes);
Hora Nona (15h): Haec hora, quae resplénduit (Esta hora brilhou e, esplendente);
Completas: Iesu, redemptor saeculi (Ó Jesus Redentor) [16].

O Cordeiro Pascal, símbolo de Cristo Crucificado-Ressuscitado

No âmbito da piedade popular, vale destacar a bênção anual das famílias em suas casas, a Via Lucis ou “Via Sacra da Ressurreição” e a oração do Regina Coeli no lugar do Ângelus [17].

Por fim, cabe dizer que a Páscoa é também o “Tempo da Mistagogia” (cf. Paschalis Sollemnitatis, nn. 102-103).

Como vimos em nossa postagem sobre a Oitava da Páscoa, “mistagogia” significa “conduzir ao mistério” ou “conduzir os iniciados”. Nos primeiros séculos, com efeito, após receberem os Sacramentos da Iniciação Cristã na Vigília, durante o Tempo Pascal os neófitos participavam das “Catequeses mistagógicas”, aprofundando o significado das palavras e gestos do Batismo, da Confirmação e da Eucaristia.

Notas:

[1] CARTA DOS APÓSTOLOS, 28. in: CORDEIRO, José de Leão [org.]. Antologia Litúrgica: Textos litúrgicos, patrísticos e canónicos do primeiro milénio. Fátima: Secretariado Nacional de Liturgia, 2003, p. 146.

[2] TERTULIANO. A oração (De oratione), 23; in: CORDEIRO, op. cit., pp. 202-203.
Até hoje, com efeito, no Rito Romano todos recitam as Ladainhas em pé nos domingos e no Tempo Pascal, como ratificado já pelo 1º Concílio de Niceia (cân. 20) em 325.

[3] AMBRÓSIO DE MILÃO. Comentário ao Evangelho de Lucas (Expositio Evangelii secundum Lucam), Livro VIII, 25; in: CORDEIRO, op. cit., p. 518.

[4] ATANÁSIO DE ALEXANDRIA. Cartas pascais (Epistulae festales) 1, 10; in: CORDEIRO, op. cit., p. 385.

[5] BASILIO DE CESAREIA. O Espírito Santo (De Spiritu Sancto) 27, 66; in: CORDEIRO, op. cit., pp. 402-403.

[6] AGOSTINHO DE HIPONA. Comentários aos Salmos (Enarrationes in Psalmos), 110, 1; in: CORDEIRO, op. cit., p. 771; Carta 36, 18 (p. 817); Sermão 228, 1 (p. 920); Sermão 229B, 1 (p. 924); Sermão 252, 9 (p. 940).

[7] CONCÍLIO DE ELVIRA, 43; in: CORDEIRO, op. cit., p. 553.
O Concílio de Elvira, um Concílio Regional do sul da Espanha, foi celebrado no início do século IV, embora não conheçamos a data exata. A maior parte dos historiadores o situa em torno ao ano de 305.

[8] MISSAL ROMANO. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1991, p. 317.


[10] ibid., pp. 421-425.

[11] ibid., pp. 1001-1004.

[12] CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO. Paschalis Sollemnitatis: A preparação e celebração das festas pascais, n. 99.
O mesmo parágrafo continua: “Depois [do Tempo Pascal], o círio é conservado com a devida honra no batistério, para acender nele os círios dos neo-batizados. Na celebração das exéquias o círio pascal seja colocado junto do féretro, para indicar que a morte é para o cristão a sua verdadeira Páscoa. Fora do Tempo da Páscoa não se acenda o círio pascal nem seja conservado no presbitério”.

[13] O “Domingo do Bom Pastor” é também o Dia Mundial de Oração pelas Vocações, instituído pelo Papa São Paulo VI (†1978) em 1964. Vale lembrar, contudo, que até a publicação do novo Calendário Romano em 1969, o “Evangelho do Bom Pastor” era lido no III Domingo da Páscoa, e não no IV como atualmente.

"Eu sou o Bom Pastor..." (Jo 10,11.14)

[14] cf. Elenco das Leituras da Missa, nn. 100-101; in: ALDAZÁBAL, José. A Mesa da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São Paulo: Paulinas, 2007, pp. 99-100.
Alguns liturgistas, porém, criticam a ausência de textos do Antigo Testamento durante esse Tempo.

[15] OFÍCIO DIVINO. Liturgia das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição típica. São Paulo: Paulus, 1999, v. II, pp. 481-488.
Na Oitava Pascal recita-se o primeiro dos dois hinos indicados; a partir da II semana, um dos dois à escolha.

[16] ibid., pp. 483-484.488-489.
Na Quaresma há hinos próprios para a Hora Média, mas não para as Completas.

[17] cf. Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia, nn. 152-153 (CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E A DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS. Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia. São Paulo: Paulinas, 2003, pp. 131-132).

Referências:

ADAM, Adolf. O Ano Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica. São Paulo: Loyola, 2019, pp. 60-64.

AUGÉ, Matias. Ano Litúrgico: É o próprio Cristo presente na sua Igreja. São Paulo: Paulinas, 2019, pp. 153-155.175-190.

BERGAMINI, Augusto. Cristo, Festa da Igreja. O Ano Litúrgico. São Paulo: Paulinas, 1994, pp. 377-392.407-412.

RIGHETTI, Mario. Historia de la Liturgia, vol. I: Introducción general; El año litúrgico; El Breviario. Madrid: BAC, 1955, pp. 847-850.

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