sábado, 15 de abril de 2023

Homilias do Patriarca de Lisboa: Semana Santa 2023 (2)

Nesta postagem trazemos a segunda parte das homilias do Patriarca de Lisboa (Portugal), Cardeal Manuel José Macário do Nascimento Clemente, nas celebrações da Semana Santa 2023 na Sé de Lisboa.

Enquanto na primeira parte trouxemos suas reflexões para o Domingo de Ramos, a Missa Crismal e a Missa da Ceia do Senhor, aqui concluímos com a Celebração da Paixão do Senhor, a Vigília Pascal e o Domingo de Páscoa:

Homilia na Celebração da Paixão do Senhor
Por suas chagas fomos curados
Sé de Lisboa, 07 de abril de 2023

1. Nesta Sexta-feira Santa, quando tudo nos encaminha para a Cruz do Senhor, detenhamo-nos no trecho de Isaías que serviu aos primeiros cristãos para aceitarem a Morte de Jesus e o seu significado. Ouvimo-lo há pouco: «Ele suportou as nossas enfermidades e tomou sobre si as nossas dores. Mas nós víamos nele um homem castigado, ferido por Deus e humilhado. Ele foi transpassado por causa das nossas culpas e esmagado por causa nossas iniquidades. Caiu sobre ele o castigo que nos salva: por suas chagas fomos curados» (Is 53,4-5).
Não foi nada fácil aos que tinham seguido Jesus desde a Galileia e visto os seus milagres assistirem ao que ouvimos na narração da Paixão. Esperavam a realização das profecias messiânicas em triunfo e glória e não com tanta humilhação e dor.
Tudo parecia desmentir o que esperavam d’Ele e só o foram compreendendo a partir do túmulo vazio que lembraremos depois. Também à luz de textos como o que ouvimos, que a tradição profética guardara, mas tinham permanecido algo enigmáticos.


Era realmente muito estranho um Messias assim. Ainda hoje o é, não só para a grande maioria do seu próprio povo, como para a história religiosa da humanidade, que não integra outro Deus igual.
No entanto, foi precisamente desse modo e daqui não podemos desviar o olhar nem o coração. Jesus salvou-nos bem por dentro do nosso drama, compartilhando-o inteiramente e fazendo-nos companhia onde mais precisamos tê-la, mesmo na injustiça mais sofrida e na dor mais atroz. Tudo isto fez seu, para entregá-lo nas mãos de Deus Pai e nos remir à sua custa.
A própria Cruz tardou algum tempo em impor-se como sinal cristão. São Paulo, ao escrever que se gloriava na Cruz do Senhor, foi um precursor desse caminho, que ainda assim encontraria resistências, pois era considerado maldito o que morresse num madeiro.
Porém, a coincidência da profecia de Isaías com aquilo que a nossa existência tem de mais dramático e direta ou indiretamente nos toca a todos acabou por convencer as primeiras gerações cristãs de que a redenção só poderia acontecer deste modo, quando em Cristo a dor humana e o amor divino acabassem por ser uma coisa só.

2. Na tradição portuguesa, temos as chagas de Cristo por brasão e posso acrescentar que com elas muitos de nós temos encontrado ao longo dos séculos algum sentido para a dor que sofremos, pessoal ou coletivamente. Creio mesmo que o sentido redentor que o sofrimento pode alcançar, quando unido ao de Cristo, para a salvação dos outros, é a marca mais profunda que a evangelização deixou entre nós.
Assim o tenho ouvido da boca de muitos, que, unidos à Paixão de Cristo, encontram sentido para o que padecem e não teria outra solução. Ainda recentemente o testamento espiritual do nosso saudoso Dom Daniel é um exemplo magnífico disto mesmo. E posso acrescentar que algo semelhante ouvi a clérigos e leigos atingidos por doença mortal ou muito grave. Trata-se do realismo cristão mais essencial e de amor desinteressado e em estado puro.
É demasiado fácil sentir-se “salvo” quando tudo corre bem, ou quando nos alienamos da vida como ela é, em nós e nos outros. Também não chega pedir com compreensível interesse que as coisas nos corram sempre bem, com alguma intercessão celeste. Mais cedo ou mais tarde a realidade impõe-se a cada um, como sempre se impõe a quem esteja atento à infelicidade alheia.
Mas Jesus é Emanuel, que quer dizer “Deus conosco”, e precisamente aí onde precisamos ser recriados com o mesmo amor divino que nos trouxe à vida. Aconteceu na Cruz, que não rejeitou para salvar a própria cruz do mundo, feitas uma coisa só n’Ele mesmo, unido inteiramente a nós e unido absolutamente a Deus Pai, eterna fonte de vida.
Essa mesma vida que lhe jorrou do peito aberto em inextinguível sangue e água, que sacramentalmente recebemos. Esse mesmo amor com que “expirou” e agora nos renova no Espírito divino.

3. Nos dias que correm e nas tristezas que nos tocam, na Igreja, no mundo ou na vida que nós e os outros levamos, não percamos nunca de vista a Cruz que nos congrega. Essa mesma da qual esteve pendente a salvação do mundo.
Foi o sinal que recebemos no Batismo, é o sinal que traçamos sobre nós tantas vezes, é a marca da salvação que ganhamos e repartimos. Uma vida autenticamente cristã é uma vida em forma de cruz, como Jesus nela se entregou a Deus Pai e como nela se expandiu para todos. Sim, para todos, tanto para o bom ladrão que o ladeava como para a sua Mãe e quem mais estava ali. E eram apenas o princípio da multidão que se acrescentou até hoje, neste imenso Gólgota do mundo.
Quando algum laicismo tenta apagar os símbolos religiosos dos lugares públicos, atingindo com isso a própria Cruz, não sabe o que faz nem percebe do que priva tanta gente, que ganharia em conhecê-la e ao seu verdadeiro significado.
Mas também nós, quando nos afastamos da Cruz e não lhe damos o devido relevo, quer na vida quer nos espaços de culto, ou quando não fazemos do seu anúncio o ponto central da catequese ou do discurso, privamos os outros do que temos de mais essencial como redenção propriamente dita.
Nada conseguirá apagar o drama humano e nada o redime como a Cruz do Senhor, de onde brota a vida. Estejamos com Jesus onde Ele nos salva, estejamos com Ele mais próximos de todos, sobretudo dos que mais sofrem no corpo ou no espírito. «Abracemos a cruz da vida à luz pura do seu rosto». Não fujamos dela, salvemo-nos com ela, onde Jesus nos redime.
Como em alguns crucifixos, a Cruz tem um resplendor que anuncia a salvação que nos oferece. E deslumbra-nos ver como a Cruz da JMJ, tão simples e despojada como é, vem congregando tantos jovens de Diocese em Diocese, sem precisar de mais nada senão dela mesma e da atração que exerce. É um exemplo por demais eloquente da vida que irradia.
É também um “sinal dos tempos”, que bem precisam dela para se renovarem agora. As próprias chagas que o Ressuscitado mostrou a Tomé, essas mesmas com que O cravaram no madeiro, recordam que a Ressurreição passa pela Cruz, como a vida que se ganha quando se oferece. Porque «por suas chagas fomos curados»!
 
Homilia na Vigília Pascal
Não tenhais medo!
Sé de Lisboa, 08 de abril de 2023

1. Depois do que ouvimos nesta Santa Vigília, qual resumo de quanto antecipou o que celebramos hoje, da criação do mundo ao início do povo da promessa, da libertação do Egito ao anúncio profético do que havia de acontecer em Cristo - e conosco a partir de Cristo - ressoa-nos agora o que Anjo disse àquelas santas mulheres: «Não tenhais medo; sei que procurais Jesus, o Crucificado. Não está aqui: ressuscitou, como tinha dito» (Mt 28,5-6).
Pela ligação que lhe mantinham, não deixaram de procurar o seu corpo morto. Ficaram naturalmente perplexas e mesmo amedrontadas com o que aconteceu. Ouviram então a mensagem celeste: «Não tenhais medo!».
Caríssimos irmãos, tudo quanto os Evangelhos nos narram de Jesus é “Palavra da Salvação”, como sempre a aclamamos. As circunstâncias são várias, desde os momentos protegidos por José e Maria, que nem precisaram de muitas linhas para serem lembrados por Mateus e Lucas, aos daquela “primavera da Galileia”, em que Jesus anunciou a Boa Nova que trazia, fez milagres que a comprovavam, escolheu os Doze e iniciou a Igreja que somos, e aos da sua subida para Jerusalém, que culminou no alto da Cruz em que se deixou crucificar para abraçar a cruz do mundo inteiro, passado, presente e futuro.
O nosso mundo agora, em que vivemos com quem saiba e quem não saiba que pode e deve ser preenchido pela vida ressuscitada de Jesus e realizando em cada um o Evangelho que nos deixou há dois milênios, sempre atuais. Não o digo por dizer, mas porque o vejo a acontecer em muitas pessoas que vivem ressuscitadas na alma, entre tantos corpos mortificados pela dureza da vida. Pessoas que dão vida ou a restauram, esvaziando os túmulos pessoais ou sociais, culturais ou morais em que tantos são encerrados ou se deixam encerrar.
O nosso mundo agora, também em termos pessoais dos que aqui estamos, onde a Ressurreição de Cristo nos ressuscite a nós, frutificando o Batismo que recebemos, para que, sepultados com Cristo na morte, com Cristo ressuscitemos para a vida. Da sua parte tudo está ganho e oferecido. Da nossa parte, por que tanta demora em recebê-lo e vivê-lo inteiramente?
Deixai-me ser concreto, talvez demasiado concreto: Que tempo damos realmente ao Ressuscitado no nosso dia-a-dia, lendo e meditando a sua Palavra, que é espírito e vida? Com que devoção correspondemos à sua presença sacramental, mesmo detendo-nos junto de um sacrário de alguma igreja mais próxima? Quais os cuidados que prestamos aos outros, sabendo que neles o Ressuscitado nos espera, para nos dar vida em quem ajudarmos a viver?


2. É verdade que aquelas santas mulheres foram as primeiras a saber da Ressurreição de Cristo. Mas souberam-no porque mantiveram viva a lembrança de quem fora morto e sepultado e não deixaram de acorrer ao sepulcro onde ainda julgavam estar os seus despojos. Diferentemente, os que se mantinham escondidos e naturalmente receavam o que lhes pudesse sobrevir, tiveram de esperar pelo anúncio espantoso do que, entretanto, acontecera.
Tudo isto é certamente para contemplar, mas é sobretudo para vivermos, não ficando tolhidos por receio algum, mas superando-o pela procura de Cristo, mesmo nos “túmulos” de várias ordens em que o queiram encerrar. Não o queiramos nós, por tibieza ou pouca fé.
Permiti-me insistir na sequência do que ouvimos: as mulheres souberam da Ressurreição de Cristo depois de O procurarem no sepulcro.
Na verdade, podendo o Ressuscitado manifestar-se a quem queira e como queira, a sua descoberta implica necessariamente alguma morte, também em nós, porque a vida ressuscitada não é um regresso ao modo natural de ver e de viver, mas algo de inteiramente novo, que implica morrer com Cristo para com Ele renascer diferente. Não é um acréscimo ao que ainda somos, é o princípio do que havemos de ser.
Esta noite é particularmente bela, com a Liturgia a oferecer-nos o que tem de mais expressivo e atraente. Mas é muito mais do que uma cerimônia a assistir. É uma realidade sempre nova que nos inclui em si mesma, para vivermos a Páscoa de Cristo e sermos transformados por ela.
Não podemos sair daqui como entramos, mas verdadeiramente pascais, pelas palavras que ouvimos e pelos ritos que celebramos. Acompanhamos a Paixão do Senhor e sentimos o grande silêncio que se seguiu, para brilharmos agora como a luz do grande círio que acendemos. Porque “o sol de justiça brilha no céu!”

3. As mulheres que foram ao encontro do sepulcro vazio anunciaram depois a vida que dele transbordou. Esta mesma vida que desde o Batismo há de transbordar também de nós, em palavras e gestos que só podem ser os de Cristo no seu corpo eclesial que integramos, mortos e ressuscitados que já começamos a ser.
Foi bem certeiro São Paulo ao escrever isto mesmo, com palavras que devemos compreender e realizar. Poucas nos definirão tão bem como estas, que há pouco ouvimos: «Todos nós que fomos batizados em Jesus Cristo fomos batizados na sua morte. Fomos sepultados com Ele pelo Batismo na sua morte, para que, assim como Cristo ressuscitou dos mortos pela glória do Pai, também nós vivamos para uma vida nova» (Rm 6,3-4).
Estas palavras foram escritas na década de cinquenta do I século cristão e não perdem atualidade no nosso século XXI. Porque não há “depois de Cristo”, há sim Cristo e depois, ou seja, no seu acontecer em nós e do mesmo modo de quem morre para si para viver para Deus e para todos. Há sempre uma Páscoa a prosseguir.
Àquelas mulheres também foi dito: «Ide depressa dizer aos discípulos: “Ele ressuscitou dos mortos e vai adiante de vós para a Galileia. Lá o vereis”» (Mt 28,7).
Reparemos no “ide depressa”. É a pressa que perpassa os Evangelhos. Como acontecera com a Virgem Maria que, tendo concebido Jesus, foi depressa ao encontro de Isabel (Lc 1,39), sendo este também o lema da nossa Jornada Mundial da Juventude, pois de fato “há pressa no ar” quando é Deus que se respira.
E assim foram também aquelas santas mulheres, quando o medo se transformou em uma alegria tão forte e impossível de conter. E assim iremos nós com elas, no anúncio da vitória de Cristo sobre a morte, que o torna presente e à nossa espera nesta imensa Galileia do mundo.
Para os discípulos, o regresso à Galileia significou decerto o reviver do primeiro encontro com Jesus, que ali os chamara e introduzira no seu Reino. Mas, para eles e para nós, vai muito além das margens do lago, para chegar aos confins do mundo, no espaço e no tempo, começando pelo que mais nos toca e também precisa reviver.
E isto mesmo em todas as pessoas e setores, em toda a quantidade e qualidade de problemas que a fragilidade humana ocasiona. É também aí que o anúncio vivo e solidário da Ressurreição de Cristo deve ser proclamado e praticado. Veja cada um de nós onde e com quem precisa de fazer Páscoa nesta altura!
E sem medo, porque a promessa está feita: «Eu estarei sempre convosco até ao fim dos tempos!» (Mt 28,20).

Homilia no Domingo de Páscoa
Viu e acreditou
Sé de Lisboa, 09 de abril de 2023

1. Acabamos de ouvir no Evangelho: «Simão Pedro entrou no sepulcro e viu as faixas de linho no chão e o sudário que tinha estado sobre a cabeça de Jesus, não com as faixas, mas enrolado à parte. Entrou também o outro discípulo que chegara primeiro ao sepulcro: ele viu e acreditou» (Jo 20,6-8).
Algo surpreendeu os dois discípulos e era caso para tal. O modo como se apresentavam aquelas mortalhas não indiciava o roubo do corpo nem o modo de alguém se destapar ao levantar-se... Como se o corpo dali saísse só por si, com outro modo de atravessar a realidade.
Isto foi o que viram e os intrigou. Mas do discípulo que chegara primeiro se diz algo mais. Diz-se que “viu e acreditou”. Viu aqueles panos estranhamente dispostos e acreditou na Ressurreição do Senhor.
Caríssimos irmãos e irmãs, detenhamo-nos neste ponto, pois algo assim acontece também conosco, sendo a razão de estarmos aqui. Somos cristãos porque também nós vemos e acreditamos.
Somos cristãos porque vislumbramos Cristo em todas as circunstâncias da vida, sejam elas quais forem, alegres ou tristes conforme os casos; somos cristãos, porque damos por nós a acreditar no modo como veio ao mundo, no modo como a vida sempre ultrapassava todos os sinais de morte, física ou moral, que encontrasse e como definitivamente a vida triunfou n’Ele mesmo, depois de morto e sepultado.
Sabemos que nada disto vem de nós, mas do próprio Deus Pai, como Jesus dissera ao Apóstolo que o confessara como Messias: «És feliz, Simão, filho de Jonas, porque não foi a carne nem o sangue que to revelou, mas o meu Pai que está no Céu» (Mt 16,17).


2. Por isso temos de dar muitas graças a Deus, porque a fé é uma virtude teologal que vem d’Ele e a Ele nos leva. É um dom que não dispensa a nossa colaboração para se propagar, mas a origem é sempre divina. Quem acredita testemunha o que crê, porque devemos tomar as graças mais como encargos do que como privilégios. Assim aconteceu com o discípulo que “viu e acreditou” e nunca mais deixou de propagá-lo.
Sabendo que o primeiro elo desta transmissão é geralmente a família crente, leio sempre com alguma emoção o que São Paulo lembrou ao seu discípulo Timóteo: «Trago à memória a tua fé sem fingimento, que se encontrava já na tua avó Loide e na tua mãe Eunice e que, estou seguro, se encontra também em ti» (2Tm 1,5).
Ainda mais quando vejo o mesmo acontecer hoje nas famílias e nas comunidades, oferecendo a todos o melhor que receberam, ou seja, a fé no Ressuscitado, princípio da ressurreição do mundo. O testemunho cristão é a prova de que vimos e acreditamos. Só isto explica como neste preciso momento e em situações dificílimas em tantos lugares da terra haja cristãos que não desistem de afirmar a vida e alimentar a esperança.
Quem seguiu na passada sexta-feira a Via Sacra de Roma guarda certamente na memória os testemunhos lidos em cada estação, provenientes de pessoas que sofreram muitíssimo por esse mundo além. Perseguições, explorações de refugiados, maus tratos de guerrilheiros e fanáticos, desilusão e falta de acolhimento quando pensavam estar finalmente a salvo... O mais impressionante foi ouvir como reagiram apesar de tudo com fé, esperança e capacidade de perdoar. Verdadeiramente conseguiram ver Jesus entre tantos sinais de morte, como o discípulo acreditou diante daquela mortalha esvaziada.
Deixemo-nos transportar pela mesma fé que os conduziu a eles e nos traz hoje aqui. Saibamos interpretar e partilhar os sinais da Ressurreição de Cristo, mesmo quando não aparecem imediatamente assim e tudo pareça contrariá-la. É assim que a fé vence o mundo, começando por nos convencer a nós.

3. A simples razão não nos basta, porque trabalha sobre a realidade como a alcançamos só por nós. A fé não dispensa a razão, luz que Deus igualmente nos concede, mas abre-lhe um horizonte novo, que é a medida infinita de Deus. Medida que se traduziu na vida de Cristo, onde cabe toda a humanidade que somos, mas alargada ao que Deus nos oferece. Foi a fé que permitiu ao discípulo acreditar para além do que via e passar da estranheza inicial para a certeza do que assim mesmo divisava.
De origem divina, a fé faz-nos ver tudo a partir de Deus. Atua por vezes em quem menos se espera, como aconteceu com a fé do centurião ou da cananeia, que Jesus elogiou como a poucos do seu povo.
Também nos faz reconhecer a presença do Ressuscitado em lugares que mais lembram a sua crucificação. Tudo é igualmente seu e é Ele sempre e em tudo. Sem esquecer que a fé não é um “prêmio” que damos a Deus quando as coisas nos correm de feição. Exatamente ao contrário, é um dom imerecido com que Deus nos permeia para vermos a realidade com o olhar com que nos olhou em Cristo, seja como for e venha o que vier.
De certo modo podemos dizer que a fé começa onde cessam as nossas seguranças e certezas. De fato, não é uma “pré-visão”, mas uma “pós-visão”, à luz do que Cristo nos oferece com a sua Morte e Ressurreição.
Isto mesmo fez e faz com que a evangelização só progrida como começou, a partir da Cruz e do sepulcro vazio, tornados sinais de vida vencedora, onde mais parecia ser vencida. Cada página da evangelização que há dois milênios acontece está preenchida de impossibilidades humanas ultrapassadas com a força divina. Cada recuo, pelo contrário, é próprio de tempos acomodatícios, em que a Cruz quase se esconde e as sepulturas ficam como lugares de saudade e sem futuro.
O Martirológio, que assinala em cada dia os santos e beatos que a Igreja nos relembra, está preenchido com vidas crucificadas e ressuscitadas em Cristo, dos primeiros tempos aos mais próximos de nós. De modo cruento ou incruento, todos viram vida onde só aparecia morte ou prenúncios desta.
E prosseguiram sempre nesta novíssima visão das coisas, podendo fazer suas as palavras de São Paulo, que desde a luz que o cegou para em seguida o iluminar diferente, pôde descrever-se assim e aos seus incansáveis trabalhos apostólicos: «De bom grado, portanto, prefiro gloriar-me nas minhas fraquezas, para que habite em mim a força de Cristo. Por isso me comprazo nas fraquezas, nas afrontas, nas necessidades, nas perseguições e nas angústias por Cristo. Pois quando sou fraco, então é que sou forte» (2Cor 12,9-10).
Falar e proceder deste modo é fruto da fé e das obras que a Ressurreição de Cristo nos oferece. É outro modo de ver as coisas, que só a fé nos possibilita. Mas tem dois milênios de magníficas comprovações e continuará conosco, que também “vemos e acreditamos”!
E continua muito especialmente com os milhares de jovens que, nacionais ou estrangeiros, preparam a próxima Jornada Mundial da Juventude. Em um mundo onde há tantos sinais de morte e desesperança, eles divisam e anunciam a novidade de Cristo, que definitivamente as ultrapassa. São uma verdadeira oferta pascal da parte do Ressuscitado, que estou certo ressuscitará a muitos e rejuvenescerá a nossa Igreja também!

† Manuel, Cardeal-Patriarca



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