Nesta postagem trazemos a segunda parte das homilias do Patriarca de Lisboa (Portugal), Cardeal Manuel José Macário do Nascimento Clemente, nas celebrações da Semana Santa 2023 na Sé de Lisboa.
Enquanto na primeira parte trouxemos suas reflexões para o Domingo de Ramos, a Missa Crismal e a Missa da Ceia do Senhor, aqui concluímos com a Celebração da Paixão do Senhor, a Vigília Pascal e o Domingo de Páscoa:
Homilia na Celebração da Paixão do Senhor
Por suas chagas fomos curados
Sé de Lisboa, 07 de abril de 2023
1. Nesta Sexta-feira Santa, quando tudo nos encaminha para a
Cruz do Senhor, detenhamo-nos no trecho de Isaías que serviu aos primeiros
cristãos para aceitarem a Morte de Jesus e o seu significado. Ouvimo-lo há
pouco: «Ele suportou as nossas enfermidades e tomou sobre si as nossas dores.
Mas nós víamos nele um homem castigado, ferido por Deus e humilhado. Ele foi transpassado
por causa das nossas culpas e esmagado por causa nossas iniquidades. Caiu sobre
ele o castigo que nos salva: por suas chagas fomos curados» (Is 53,4-5).
Não foi nada fácil aos que tinham seguido Jesus desde a
Galileia e visto os seus milagres assistirem ao que ouvimos na narração da
Paixão. Esperavam a realização das profecias messiânicas em triunfo e glória e
não com tanta humilhação e dor.
Tudo parecia desmentir o que esperavam d’Ele e só o foram
compreendendo a partir do túmulo vazio que lembraremos depois. Também à luz de
textos como o que ouvimos, que a tradição profética guardara, mas tinham
permanecido algo enigmáticos.
Era realmente muito estranho um Messias assim. Ainda hoje o
é, não só para a grande maioria do seu próprio povo, como para a história
religiosa da humanidade, que não integra outro Deus igual.
No entanto, foi precisamente desse modo e daqui não podemos
desviar o olhar nem o coração. Jesus salvou-nos bem por dentro do nosso drama,
compartilhando-o inteiramente e fazendo-nos companhia onde mais precisamos tê-la,
mesmo na injustiça mais sofrida e na dor mais atroz. Tudo isto fez seu, para
entregá-lo nas mãos de Deus Pai e nos remir à sua custa.
A própria Cruz tardou algum tempo em impor-se como sinal
cristão. São Paulo, ao escrever que se gloriava na Cruz do Senhor, foi um precursor
desse caminho, que ainda assim encontraria resistências, pois era considerado
maldito o que morresse num madeiro.
Porém, a coincidência da profecia de Isaías com aquilo que a
nossa existência tem de mais dramático e direta ou indiretamente nos toca a
todos acabou por convencer as primeiras gerações cristãs de que a redenção só
poderia acontecer deste modo, quando em Cristo a dor humana e o amor divino
acabassem por ser uma coisa só.
2. Na tradição portuguesa, temos as chagas de Cristo por brasão e
posso acrescentar que com elas muitos de nós temos encontrado ao longo dos
séculos algum sentido para a dor que sofremos, pessoal ou coletivamente. Creio
mesmo que o sentido redentor que o sofrimento pode alcançar, quando unido ao de
Cristo, para a salvação dos outros, é a marca mais profunda que a evangelização
deixou entre nós.
Assim o tenho ouvido da boca de muitos, que, unidos à Paixão
de Cristo, encontram sentido para o que padecem e não teria outra solução.
Ainda recentemente o testamento espiritual do nosso saudoso Dom Daniel é um
exemplo magnífico disto mesmo. E posso acrescentar que algo semelhante ouvi a
clérigos e leigos atingidos por doença mortal ou muito grave. Trata-se do
realismo cristão mais essencial e de amor desinteressado e em estado puro.
É demasiado fácil sentir-se “salvo” quando tudo corre bem,
ou quando nos alienamos da vida como ela é, em nós e nos outros. Também não
chega pedir com compreensível interesse que as coisas nos corram sempre bem,
com alguma intercessão celeste. Mais cedo ou mais tarde a realidade impõe-se a
cada um, como sempre se impõe a quem esteja atento à infelicidade alheia.
Mas Jesus é Emanuel, que quer dizer “Deus conosco”, e
precisamente aí onde precisamos ser recriados com o mesmo amor divino que nos
trouxe à vida. Aconteceu na Cruz, que não rejeitou para salvar a própria cruz
do mundo, feitas uma coisa só n’Ele mesmo, unido inteiramente a nós e unido
absolutamente a Deus Pai, eterna fonte de vida.
Essa mesma vida que lhe jorrou do peito aberto em
inextinguível sangue e água, que sacramentalmente recebemos. Esse mesmo amor
com que “expirou” e agora nos renova no Espírito divino.
3. Nos dias que correm e nas tristezas que nos tocam, na
Igreja, no mundo ou na vida que nós e os outros levamos, não percamos nunca de
vista a Cruz que nos congrega. Essa mesma da qual esteve pendente a salvação do
mundo.
Foi o sinal que recebemos no Batismo, é o sinal que traçamos
sobre nós tantas vezes, é a marca da salvação que ganhamos e repartimos. Uma
vida autenticamente cristã é uma vida em forma de cruz, como Jesus nela se
entregou a Deus Pai e como nela se expandiu para todos. Sim, para todos, tanto
para o bom ladrão que o ladeava como para a sua Mãe e quem mais estava ali. E
eram apenas o princípio da multidão que se acrescentou até hoje, neste imenso
Gólgota do mundo.
Quando algum laicismo tenta apagar os símbolos religiosos
dos lugares públicos, atingindo com isso a própria Cruz, não sabe o que faz nem
percebe do que priva tanta gente, que ganharia em conhecê-la e ao seu
verdadeiro significado.
Mas também nós, quando nos afastamos da Cruz e não lhe damos
o devido relevo, quer na vida quer nos espaços de culto, ou quando não fazemos
do seu anúncio o ponto central da catequese ou do discurso, privamos os outros
do que temos de mais essencial como redenção propriamente dita.
Nada conseguirá apagar o drama humano e nada o redime como a
Cruz do Senhor, de onde brota a vida. Estejamos com Jesus onde Ele nos salva,
estejamos com Ele mais próximos de todos, sobretudo dos que mais sofrem no
corpo ou no espírito. «Abracemos a cruz da vida à luz pura do seu rosto». Não
fujamos dela, salvemo-nos com ela, onde Jesus nos redime.
Como em alguns crucifixos, a Cruz tem um resplendor que
anuncia a salvação que nos oferece. E deslumbra-nos ver como a Cruz da JMJ, tão
simples e despojada como é, vem congregando tantos jovens de Diocese em Diocese,
sem precisar de mais nada senão dela mesma e da atração que exerce. É um
exemplo por demais eloquente da vida que irradia.
É também um “sinal dos tempos”, que bem precisam dela para
se renovarem agora. As próprias chagas que o Ressuscitado mostrou a Tomé, essas
mesmas com que O cravaram no madeiro, recordam que a Ressurreição passa pela
Cruz, como a vida que se ganha quando se oferece. Porque «por suas chagas fomos
curados»!
Homilia na Vigília Pascal
Não tenhais medo!
Sé de Lisboa, 08 de abril de 2023
1. Depois do que
ouvimos nesta Santa Vigília, qual resumo de quanto antecipou o que celebramos
hoje, da criação do mundo ao início do povo da promessa, da libertação do Egito
ao anúncio profético do que havia de acontecer em Cristo - e conosco a partir
de Cristo - ressoa-nos agora o que Anjo disse àquelas santas mulheres: «Não
tenhais medo; sei que procurais Jesus, o Crucificado. Não está aqui:
ressuscitou, como tinha dito» (Mt 28,5-6).
Pela ligação que
lhe mantinham, não deixaram de procurar o seu corpo morto. Ficaram naturalmente
perplexas e mesmo amedrontadas com o que aconteceu. Ouviram então a mensagem
celeste: «Não tenhais medo!».
Caríssimos irmãos,
tudo quanto os Evangelhos nos narram de Jesus é “Palavra da Salvação”, como
sempre a aclamamos. As circunstâncias são várias, desde os momentos protegidos
por José e Maria, que nem precisaram de muitas linhas para serem lembrados por
Mateus e Lucas, aos daquela “primavera da Galileia”, em que Jesus anunciou a
Boa Nova que trazia, fez milagres que a comprovavam, escolheu os Doze e iniciou
a Igreja que somos, e aos da sua subida para Jerusalém, que culminou no alto da
Cruz em que se deixou crucificar para abraçar a cruz do mundo inteiro, passado,
presente e futuro.
O nosso mundo
agora, em que vivemos com quem saiba e quem não saiba que pode e deve ser
preenchido pela vida ressuscitada de Jesus e realizando em cada um o Evangelho
que nos deixou há dois milênios, sempre atuais. Não o digo por dizer, mas
porque o vejo a acontecer em muitas pessoas que vivem ressuscitadas na alma,
entre tantos corpos mortificados pela dureza da vida. Pessoas que dão vida ou a
restauram, esvaziando os túmulos pessoais ou sociais, culturais ou morais em
que tantos são encerrados ou se deixam encerrar.
O nosso mundo
agora, também em termos pessoais dos que aqui estamos, onde a Ressurreição de
Cristo nos ressuscite a nós, frutificando o Batismo que recebemos, para que,
sepultados com Cristo na morte, com Cristo ressuscitemos para a vida. Da sua
parte tudo está ganho e oferecido. Da nossa parte, por que tanta demora em
recebê-lo e vivê-lo inteiramente?
Deixai-me ser
concreto, talvez demasiado concreto: Que tempo damos realmente ao Ressuscitado
no nosso dia-a-dia, lendo e meditando a sua Palavra, que é espírito e vida? Com
que devoção correspondemos à sua presença sacramental, mesmo detendo-nos junto
de um sacrário de alguma igreja mais próxima? Quais os cuidados que prestamos
aos outros, sabendo que neles o Ressuscitado nos espera, para nos dar vida em
quem ajudarmos a viver?
2. É verdade que
aquelas santas mulheres foram as primeiras a saber da Ressurreição de Cristo.
Mas souberam-no porque mantiveram viva a lembrança de quem fora morto e
sepultado e não deixaram de acorrer ao sepulcro onde ainda julgavam estar os
seus despojos. Diferentemente, os que se mantinham escondidos e naturalmente
receavam o que lhes pudesse sobrevir, tiveram de esperar pelo anúncio espantoso
do que, entretanto, acontecera.
Tudo isto é
certamente para contemplar, mas é sobretudo para vivermos, não ficando tolhidos
por receio algum, mas superando-o pela procura de Cristo, mesmo nos “túmulos”
de várias ordens em que o queiram encerrar. Não o queiramos nós, por tibieza ou
pouca fé.
Permiti-me insistir
na sequência do que ouvimos: as mulheres souberam da Ressurreição de Cristo
depois de O procurarem no sepulcro.
Na verdade, podendo
o Ressuscitado manifestar-se a quem queira e como queira, a sua descoberta
implica necessariamente alguma morte, também em nós, porque a vida ressuscitada
não é um regresso ao modo natural de ver e de viver, mas algo de inteiramente
novo, que implica morrer com Cristo para com Ele renascer diferente. Não é um
acréscimo ao que ainda somos, é o princípio do que havemos de ser.
Esta noite é
particularmente bela, com a Liturgia a oferecer-nos o que tem de mais
expressivo e atraente. Mas é muito mais do que uma cerimônia a assistir. É uma
realidade sempre nova que nos inclui em si mesma, para vivermos a Páscoa de
Cristo e sermos transformados por ela.
Não podemos sair
daqui como entramos, mas verdadeiramente pascais, pelas palavras que ouvimos e
pelos ritos que celebramos. Acompanhamos a Paixão do Senhor e sentimos o grande
silêncio que se seguiu, para brilharmos agora como a luz do grande círio que
acendemos. Porque “o sol de justiça brilha no céu!”
3. As mulheres que
foram ao encontro do sepulcro vazio anunciaram depois a vida que dele
transbordou. Esta mesma vida que desde o Batismo há de transbordar também de
nós, em palavras e gestos que só podem ser os de Cristo no seu corpo eclesial
que integramos, mortos e ressuscitados que já começamos a ser.
Foi bem certeiro
São Paulo ao escrever isto mesmo, com palavras que devemos compreender e
realizar. Poucas nos definirão tão bem como estas, que há pouco ouvimos: «Todos
nós que fomos batizados em Jesus Cristo fomos batizados na sua morte. Fomos
sepultados com Ele pelo Batismo na sua morte, para que, assim como Cristo
ressuscitou dos mortos pela glória do Pai, também nós vivamos para uma vida nova»
(Rm 6,3-4).
Estas palavras
foram escritas na década de cinquenta do I século cristão e não perdem
atualidade no nosso século XXI. Porque não há “depois de Cristo”, há sim Cristo
e depois, ou seja, no seu acontecer em nós e do mesmo modo de quem morre para
si para viver para Deus e para todos. Há sempre uma Páscoa a prosseguir.
Àquelas mulheres
também foi dito: «Ide depressa dizer aos discípulos: “Ele ressuscitou dos
mortos e vai adiante de vós para a Galileia. Lá o vereis”» (Mt 28,7).
Reparemos no “ide depressa”.
É a pressa que perpassa os Evangelhos. Como acontecera com a Virgem Maria que,
tendo concebido Jesus, foi depressa ao encontro de Isabel (Lc 1,39), sendo
este também o lema da nossa Jornada Mundial da Juventude, pois de fato “há
pressa no ar” quando é Deus que se respira.
E assim foram
também aquelas santas mulheres, quando o medo se transformou em uma alegria tão
forte e impossível de conter. E assim iremos nós com elas, no anúncio da
vitória de Cristo sobre a morte, que o torna presente e à nossa espera nesta
imensa Galileia do mundo.
Para os discípulos,
o regresso à Galileia significou decerto o reviver do primeiro encontro com
Jesus, que ali os chamara e introduzira no seu Reino. Mas, para eles e para
nós, vai muito além das margens do lago, para chegar aos confins do mundo, no
espaço e no tempo, começando pelo que mais nos toca e também precisa reviver.
E isto mesmo em
todas as pessoas e setores, em toda a quantidade e qualidade de problemas que a
fragilidade humana ocasiona. É também aí que o anúncio vivo e solidário da Ressurreição
de Cristo deve ser proclamado e praticado. Veja cada um de nós onde e com quem
precisa de fazer Páscoa nesta altura!
E sem medo, porque
a promessa está feita: «Eu estarei sempre convosco até ao fim dos tempos!» (Mt 28,20).
Homilia no Domingo de Páscoa
Viu e acreditou
Sé de Lisboa, 09 de abril de 2023
1. Acabamos de ouvir
no Evangelho: «Simão Pedro entrou no sepulcro e viu as faixas de linho no
chão e o sudário que tinha estado sobre a cabeça de Jesus, não com as faixas,
mas enrolado à parte. Entrou também o outro discípulo que chegara primeiro ao
sepulcro: ele viu e acreditou» (Jo 20,6-8).
Algo surpreendeu os
dois discípulos e era caso para tal. O modo como se apresentavam aquelas
mortalhas não indiciava o roubo do corpo nem o modo de alguém se destapar ao
levantar-se... Como se o corpo dali saísse só por si, com outro modo de
atravessar a realidade.
Isto foi o que
viram e os intrigou. Mas do discípulo que chegara primeiro se diz algo mais.
Diz-se que “viu e acreditou”. Viu aqueles panos estranhamente dispostos e
acreditou na Ressurreição do Senhor.
Caríssimos irmãos e
irmãs, detenhamo-nos neste ponto, pois algo assim acontece também conosco,
sendo a razão de estarmos aqui. Somos cristãos porque também nós vemos e
acreditamos.
Somos cristãos
porque vislumbramos Cristo em todas as circunstâncias da vida, sejam elas quais
forem, alegres ou tristes conforme os casos; somos cristãos, porque damos por
nós a acreditar no modo como veio ao mundo, no modo como a vida sempre
ultrapassava todos os sinais de morte, física ou moral, que encontrasse e como
definitivamente a vida triunfou n’Ele mesmo, depois de morto e sepultado.
Sabemos que nada
disto vem de nós, mas do próprio Deus Pai, como Jesus dissera ao Apóstolo que o
confessara como Messias: «És feliz, Simão, filho de Jonas, porque não foi a
carne nem o sangue que to revelou, mas o meu Pai que está no Céu» (Mt 16,17).
2. Por isso temos de
dar muitas graças a Deus, porque a fé é uma virtude teologal que vem d’Ele e a
Ele nos leva. É um dom que não dispensa a nossa colaboração para se propagar,
mas a origem é sempre divina. Quem acredita testemunha o que crê, porque
devemos tomar as graças mais como encargos do que como privilégios. Assim
aconteceu com o discípulo que “viu e acreditou” e nunca mais deixou de propagá-lo.
Sabendo que o
primeiro elo desta transmissão é geralmente a família crente, leio sempre com
alguma emoção o que São Paulo lembrou ao seu discípulo Timóteo: «Trago à
memória a tua fé sem fingimento, que se encontrava já na tua avó Loide e na tua
mãe Eunice e que, estou seguro, se encontra também em ti» (2Tm 1,5).
Ainda mais quando
vejo o mesmo acontecer hoje nas famílias e nas comunidades, oferecendo a todos
o melhor que receberam, ou seja, a fé no Ressuscitado, princípio da
ressurreição do mundo. O testemunho cristão é a prova de que vimos e
acreditamos. Só isto explica como neste preciso momento e em situações
dificílimas em tantos lugares da terra haja cristãos que não desistem de
afirmar a vida e alimentar a esperança.
Quem seguiu na passada sexta-feira a Via Sacra de Roma guarda certamente na memória os testemunhos
lidos em cada estação, provenientes de pessoas que sofreram muitíssimo por esse
mundo além. Perseguições, explorações de refugiados, maus tratos de
guerrilheiros e fanáticos, desilusão e falta de acolhimento quando pensavam
estar finalmente a salvo... O mais impressionante foi ouvir como reagiram
apesar de tudo com fé, esperança e capacidade de perdoar. Verdadeiramente
conseguiram ver Jesus entre tantos sinais de morte, como o discípulo acreditou
diante daquela mortalha esvaziada.
Deixemo-nos
transportar pela mesma fé que os conduziu a eles e nos traz hoje aqui. Saibamos
interpretar e partilhar os sinais da Ressurreição de Cristo, mesmo quando não
aparecem imediatamente assim e tudo pareça contrariá-la. É assim que a fé vence
o mundo, começando por nos convencer a nós.
3. A simples razão não
nos basta, porque trabalha sobre a realidade como a alcançamos só por nós. A
fé não dispensa a razão, luz que Deus igualmente nos concede, mas abre-lhe um
horizonte novo, que é a medida infinita de Deus. Medida que se traduziu na vida
de Cristo, onde cabe toda a humanidade que somos, mas alargada ao que Deus nos
oferece. Foi a fé que permitiu ao discípulo acreditar para além do que via e
passar da estranheza inicial para a certeza do que assim mesmo divisava.
De origem divina, a
fé faz-nos ver tudo a partir de Deus. Atua por vezes em quem menos se espera,
como aconteceu com a fé do centurião ou da cananeia, que Jesus elogiou como a
poucos do seu povo.
Também nos faz
reconhecer a presença do Ressuscitado em lugares que mais lembram a sua crucificação.
Tudo é igualmente seu e é Ele sempre e em tudo. Sem esquecer que a fé não é um
“prêmio” que damos a Deus quando as coisas nos correm de feição. Exatamente ao
contrário, é um dom imerecido com que Deus nos permeia para vermos a realidade
com o olhar com que nos olhou em Cristo, seja como for e venha o que vier.
De certo modo
podemos dizer que a fé começa onde cessam as nossas seguranças e certezas. De
fato, não é uma “pré-visão”, mas uma “pós-visão”, à luz do que Cristo nos
oferece com a sua Morte e Ressurreição.
Isto mesmo fez e
faz com que a evangelização só progrida como começou, a partir da Cruz e do
sepulcro vazio, tornados sinais de vida vencedora, onde mais parecia ser
vencida. Cada página da evangelização que há dois milênios acontece está preenchida
de impossibilidades humanas ultrapassadas com a força divina. Cada recuo, pelo
contrário, é próprio de tempos acomodatícios, em que a Cruz quase se esconde e
as sepulturas ficam como lugares de saudade e sem futuro.
O Martirológio, que
assinala em cada dia os santos e beatos que a Igreja nos relembra, está
preenchido com vidas crucificadas e ressuscitadas em Cristo, dos primeiros
tempos aos mais próximos de nós. De modo cruento ou incruento, todos viram vida
onde só aparecia morte ou prenúncios desta.
E prosseguiram
sempre nesta novíssima visão das coisas, podendo fazer suas as palavras de São
Paulo, que desde a luz que o cegou para em seguida o iluminar diferente, pôde
descrever-se assim e aos seus incansáveis trabalhos apostólicos: «De bom grado,
portanto, prefiro gloriar-me nas minhas fraquezas, para que habite em mim a
força de Cristo. Por isso me comprazo nas fraquezas, nas afrontas, nas
necessidades, nas perseguições e nas angústias por Cristo. Pois quando sou
fraco, então é que sou forte» (2Cor 12,9-10).
Falar e proceder
deste modo é fruto da fé e das obras que a Ressurreição de Cristo nos oferece.
É outro modo de ver as coisas, que só a fé nos possibilita. Mas tem dois milênios
de magníficas comprovações e continuará conosco, que também “vemos e
acreditamos”!
E continua muito
especialmente com os milhares de jovens que, nacionais ou estrangeiros,
preparam a próxima Jornada Mundial da Juventude. Em um mundo onde há tantos
sinais de morte e desesperança, eles divisam e anunciam a novidade de Cristo,
que definitivamente as ultrapassa. São uma verdadeira oferta pascal da parte do
Ressuscitado, que estou certo ressuscitará a muitos e rejuvenescerá a nossa
Igreja também!
† Manuel, Cardeal-Patriarca
Fonte: Patriarcado de Lisboa.
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