Em 2021 o Papa Francisco instituiu a celebração do
“Dia Mundial dos Avós e dos Idosos” no quarto domingo de julho, próximo da Memória de São Joaquim e Santa
Ana (ou Sant’Ana), no dia 26 de julho.
Aproveitamos a ocasião para trazer uma “pílula litúrgica”
sobre o culto desses dois santos, que a tradição do Oriente e do Ocidente venera
como os pais da Virgem Maria e, portanto, avós de Jesus.
1. As origens da devoção
A Sagrada Escritura não faz nenhuma referência aos pais de
Maria. Os dados que temos sobre Joaquim e Ana provêm da tradição oral e dos
textos apócrifos, particularmente do Protoevangelho
de Tiago.
Esse texto, escrito em grego na metade do século II e atribuído
a Tiago, o “Irmão do Senhor”, é chamado de Protoevangelho
porque narra sobretudo acontecimentos que ocorreram antes do relato dos quatro Evangelhos
canônicos:
- cap. 1-8: o nascimento de Maria e sua apresentação no
Templo;
- cap. 9-16: o casamento de Maria com José, a Anunciação e a
Visitação;
- cap. 17-25: o nascimento de Jesus e a matança dos
inocentes [1].
O texto mescla vários temas do Antigo e do Novo Testamento.
Os próprios nomes de Joaquim e Ana remetem a personagens da primeira aliança:
- Yehoyaqim (que Yahweh eleve) e Yehoiakin
(que Yahweh estabeleça) são dois dos
últimos reis da dinastia davídica;
- Hannah
(graça), por sua vez, é a mãe do profeta Samuel, a quem se atribui um cântico, conhecido
como “o Magnificat do AT” (1Sm 2,1-10).
O Protoevangelho
começa com Joaquim retirando-se para o deserto em oração por quarenta dias
(número simbólico, em alusão ao êxodo), a fim de pedir a Deus o dom de um
filho, enquanto Ana reza de sua casa. O drama da esterilidade é recorrente no
Antigo Testamento, remetendo-nos aqui, por exemplo, aos patriarcas Abraão e
Sara.
Joaquim e Ana recebem então a visita de anjos, os quais
anunciam que suas preces foram ouvidas (fazendo eco aos três anúncios angélicos
de Lc 1–2: a Zacarias, a Maria e aos pastores).
Joaquim então retorna à sua casa e encontra-se com Ana na
porta da cidade. A tradição reconhece a “Porta Dourada” de Jerusalém como sendo
o local desse encontro. Embora alguns autores viram neste encontro a concepção
imaculada da Virgem, a Igreja crê que a concepção de Maria se deu de maneira
natural, isto é, através do ato sexual entre Joaquim e Ana.
O encontro de Joaquim e Ana na Porta Dourada (Giotto - Cappella degli Scrovegni, Pádua) |
A casa de Joaquim e Ana, por sua vez, é identificada junto à
Piscina de Betesda, onde no século V foi construída a igreja de Santa Ana. A
dedicação dessa igreja em 08 de setembro foi a data escolhida para a Festa da Natividade de Maria, nove meses após sua Concepção (celebrada, por conseguinte,
no dia 08 de dezembro).
A menina recebeu o nome de Miryam, Maria (de etimologia incerta,
significando talvez “amada”; é também o nome da irmã de Moisés, que entoa o
núcleo do “cântico do mar” em Ex 15). Aos três anos é apresentada por seus pais no Templo (evento comemorado a 21 de novembro).
A
partir daí não temos mais referências a Joaquim e Ana, que cedem espaço no
relato ao novo casal: Maria e José.
2. A difusão do culto a
Joaquim e Ana no Oriente
Como afirmamos anteriormente, o Protoevangelho de Tiago, principal fonte sobre Joaquim e Ana,
difundiu-se sobretudo no Oriente. Assim, é natural que seu culto tenha se desenvolvido primeiramente entre as igrejas orientais.
No Rito Bizantino há a tradição de celebrar os personagens
de uma festa no dia seguinte, o que Rupert Berger em seu Dicionário de Liturgia chama de “festas associadas” ou “festas
decorrentes” [2]. Assim, os “Santos Joaquim e Ana, os justos, pais da Theótokos” (Mãe de Deus) são celebrados
nesse rito no dia 09 de setembro, logo após a Festa da Natividade de Maria no
dia 08 [3].
Os coptas, isto é, os cristãos do Egito, possuem três festas
em honra de Joaquim e Ana: o transitus
(a morte) de cada um dos dois e o anúncio do nascimento de Maria:
- o transitus de
Ana no dia 11 de Hathor
(correspondente ao dia 07 de novembro no calendário juliano e 20 de novembro no
calendário gregoriano);
- o transitus de
Joaquim no dia 07 de Parmouti (02 de
abril no calendário juliano e 15 de abril no gregoriano);
- e o anúncio do nascimento de Maria no dia 07 de Mesori (31 de julho no calendário
juliano, 13 de agosto no gregoriano) [3].
3. O culto de Santa Ana
no Ocidente
No Ocidente, em contrapartida, o culto a Joaquim e Ana veio
muito mais tarde e de maneira “fragmentada”: Ana, com efeito, foi muito mais
venerada que Joaquim, como demonstra sua ampla presença na arte sacra (sendo comumente retratada junto à Sagrada Família), e como "titular" de várias igrejas.
A devoção a Santa Ana ganhou impulso no século XII, no
contexto das Cruzadas. Entre 1131 e 1138 os cruzados reconstruíram a igreja de
Santa Ana em Jerusalém (que havia sido destruída pelos persas em 614) e,
retornando à Europa, propagaram seu culto.
Ícone da Natividade de Maria Igreja de Santa Ana - Jerusalém |
Em 1481 o Papa Sisto IV (†1484) permitiu a recitação do
Ofício em honra de Santa Ana no dia 26 de julho. Esta data teria sido escolhida
em referência à dedicação de uma igreja em sua honra em Constantinopla no tempo
do Imperador Justiniano I (†565) ou de uma transladação de suas supostas
relíquias de Jerusalém para Constantinopla em 710. Nesse sentido, os siríacos
celebram Joaquim e Ana no dia 25 de julho.
A festa de Santa Ana, porém, só seria instituída para toda a
Igreja de Rito Romano em 1584, por decreto do Papa Gregório XIII (†1585), poucos
anos após a promulgação do Missale
Romanum (1570).
4. O culto de São
Joaquim no Ocidente
Como afirmamos anteriormente, o culto a São Joaquim no
Ocidente é bem mais “discreto” do que aquele tributado à sua esposa.
Além disso, a data da sua celebração oscilou algumas vezes
desde o século XVI: em 1510 o Papa Júlio II (†1513) inseriu a memória de São
Joaquim no dia 20 de março, entre as festas de São José (dia 19) e da
Anunciação (dia 25). Porém, no contexto da reforma litúrgica do Concílio de
Trento (1545-1563) essa celebração foi suprimida.
Gregório XV (†1623) recuperou a celebração de 20 de março em
1622. Cerca de cem anos depois, em 1738, Clemente XII (†1740) a transferiu para o domingo
seguinte à Solenidade da Assunção de Maria, celebrada no dia 15 de agosto.
Na reforma litúrgica realizada pelo Papa São Pio X (†1914),
no intuito de recuperar a centralidade do domingo, a festa foi transferida
para o dia seguinte à Assunção, isto é, 16 de agosto, como uma “festa
associada”.
5. A reforma do Concílio
Vaticano II: “E serão uma só carne” (Gn
2,24)
Após Rito Romano fazer o pobre Joaquim “passear” pelo Calendário, a
reforma litúrgica do Concílio Vaticano II o uniu novamente à sua
esposa: desde a promulgação do novo Calendário Romano (1969), São Joaquim e
Santa Ana são celebrados juntos no dia 26 de julho, com grau de Memória
Obrigatória.
Segundo testemunha Enzo Lodi, as orações da nova Memória
provêm do Missale Parisiense de 1738.
As três orações presidenciais (eucologia menor) de certa forma compõem um crescendo:
- a oração do dia centra-se em Joaquim e Ana, destacando a
“graça” que Deus lhes concedeu (hanc
grátiam contulísti);
- a oração sobre as oferendas estende o olhar para todo o
povo de Israel, recordando a bênção prometida “a Abraão e sua descendência” (quam Abrahae et eius sémini promisísti);
- a oração após a Comunhão, por fim, abre o horizonte para
toda a humanidade, pois Deus quis que seu Filho “nascesse da família humana” (Deus, qui Unigénitum tuum ex homínibus nasci
voluísti) [5].
Há também leituras próprias para a celebração [6], algo
digno de nota, uma vez que para as Memórias dos santos geralmente tomam-se as
leituras do dia, conforme o tempo litúrgico, ou dos Comuns dos Santos (dos Mártires, dos Pastores,
das Virgens, etc.).
Para a Liturgia das Horas são indicados dois hinos, um para
as Laudes (centrado em Ana) e outro para as Vésperas e o Ofício das Leituras
(centrado em Joaquim):
O encontro de Joaquim e Ana na Porta Dourada (Juan de Borgoña - Sala Capitular da Catedral de Toledo, Espanha) |
Notas:
[1] Proto-Evangelho de
Tiago. in: PROENÇA, Eduardo de
(Org.) Apócrifos e pseudo-epígrafos da
Bíblia, v. I. São Paulo: Fonte Editorial, 2005, pp. 519-530.
[2] BERGER, Rupert. Festa
associada. in: Dicionário de Liturgia Pastoral: Obra de consulta sobre todas as
questões referentes à Liturgia. São Paulo: Loyola, 2010, pp. 165-166.
[3] DONADEO, Madre Maria. O Ano Litúrgico Bizantino. São Paulo: Ave Maria, 1998, p. 132.
[4] Daily Coptic
Synaxarium. Disponível em: St. Takla: Coptic Orthodox Church Heritage.
[5] A atual tradução oficial para o Brasil é “uma família humana”. O mais
correto, porém, seria “a família humana”, em sentido amplo (cf. MISSAL ROMANO. Tradução portuguesa para o Brasil da 2ª edição típica. São Paulo:
Paulus, 1991, pp. 621-622).
[6] Eclo 44,1.10-15; Sl 131,11.13-14.17-18 (R: Lc
1,32a); Mt 13,16-17.
Referências:
HOLWECK, Frederick. St.
Anne. The Catholic Encyclopedia, vol. 1, 1907. Disponível em: New Advent.
LODI, Enzo. Os Santos
do Calendário Romano: Rezar com os Santos na Liturgia. São Paulo: Paulus,
1992, pp. 273-275.
SCHUSTER, Cardeal Alfredo Ildefonso. Liber Sacramentorum, vol. VIII: Le
Feste dei Santi dall'ottava dei Principi degli Apostoli alla Dedicazione di S.
Michele. Torino-Roma: Marietti, 1932, pp. 103-105 (Sant’Anna); pp. 187-189 (San
Gioacchino).
SOUVAY, Charles. St.
Joachim. The Catholic Encyclopedia,
vol. 8, 1910. Disponível em: New Advent.
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