Quase concluindo a segunda seção das suas Catequeses sobre a oração, dedicada à oração na vida de Jesus, o Papa Bento XVI proferiu duas meditações sobre as suas “palavras” na Cruz. Nesta postagem trazemos a primeira parte dessa reflexão, centrada nos Evangelhos de Marcos e Mateus.
Para acessar a postagem com o índice de todo o ciclo de Catequeses sobre a oração, clique aqui.
Papa Bento XVI
Audiência Geral
Quarta-feira, 08 de fevereiro de 2012
A oração (26):
A oração de Jesus diante da morte (Marcos e Mateus)
Queridos irmãos e irmãs,
Hoje gostaria de
meditar convosco sobre a oração de Jesus na iminência da morte, detendo-me sobre
aquilo que nos referem São Marcos e São Mateus. Os dois evangelistas mencionam
a oração de Jesus moribundo não só na língua grega, na qual está escrita a sua narração,
mas, pela importância destas palavras, também em uma mistura de hebraico e
aramaico. Deste modo, eles transmitiram não só o conteúdo, mas até o som que
tal oração teve nos lábios de Jesus: ouvimos realmente as palavras de Jesus
como eram. Ao mesmo tempo, eles descreveram-nos a atitude de quantos estavam
presentes na crucificação, que não entenderam - ou não queriam entender - esta
prece.
Cristo Crucificado (Anthony Van Dyck) |
Como ouvimos, São
Marcos escreve: «Quando chegou o meio-dia, houve escuridão sobre toda a terra,
até as três horas da tarde. Pelas três da tarde, Jesus gritou com voz forte: “Eloi,
Eloi, lama sabactâni?”, que quer dizer: “Meu Deus, meu Deus, por que me
abandonaste?”» (Mc 15,33-34). Na estrutura desta narração a prece, o
clamor de Jesus eleva-se no final das três horas de trevas que, do meio-dia às
três horas da tarde, desceram sobre toda a terra. Estas três horas de escuridão
são, por sua vez, a continuação de um precedente espaço de tempo, também de
três horas, começado com a crucificação de Jesus. Com efeito, o evangelista
Marcos informa-nos que: «Eram nove horas da manhã quando o crucificaram» (Mc
15,25). Do conjunto das indicações horárias da narração, as seis horas de Jesus
na cruz são subdivididas em duas partes cronologicamente equivalentes.
Nas primeiras
três horas, das nove ao meio-dia, inserem-se os escárnios de vários grupos de
pessoas, que mostram o seu ceticismo, afirmam que não acreditam. São Marcos
escreve: «Os que ali passavam o insultavam» (Mc 15,29); «Do mesmo modo,
os sumos sacerdotes, com os mestres da Lei, zombavam» (v. 31); «Os que foram
crucificados com ele também o insultavam» (v. 32). Nas três horas seguintes, do
meio-dia «até as três horas da tarde», o evangelista fala somente das trevas
que desceram sobre toda a terra; a escuridão ocupa sozinha toda a cena, sem
qualquer referência a movimentos de personagens ou a palavras. À medida que
Jesus se aproxima sempre mais da morte, há só a escuridão que desce «sobre toda
a terra». Até o cosmos participa neste acontecimento: a escuridão
envolve pessoas e coisas, mas inclusive neste momento de trevas Deus está
presente, não abandona. Na tradição bíblica, a escuridão tem um significado
ambivalente: é sinal da presença e da obra do mal, mas também de uma misteriosa
presença e ação de Deus, que é capaz de vencer todas as trevas. No Livro do Êxodo, por exemplo, lemos: «E o
Senhor falou a Moisés: “Virei a ti numa nuvem escura...”» (Ex 19,9); e
ainda: «O povo mantinha-se à distância, enquanto Moisés se aproximou da nuvem escura
onde Deus estava» (Ex 20,21). E nos discursos do Deuteronômio, Moisés narra: «E eis que o monte era abrasado por um
fogo que subia até às alturas do céu, onde havia trevas, nuvens e escuridão» (Dt
4,11); vós, «depois que ouvistes a voz que saía do meio das trevas, vistes o
monte arder em fogo» (Dt 5,23). Na cena da crucificação de Jesus, as
trevas envolvem a terra e são as trevas da morte na qual o Filho de Deus se
imerge para trazer a vida, com o seu gesto de amor.
Voltando à
narração de São Marcos, diante dos insultos das várias categorias de pessoas,
perante a escuridão que desce sobre tudo no momento em que se encontra diante da
morte, Jesus com o grito da sua oração mostra que, juntamente com o peso do
sofrimento e da morte na qual parece haver abandono, ausência de Deus, Ele tem
a plena certeza da proximidade do Pai, que aprova este gesto supremo de amor,
de dom total de Si, embora não se ouça, como em outros momentos, a voz do alto.
Lendo os Evangelhos, nos damos conta de que em outros trechos importantes da
sua existência terrena Jesus tinha visto associar-se aos sinais da presença do
Pai e da aprovação ao seu caminho de amor também a voz esclarecedora de Deus.
Assim, na vicissitude que se segue ao batismo no Jordão, ao abrirem-se os céus,
ouviu-se a palavra do Pai: «Tu és o meu Filho amado, em ti ponho meu bem-querer»
(Mc 1,11). Depois, na transfiguração,
o sinal da nuvem era acompanhado pela expressão: «Este é o meu Filho amado.
Escutai o que Ele diz!» (Mc 9,7).
Contudo, ao aproximar-se a morte do Crucificado, desce o silêncio, não se ouve
voz alguma, mas o olhar de amor do Pai permanece fixo no dom de amor do Filho.
Mas que significado
tem a oração de Jesus, aquele grito que Ele lança ao Pai: «Meu Deus, meu Deus,
por que me abandonaste?»? Seria a dúvida da sua missão, da presença do Pai?
Nesta oração não há, porventura, precisamente a consciência de ter sido
abandonado? As palavras que Jesus dirige ao Pai são o início do Salmo 21 (22), no
qual o salmista manifesta a Deus a tensão entre o sentir-se abandonado e a
consciência certa da presença de Deus no meio do seu povo. O salmista reza: «Ó
meu Deus, clamo de dia e não me ouvis, clamo de noite e para mim não há
resposta! Vós, no entanto, sois o santo em vosso Templo, que habitais entre os
louvores de Israel» (vv. 3-4). O salmista fala de «clamor», de «grito» para expressar
todo o sofrimento da sua oração diante de Deus, aparentemente ausente: no
momento de angústia, a prece torna-se um grito.
E isto acontece
também na nossa relação com o Senhor: perante as situações mais difíceis e
dolorosas, quando parece que Deus não ouve, não devemos ter medo de confiar a
Ele todo o peso que levamos no nosso coração, não devemos ter medo de gritar a
Ele o nosso sofrimento: estejamos convictos de que Deus está próximo, embora
aparentemente esteja calado.
Repetindo da
cruz precisamente as palavras iniciais do Salmo - «Eli, Eli, lamá sabactâni?»
- «Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?» (Mt 27,46), clamando com as palavras do Salmo, Jesus reza no momento
da última rejeição dos homens, na hora do abandono; mas reza com o Salmo, na
consciência da presença de Deus Pai também naquela hora em que sente o drama
humano da morte. Mas em nós surge uma pergunta: como é possível que um Deus tão
poderoso não intervenha para subtrair o seu Filho a esta prova terrível? É
importante compreender que a prece de Jesus não é um grito de quem vai ao
encontro da morte com o desespero, e nem sequer de quem sabe que foi abandonado.
Nesse momento, Jesus faz seu todo o Salmo 21, o Salmo do povo de Israel que
sofre, e deste modo assume sobre Si não só o sofrimento do seu povo, mas também
o de todos os homens que padecem pela opressão do mal e, ao mesmo tempo, leva
tudo isto ao Coração do próprio Deus, na certeza de que o seu clamor será
atendido na Ressurreição: «O grito no tormento extremo é ao mesmo tempo certeza
da resposta divina, certeza da salvação - não só para o próprio Jesus, mas para
“muitos”» (Jesus de Nazaré, vol. II, Planeta, 2011, p. 195). Esta
oração de Jesus contém a extrema confiança e o abandono nas mãos de Deus, mesmo
quando parece ausente, mesmo quando parece permanecer em silêncio, seguindo um
desígnio que nos é incompreensível. No Catecismo da Igreja Católica lemos assim:
«No amor redentor que constantemente O unia ao Pai, Jesus assumiu-nos no
afastamento do nosso pecado em relação a Deus a ponto de, na cruz, poder dizer
em nosso nome: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”» (n. 603). O seu
sofrimento é um sofrer em comunhão conosco e por nós, que deriva do amor e já
contém em si a redenção, a vitória do amor.
As pessoas
presentes aos pés da cruz de Jesus não conseguem compreender e pensam que o seu
grito é uma súplica dirigida a Elias. Em uma cena agitada, elas procuram saciar
a sede dele para lhe prolongar a vida e verificar se verdadeiramente Elias vem
em seu socorro, mas um forte grito põe termo à vida terrena de Jesus e ao
desejo delas. No momento extremo, Jesus deixa que o seu Coração exprima a dor,
mas, ao mesmo tempo, deixa sobressair o sentido da presença do Pai e o consenso
ao seu desígnio de salvação da humanidade. Também nós estamos sempre e
novamente diante do «hoje» do sofrimento, do silêncio de Deus - manifestamo-lo
tantas vezes na nossa oração - mas encontramo-nos também perante o «hoje» da
Ressurreição, da resposta de Deus que assumiu sobre Si os nossos sofrimentos,
para carregá-los juntamente conosco e para nos incutir a esperança firme de que
serão vencidos (cf. Encíclica Spe salvi, nn. 35-40).
Caros amigos, na
oração levamos a Deus as nossas cruzes diárias, na certeza de que Ele está
presente e nos ouve. O grito de Jesus recorda-nos que na oração devemos superar
as barreiras do nosso «eu» e dos nossos problemas, e abrir-nos às necessidades
e sofrimentos do próximo. A oração de Jesus agonizante na Cruz ensina-nos a
orar com amor pelos numerosos irmãos e irmãs que sentem o peso da vida
quotidiana, que vivem momentos difíceis, que estão na dor, que não recebem uma
palavra de conforto; levemos tudo isto ao Coração de Deus, para que também eles
possam sentir o amor de Deus que nunca nos abandona.
O Papa apresenta a cruz à veneração (Sexta-feira Santa 2008) |
Fonte: Santa Sé.
Nenhum comentário:
Postar um comentário