segunda-feira, 3 de abril de 2023

Catequese do Papa Bento XVI: A oração (26)

Quase concluindo a segunda seção das suas Catequeses sobre a oração, dedicada à oração na vida de Jesus, o Papa Bento XVI proferiu duas meditações sobre as suas “palavras” na Cruz. Nesta postagem trazemos a primeira parte dessa reflexão, centrada nos Evangelhos de Marcos e Mateus. 

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Papa Bento XVI
Audiência Geral
Quarta-feira, 08 de fevereiro de 2012
A oração (26):
A oração de Jesus diante da morte (Marcos e Mateus)

Queridos irmãos e irmãs,
Hoje gostaria de meditar convosco sobre a oração de Jesus na iminência da morte, detendo-me sobre aquilo que nos referem São Marcos e São Mateus. Os dois evangelistas mencionam a oração de Jesus moribundo não só na língua grega, na qual está escrita a sua narração, mas, pela importância destas palavras, também em uma mistura de hebraico e aramaico. Deste modo, eles transmitiram não só o conteúdo, mas até o som que tal oração teve nos lábios de Jesus: ouvimos realmente as palavras de Jesus como eram. Ao mesmo tempo, eles descreveram-nos a atitude de quantos estavam presentes na crucificação, que não entenderam - ou não queriam entender - esta prece.

Cristo Crucificado (Anthony Van Dyck)

Como ouvimos, São Marcos escreve: «Quando chegou o meio-dia, houve escuridão sobre toda a terra, até as três horas da tarde. Pelas três da tarde, Jesus gritou com voz forte: “Eloi, Eloi, lama sabactâni?”, que quer dizer: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”» (Mc 15,33-34). Na estrutura desta narração a prece, o clamor de Jesus eleva-se no final das três horas de trevas que, do meio-dia às três horas da tarde, desceram sobre toda a terra. Estas três horas de escuridão são, por sua vez, a continuação de um precedente espaço de tempo, também de três horas, começado com a crucificação de Jesus. Com efeito, o evangelista Marcos informa-nos que: «Eram nove horas da manhã quando o crucificaram» (Mc 15,25). Do conjunto das indicações horárias da narração, as seis horas de Jesus na cruz são subdivididas em duas partes cronologicamente equivalentes.

Nas primeiras três horas, das nove ao meio-dia, inserem-se os escárnios de vários grupos de pessoas, que mostram o seu ceticismo, afirmam que não acreditam. São Marcos escreve: «Os que ali passavam o insultavam» (Mc 15,29); «Do mesmo modo, os sumos sacerdotes, com os mestres da Lei, zombavam» (v. 31); «Os que foram crucificados com ele também o insultavam» (v. 32). Nas três horas seguintes, do meio-dia «até as três horas da tarde», o evangelista fala somente das trevas que desceram sobre toda a terra; a escuridão ocupa sozinha toda a cena, sem qualquer referência a movimentos de personagens ou a palavras. À medida que Jesus se aproxima sempre mais da morte, há só a escuridão que desce «sobre toda a terra». Até o cosmos participa neste acontecimento: a escuridão envolve pessoas e coisas, mas inclusive neste momento de trevas Deus está presente, não abandona. Na tradição bíblica, a escuridão tem um significado ambivalente: é sinal da presença e da obra do mal, mas também de uma misteriosa presença e ação de Deus, que é capaz de vencer todas as trevas. No Livro do Êxodo, por exemplo, lemos: «E o Senhor falou a Moisés: “Virei a ti numa nuvem escura...”» (Ex 19,9); e ainda: «O povo mantinha-se à distância, enquanto Moisés se aproximou da nuvem escura onde Deus estava» (Ex 20,21). E nos discursos do Deuteronômio, Moisés narra: «E eis que o monte era abrasado por um fogo que subia até às alturas do céu, onde havia trevas, nuvens e escuridão» (Dt 4,11); vós, «depois que ouvistes a voz que saía do meio das trevas, vistes o monte arder em fogo» (Dt 5,23). Na cena da crucificação de Jesus, as trevas envolvem a terra e são as trevas da morte na qual o Filho de Deus se imerge para trazer a vida, com o seu gesto de amor.

Voltando à narração de São Marcos, diante dos insultos das várias categorias de pessoas, perante a escuridão que desce sobre tudo no momento em que se encontra diante da morte, Jesus com o grito da sua oração mostra que, juntamente com o peso do sofrimento e da morte na qual parece haver abandono, ausência de Deus, Ele tem a plena certeza da proximidade do Pai, que aprova este gesto supremo de amor, de dom total de Si, embora não se ouça, como em outros momentos, a voz do alto. Lendo os Evangelhos, nos damos conta de que em outros trechos importantes da sua existência terrena Jesus tinha visto associar-se aos sinais da presença do Pai e da aprovação ao seu caminho de amor também a voz esclarecedora de Deus. Assim, na vicissitude que se segue ao batismo no Jordão, ao abrirem-se os céus, ouviu-se a palavra do Pai: «Tu és o meu Filho amado, em ti ponho meu bem-querer» (Mc 1,11). Depois, na transfiguração, o sinal da nuvem era acompanhado pela expressão: «Este é o meu Filho amado. Escutai o que Ele diz!» (Mc 9,7). Contudo, ao aproximar-se a morte do Crucificado, desce o silêncio, não se ouve voz alguma, mas o olhar de amor do Pai permanece fixo no dom de amor do Filho.

Mas que significado tem a oração de Jesus, aquele grito que Ele lança ao Pai: «Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?»? Seria a dúvida da sua missão, da presença do Pai? Nesta oração não há, porventura, precisamente a consciência de ter sido abandonado? As palavras que Jesus dirige ao Pai são o início do Salmo 21 (22), no qual o salmista manifesta a Deus a tensão entre o sentir-se abandonado e a consciência certa da presença de Deus no meio do seu povo. O salmista reza: «Ó meu Deus, clamo de dia e não me ouvis, clamo de noite e para mim não há resposta! Vós, no entanto, sois o santo em vosso Templo, que habitais entre os louvores de Israel» (vv. 3-4). O salmista fala de «clamor», de «grito» para expressar todo o sofrimento da sua oração diante de Deus, aparentemente ausente: no momento de angústia, a prece torna-se um grito.

E isto acontece também na nossa relação com o Senhor: perante as situações mais difíceis e dolorosas, quando parece que Deus não ouve, não devemos ter medo de confiar a Ele todo o peso que levamos no nosso coração, não devemos ter medo de gritar a Ele o nosso sofrimento: estejamos convictos de que Deus está próximo, embora aparentemente esteja calado.

Repetindo da cruz precisamente as palavras iniciais do Salmo - «Eli, Eli, lamá sabactâni?» - «Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?» (Mt 27,46), clamando com as palavras do Salmo, Jesus reza no momento da última rejeição dos homens, na hora do abandono; mas reza com o Salmo, na consciência da presença de Deus Pai também naquela hora em que sente o drama humano da morte. Mas em nós surge uma pergunta: como é possível que um Deus tão poderoso não intervenha para subtrair o seu Filho a esta prova terrível? É importante compreender que a prece de Jesus não é um grito de quem vai ao encontro da morte com o desespero, e nem sequer de quem sabe que foi abandonado. Nesse momento, Jesus faz seu todo o Salmo 21, o Salmo do povo de Israel que sofre, e deste modo assume sobre Si não só o sofrimento do seu povo, mas também o de todos os homens que padecem pela opressão do mal e, ao mesmo tempo, leva tudo isto ao Coração do próprio Deus, na certeza de que o seu clamor será atendido na Ressurreição: «O grito no tormento extremo é ao mesmo tempo certeza da resposta divina, certeza da salvação - não só para o próprio Jesus, mas para “muitos”» (Jesus de Nazaré, vol. II, Planeta, 2011, p. 195). Esta oração de Jesus contém a extrema confiança e o abandono nas mãos de Deus, mesmo quando parece ausente, mesmo quando parece permanecer em silêncio, seguindo um desígnio que nos é incompreensível. No Catecismo da Igreja Católica lemos assim: «No amor redentor que constantemente O unia ao Pai, Jesus assumiu-nos no afastamento do nosso pecado em relação a Deus a ponto de, na cruz, poder dizer em nosso nome: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”» (n. 603). O seu sofrimento é um sofrer em comunhão conosco e por nós, que deriva do amor e já contém em si a redenção, a vitória do amor.

As pessoas presentes aos pés da cruz de Jesus não conseguem compreender e pensam que o seu grito é uma súplica dirigida a Elias. Em uma cena agitada, elas procuram saciar a sede dele para lhe prolongar a vida e verificar se verdadeiramente Elias vem em seu socorro, mas um forte grito põe termo à vida terrena de Jesus e ao desejo delas. No momento extremo, Jesus deixa que o seu Coração exprima a dor, mas, ao mesmo tempo, deixa sobressair o sentido da presença do Pai e o consenso ao seu desígnio de salvação da humanidade. Também nós estamos sempre e novamente diante do «hoje» do sofrimento, do silêncio de Deus - manifestamo-lo tantas vezes na nossa oração - mas encontramo-nos também perante o «hoje» da Ressurreição, da resposta de Deus que assumiu sobre Si os nossos sofrimentos, para carregá-los juntamente conosco e para nos incutir a esperança firme de que serão vencidos (cf. Encíclica Spe salvi, nn. 35-40).

Caros amigos, na oração levamos a Deus as nossas cruzes diárias, na certeza de que Ele está presente e nos ouve. O grito de Jesus recorda-nos que na oração devemos superar as barreiras do nosso «eu» e dos nossos problemas, e abrir-nos às necessidades e sofrimentos do próximo. A oração de Jesus agonizante na Cruz ensina-nos a orar com amor pelos numerosos irmãos e irmãs que sentem o peso da vida quotidiana, que vivem momentos difíceis, que estão na dor, que não recebem uma palavra de conforto; levemos tudo isto ao Coração de Deus, para que também eles possam sentir o amor de Deus que nunca nos abandona.

O Papa apresenta a cruz à veneração
(Sexta-feira Santa 2008)

Fonte: Santa Sé.

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