Cardeal Raniero Cantalamessa, OFMCap
Homilia na Celebração da Paixão do Senhor
07 de abril de 2023
Anunciamos, Senhor, a vossa Morte!
Há dois mil anos a Igreja anuncia e celebra, neste dia, a Morte
do Filho de Deus na cruz. A cada Missa, após a consagração, ela proclama:
“Anunciamos, Senhor, a vossa Morte e proclamamos a vossa Ressurreição. Vinde,
Senhor Jesus!”.
Outra morte de Deus, porém, é proclamada há um século e
meio, e hoje, em nosso mundo ocidental descristianizado. Quando, no âmbito da
cultura, fala-se da “morte de Deus”, é esta outra morte de Deus - ideológica,
não histórica - que se entende. Alguns teólogos, para não permanecer atrás em
relação aos tempos, apressam-se em construir sobre ela uma teologia: “A
teologia da morte de Deus”.
Não podemos fingir ignorar a existência desta narrativa
diversa sem deixar desconfiados tantos fiéis. Esta morte diversa de Deus
encontrou a sua perfeita expressão no conhecido anúncio que Nietzsche põe na
boca do “homem louco”, que chega sem fôlego à praça da cidade:
Para onde foi Deus? - exclamou. É o que vou dizer. Nós o
matamos - vocês e eu!... nunca houve ação mais grandiosa e aqueles que nascerem
depois de nós pertencerão, por causa dela, a uma história mais elevada do que o
foi alguma vez toda essa história [1].
Na lógica destas palavras - e, creio eu, nas expectativas de
seu autor -, estava o fato de que, depois dele, a história não seria mais
dividida em antes de Cristo e depois de Cristo, mas em antes de Nietzsche e
depois de Nietzsche. Aparentemente não é o “nada” que é colocado no lugar de
Deus, mas o homem, e, mais precisamente, o “super-homem”, o “além-homem”. Deste
novo homem, deve-se exclamar então - com um sentimento de satisfação e orgulho,
não mais de compaixão: “Ecce homo!”: Eis o verdadeiro homem! [2]. Não demorará, contudo, a se dar conta de que, ao
ficar só, o homem não é nada.
Que fizemos quando desprendemos esta terra da corrente que a
ligava ao sol? Para onde vai agora? Para onde vamos nós? Longe de todos os
sóis? Não estamos incessantemente caindo? Para diante, para trás, para o lado,
para todos os lados? Haverá ainda um acima e um abaixo? Não estaremos errando como
em um nada infinito?
A resposta tácita e reconfortante do “homem louco” a estas
perguntas é: “Não, não erraremos em um nada infinito, porque o homem
desempenhará, ele mesmo, a tarefa até agora designada a Deus!”. A nossa
resposta de crentes, ao contrário, é: “Sim, e é exatamente o que aconteceu e o
que está acontecendo! Estamos errando como em um nada infinito”. É
significativo que, justamente no rastro do autor daquele anúncio, chegou-se a
definir a existência humana um “ser-para-a-morte” e a considerar todas as
supostas possibilidades do homem como “nulidade em partida” [3].
“Além do bem e do mal”, foi um outro grito de guerra do filósofo! [4]; mas além do bem e do mal há apenas “a vontade de
potência”, e nós sabemos aonde ela conduz...
Não nos é lícito julgar o coração de um homem que somente
Deus conhece. Também o autor daquele anúncio teve a sua parte de sofrimento na
vida, e o sofrimento une a Cristo talvez mais do que as invectivas separem d’Ele.
A oração de Jesus na cruz: “Pai, perdoa-lhes! Eles não sabem o que fazem!” (Lc
23,34), não foi pronunciada apenas por aqueles que estavam presentes naquele
dia no Calvário!
Volta-me à mente uma imagem que, às vezes, tenho observado
ao vivo (e que espero que tenha se tornado uma realidade, no meio-tempo, para o
autor daquele anúncio!): uma criança, furiosa, tenta golpear o próprio pai com
socos e arranhões no rosto, até que, esgotadas as forças, cai chorando nos
braços daquele que o acalma e o aperta ao peito.
Não julgamos - repito - a pessoa, que só Deus conhece. A
consequência, porém, que aquele seu anúncio teve, esta sim, podemos e devemos
julgar. Ela foi declinada nos modos e com os mais diversos nomes, até se tornar
uma moda, uma atmosfera que se respira nos ambientes intelectuais do Ocidente
“pós-moderno”. O denominador comum a todas estas diversas declinações é o total
relativismo em todo campo: ética, linguagem, filosofia, arte e, naturalmente,
religião. Nada mais é sólido; tudo é líquido, ou mesmo gasoso. Na época do
romantismo, deleitava-se na melancolia; hoje, no niilismo.
Como crentes, é nosso dever mostrar o que está por trás ou
sob aquele anúncio, isto é, a trepidação de uma antiga chama, a erupção
repentina de um vulcão jamais extinto desde o início do mundo. O drama humano
teve, também ele, o seu “prólogo no céu”, naquele “espírito da negação” que não
aceitou existir na graça de um outro. Desde então, ele não faz outra coisa senão
recrutar apoiadores da sua causa, primeiros dos quais, os ingênuos Adão e Eva: “Sereis
como Deus, conhecedores do bem e do mal!” (Gn 3,5).
Para o homem moderno, tudo isso não parece mais do que um
mito etiológico para explicar o mal do mundo. E - no sentido positivo que hoje
se dá ao mito - assim ele é na realidade! Mas a história, a literatura e a
nossa própria experiência pessoal nos dizem que, por trás deste “mito”, há uma
verdade transcendente que nenhuma narrativa histórica ou raciocínio filosófico poderia
nos transmitir.
Deus conhece nosso orgulho e veio ao nosso encontro,
aniquilando-se, ele primeiro, diante de nossos olhos.
“Cristo Jesus, existindo em forma divina, não considerou
um privilégio ser igual a Deus,
Mas esvaziou-se, assumindo a forma de servo e tornando-se
semelhante ao ser humano.
E encontrado em aspecto humano, humilhou-se, fazendo-se
obediente até a morte – e morte de cruz!” (Fl 2,6-8).
“Deus? Nós o matamos - vocês e eu!”. Esta
coisa tremenda se realizou, de fato, uma vez na história humana, mas em sentido
bem diferente daquele bradado pelo “homem louco”. Porque é verdade, irmãos e
irmãs: fomos nós - vocês e eu - que matamos Jesus de Nazaré! Ele morreu pelos
nossos pecados e também pelos de todo o mundo (1Jo 2,2). Mas a sua Ressurreição
assegura-nos que este caminho não conduz à derrota mas, graças ao nosso
arrependimento, conduz àquela “apoteose da vida”, em vão buscada em outros
lugares.
Por que falar disto em uma Liturgia da Sexta-feira Santa?
Não para convencer os ateus de que Deus não está morto! Os mais célebres dentre
eles descobriram-no por conta própria, no momento em que fecharam os olhos à
luz - antes, às trevas - deste mundo. Quanto àqueles dentre eles que ainda
estão em vida, para convencê-los são necessários outros meios, mais do que as
palavras de um velho pregador. Meios que o Senhor não deixará faltar a quem tem
o coração aberto à verdade, como pediremos a Deus na Oração Universal a seguir.
Não, o verdadeiro objetivo é preservar os crentes - quem
sabe, talvez apenas alguns estudantes universitários - de serem atraídos para
dentro deste vórtice do niilismo, que é o verdadeiro “buraco negro” do universo
espiritual; fazer ressoar entre nós a admoestação sempre atual do nosso Dante
Alighieri:
“Tornai mais grave, cristãos, vosso mover;
Não sejais como pluma a qualquer vento,
Confiando que vos lave água qualquer” [5].
Continuemos, Veneráveis Padres, irmãos e irmãs, a repetir,
mais convictos do que nunca, as palavras que proclamamos a cada Missa: “Anunciamos, Senhor, a vossa Morte e proclamamos a vossa Ressurreição. Vinde, Senhor Jesus!”.
Notas:
[1] cf. Friedrich Nietzsche, A
Gaia Ciência, n. 125.
[2] cf. idem, Ecce
homo, 1888.
[3] cf. Martin Heidegger, Ser
e tempo, seção II, cap. 2-3.
[4] cf.
Friedrich Nietzsche, Jenseits von Gut und Böse, Leipzig, 1886.
[5] Paraíso, V,
73-75.
Fonte: Vatican News.
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