sexta-feira, 13 de maio de 2016

A história da Solenidade de Pentecostes

“Quando chegou o dia de Pentecostes... todos ficaram cheios do Espírito Santo” (At 2,1.4).

Enquanto a tradição joanina situa a efusão do Espírito Santo sobre os Apóstolos na tarde do Domingo de Páscoa (Jo 20,19-23), a tradição lucana a conecta à festa judaica de Pentecostes, celebrada 50 dias após a Páscoa (At 2,1-11). Nesta postagem gostaríamos de traçar uma breve história da celebração desse mistério.

Pentecostes (Jean II Restout)

1. As origens judaicas da festa de Pentecostes

Assim como a Páscoa (Pessach), Pentecostes era originalmente uma festa agrícola, em ação de graças pelas primícias da colheita (cf. Ex 34,22; Lv 23,15-21), que posteriormente adquiriu um significado teológico, associado à aliança do Sinai, com a entrega da Lei, isto é, dos Dez Mandamentos (cf. Ex 19,1–20,21).

A relação entre as duas festas é expressa pelo próprio nome: Pentecostes significa literalmente em grego o “quinquagésimo” (Πεντηκοστή), isto é, o 50º dia após a Páscoa. Em hebraico, por sua vez, a festa é denominada Shavuot, “Semanas”.

Entre Pessach e Shavuot, com efeito, decorre uma “semana de semanas” (7x7), destacando-se aqui o simbolismo bíblico do número 7, associado à criação (cf. Gn 1,1–2,4a), culminando no 50º dia [1].

Na tradição cristã, por sua vez, destaca-se também o simbolismo do número 8, associado à nova criação realizada em Cristo: assim, o Tempo Pascal é uma grande “oitava” de domingos, que é ao mesmo tempo o 1º e o 8º dia.

Para saber mais, confira a Carta Apostólica Dies Domini do Papa São João Paulo II clicando aqui.

2. A celebração de Pentecostes nos primeiros séculos

Com efeito, a “pedra fundamental” da Liturgia dos primeiros cristãos era a celebração do domingo, o “dia do Senhor”, a “Páscoa semanal”. A partir do século II, por sua vez, começa a celebrar-se a “Páscoa anual”, no domingo após a primeira lua cheia da primavera no hemisfério norte.

Logo essa celebração da Páscoa anual começa a ser estendida por cinquenta dias (Quinquagesima paschalis), como testemunham alguns autores do início do século III, como Tertuliano (†220) ou Orígenes (†253).

Pentecostes (Duccio di Buoninsegna)

Vale destacar que nesse período o Pentecostes não era considerado como uma festa isolada em honra ao Espírito Santo, desconectada da Páscoa, mas sim como a conclusão natural da cinquentena pascal.

Não obstante, uma vez que era o último dia da festa, logo o Domingo de Pentecostes passou a ser particularmente solenizado em honra da efusão do Espírito Santo sobre os Apóstolos e do início da missão da Igreja.

A peregrina Etéria (ou Egéria) que visitou Jerusalém no final do século IV, testemunhou em seu Diário de viagem a Liturgia desse dia: além da Missa dominical pela manhã na Basílica do Santo Sepulcro e das celebrações em honra da Ascensão do Senhor na parte da tarde, destacava-se a Missa às 9h no Cenáculo, sobre o monte Sião:

“Todo o povo, sem exceção, com hinos, conduz o bispo a Sião, para que se esteja em Sião à terceira hora (nove horas) em ponto. Ao chegar lá, lê-se o passo dos Actos dos Apóstolos em que o Espírito desceu, para que se entendesse o que todas as línguas diziam; a seguir celebra-se a Missa da maneira habitual” [2].

As homilias dos Santos Padres dos séculos IV e V atestam a importância que a festa logo adquiriu tanto no Oriente como no Ocidente: Ambrósio (†397), João Crisóstomo (†407), Máximo de Turim (†420), Agostinho (†430), Leão Magno (†461)...

A Vigília de Pentecostes

A partir do século IV, sobretudo no Ocidente, na Vigília de Pentecostes são conferidos os sacramentos da Iniciação Cristã aos catecúmenos que por alguma razão não puderam ser batizados na Vigília Pascal. Tal costume é atestado, por exemplo, pelas homilias de Santo Agostinho e de São Leão Magno.

Escultura do Espírito Santo representado como pomba
(Batistério da Basílica do Latrão - Roma)

Logo se desenvolveu para essa Vigília, celebrada na noite do sábado, uma estrutura análoga à da Vigília Pascal (à exceção da Liturgia da luz), como testemunham os Sacramentários Gelasiano (séc. VII-VIII) e Gregoriano (séc. VIII):
- quatro leituras do Antigo Testamento (AT), intercaladas por cânticos e orações;
- bênção da fonte batismal, como na Vigília Pascal, Batismo e Confirmação dos catecúmenos;
- celebração da Eucaristia, com a 1ª Comunhão dos neófitos.

À semelhança da Vigília Pascal, a partir dos séculos VIII-IX a Vigília de Pentecostes foi sendo gradativamente antecipada para a tarde do sábado. Além disso, devido à decadência do catecumenato, essa Vigília perdeu seu caráter batismal.

Quanto às leituras, no século XII foram aumentadas para seis. Todas, porém, já haviam sido lidas na Vigília Pascal: Gn 22,1-19; Ex 14,24–15,1 como o cântico de Ex 15,1-2; Dt 31,22-30 com o cântico de Dt 32,1-4; Is 4,1-6 com o cântico de Is 5,1-2; Br 3,9-38; Ez 37,1-14 com o Sl 41,2-4.

O Papa Pio XII (†1958) no contexto da sua reforma da Semana Santa em 1955 suprimiu todas as leituras do AT, conservando apenas a Epístola (At 19,1-8), a aclamação solene (Sl 106,1; 116,1-2) e o Evangelho (Jo 14,15-21).

A reforma litúrgica do Concílio Vaticano II recuperou o número original de quatro leituras do AT, embora de maneira facultativa: pode ser celebrada a “forma breve” da Vigília, proferindo apenas uma das quatro leituras do AT, ou a “forma prolongada”, com todas as leituras, intercaladas por salmos e orações:
- Gn 11,1-19 com o Sl 32,10-15;
- Ex 19,3-8a.16-20b com o cântico de Dn 3,52-56 ou o Sl 18,8-11;
- Ez 37,1-14 com o Sl 106,2-5;
- Jl 3,1-5 com o Sl 103,1-2a.24 e 35c.27-28.29bc-30;
- Rm 8,22-27;
- Jo 7,37-39.
Note-se que as leituras indicadas são “inéditas” em relação à Vigília Pascal, oferecendo aos fiéis um contato mais amplo com a Palavra de Deus.

A Carta Circular Paschalis Sollemnitatis, em seu n. 107, recorda outrossim que essa Vigília de Pentecostes “não tem um caráter batismal como a vigília da Páscoa, mas de oração intensa segundo o exemplo dos Apóstolos e discípulos, que perseveravam unânimes em oração juntamente com Maria, a Mãe de Jesus, esperando a vinda do Espírito Santo” [3].

Pentecostes (Andrea di Cione)

Além das leituras da Vigília, a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II buscou recuperar a integração do Domingo de Pentecostes no Tempo Pascal com vários outros elementos, como, por exemplo:
- a nova oração do dia da Missa da Vigília: “Deus eterno e todo-poderoso, quisestes que o Mistério Pascal se completasse durante cinquenta dias...” (Missal Romano, p. 317);
- o novo Prefácio, “O mistério de Pentecostes”: “Para levar à plenitude os mistérios pascais, derramastes, hoje, o Espírito Santo prometido...” (ibid., p. 319);
- o Evangelho da Missa do Dia de Pentecostes, que nos remete à tarde da Páscoa (Jo 20,19-23).

Alguns liturgistas inclusive questionam o uso da cor vermelha nessa Solenidade, o que contribui para a visão do Pentecostes como festa isolada do Espírito Santo. Em contrapartida, se propõe o uso da cor branca, reforçando a unidade dos 50 dias pascais.

 3. Algumas particularidades litúrgicas da Solenidade de Pentecostes

A sequência de Pentecostes

Para a Missa do Dia da Solenidade de Pentecostes é indicada a sequência Veni, Sancte Spíritus, atribuída a Stephen Langton (†1228), Arcebispo de Canterbury (ou Cantuária), na Inglaterra.

As sequências, que se popularizaram no Rito Romano a partir do século XI, são composições poéticas entoadas antes do Evangelho da Missa que sintetizam o mistério da festa celebrada.

Além de Veni, Sancte Spiritus, a única conservada pela reforma do Concílio de Trento (séc. XVI) para esse dia, destaca-se a sequência Sancti Spiritus adsit nobis gratia, atribuída a Notker Balbulus (†912), monge beneditino da Abadia de Sankt Gallen na Suíça, além de outras composições anônimas dos séculos XI e XII.

Efusão das rosas no Domingo de Pentecostes
(Igreja de Santa Maria ad Martyres - Panetão romano)

Um interessante gesto realizado durante o canto da sequência desse dia, atestado em muitas igrejas da Itália e da França a partir do século XII, era fazer chover do coro da igreja pétalas de rosas vermelhas ou pedaços de estopa incandescentes, simbolizando as línguas de fogo que desceram sobre os Apóstolos. Tal costume rendeu ao Pentecostes o nome de “Pascha rosatum”, Páscoa das rosas.

Em Roma, inicialmente, esse gesto tinha lugar no domingo anterior durante a Missa celebrada na igreja de Santa Maria ad Martyres, o antigo Panteão (ou Pantheon) romano, que era a “igreja estacional” do VII Domingo da Páscoa. A efusão das rosas tinha lugar no final da homilia, quando se anunciava que no próximo domingo se celebraria o Pentecostes.

Em alguns lugares a efusão das flores tinha lugar durante a recitação da hora terça (9h) do Domingo de Pentecostes, acompanhando o canto do hino Veni, Creator Spiritus. Em outros lugares, por sua vez, o gesto característico era soltar pombas durante o Glória da Missa.

A oitava de Pentecostes

Como vimos acima, no início da Igreja a Páscoa era uma celebração única que se prolongava por 50 dias, concluindo-se no Domingo de Pentecostes. Com o tempo, porém, esse dia passou a ser considerado mais como uma festa isolada em honra do Espírito Santo.

Assim, à semelhança da Oitava da Páscoa, no século VIII é instituída também a Oitava de Pentecostes, a qual rompia a unidade da cinquentena pascal, razão pela qual foi suprimida pela reforma litúrgica do Concílio Vaticano II.

Além das orações próprias, atestadas pelo Sacramentário Gelasiano (Orationes ad Vesperam infra Octavam Pentecostes), essa oitava se caracterizava pelo canto das sequências de Pentecostes, como indicamos anteriormente.

Dentro dessa oitava, os dias mais solenes eram a segunda e a terça-feira, formando uma espécie de “tríduo” junto com o Domingo de Pentecostes. Com efeito, em alguns lugares até hoje há o costume de celebrar a Missa votiva ao Espírito Santo nesses dias.

Ícone bizantino de Pentecostes
(Para conhecer o simbolismo deste ícone, clique aqui)

Cabe recordar, além disso, a instituição da Memória de Maria Mãe da Igreja pelo Papa Francisco em 2018, fixada na segunda-feira de Pentecostes, e as Têmporas do verão no hemisfério norte na quarta, sexta e sábado após o Pentecostes.

Notas:

[1] Para saber mais sobre a “Festa das Semanas”, confira:
DI SANTE, Carmine. Liturgia judaica: fontes, estrutura, orações e festas. São Paulo: Paulus, 2004, pp. 219-223.
LÉON-DUFOUR, Xavier et al. Vocabulário de Teologia Bíblica. Petrópolis: Vozes, 2008, pp. 774-776.

[2] ETÉRIA. Peregrinação ou Diário de Viagem (Itinerarium ad loca sancta), cap. 43; in: CORDEIRO, José de Leão [org.]. Antologia Litúrgica: Textos litúrgicos, patrísticos e canónicos do primeiro milénio. Fátima: Secretariado Nacional de Liturgia, 2003, pp. 460-461.

[3] CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO. Paschalis Sollemnitatis: A preparação e celebração das festas pascais. Brasília: Edições CNBB, 2018, p. 39. Coleção: Documentos da Igreja, n. 38.

Referências:

ADAM, Adolf. O Ano Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica. São Paulo: Loyola, 2019, pp. 65-66.

BERGAMINI, Augusto. Cristo, festa da Igreja: O ano litúrgico. São Paulo: Paulinas, 1994, pp. 396-407.

RIGHETTI, Mario. Historia de la Liturgia, v. I: Introducción general; El año litúrgico; El Breviario. Madrid: BAC, 1945, pp. 856-862.

SCHUSTER, Cardeal Alfredo Ildefonso. Liber Sacramentorum: Note storiche e liturgiche sul Messale Romano; v. IV: Il Battesimo nello Spirito e nel fuoco (La Sacra Liturgia durante il ciclo Pasquale). Torino-Roma: Marietti, 1930, pp. 145-161.

Postagem publicada originalmente em 13 de maio de 2016. Revista e ampliada em 13 de maio de 2022.

2 comentários:

  1. Olá!
    Este blog é valioso, único! Ótimos conteúdos, que sempre indico aos membros da Pastoral Litúrgica. Que Deus abençoe e retribue todo esforço!
    Tenho uma sugestão. Seria interessante uma postagem aprofundando melhor o tema da Vigília de Pentecostes. Com certeza esta ganhará mais popularidade em nossas comunidades, levando em conta a sua inclusão no Próprio do Tempo da 3ª edição brasileira do MR.

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    1. Muito obrigado pela sua mensagem.
      Na verdade já há uma postagem sobre a Vigília de Pentecostes aqui no blog, intitulada "A celebração da Vigília de Pentecostes" e publicada em maio de 2022.

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