quinta-feira, 2 de junho de 2022

A Festa de Jesus Cristo, Sumo e Eterno Sacerdote

“Temos um sumo sacerdote eminente, que entrou no céu: Jesus, o Filho de Deus” (Hb 4,14).

Dentre os méritos do Concílio Vaticano II está o resgate a teologia do tríplice múnus de Cristo, isto é, das suas três missões (tria munera): Sacerdote (munus sanctificandi), Profeta (munus docendi) e Rei (munus regendi). Desse tríplice múnus todos nós participamos pelo Batismo (cf. Catecismo da Igreja Católica, nn. 783-787).

Jesus Cristo, Sumo e Eterno Sacerdote da nova aliança
(Junto a Jesus estão Melquisedec e Aarão)

O tema dos tria munera remonta à Eusébio de Cesareia (†339), que em sua História Eclesiástica define Jesus como “o verdadeiro Cristo, Verbo divino e celeste, único sumo sacerdote universal e rei único de toda a criação, único chefe dos profetas dentre os profetas do Pai” [1].

Com efeito, uma vez que o título “Cristo” significa literalmente “Ungido” em grego (equivalente ao hebraico Messias), Jesus é prefigurado pelos personagens que eram ungidos com óleo no Antigo Testamento: reis, sacerdotes e profetas (cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 436).

Nesta postagem, gostaríamos de apresentar brevemente o desenvolvimento do culto a nosso Senhor Jesus Cristo, Sumo e Eterno Sacerdote ao longo da história da Igreja.

A história do culto a Jesus, Sumo e Eterno Sacerdote

Como vimos anteriormente aqui em nosso blog, a Festa de nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo foi instituída pelo Papa Pio XI (†1939) em 1925, como parte das “festas estáticas” que surgiram ao longo do segundo milênio [2]. Não obstante, o mistério da realeza de Cristo é contemplado em diversas celebrações “dinâmicas” ao longo do Ano Litúrgico (Epifania, Domingo de Ramos, Ascensão...).

O mesmo vale para o sacerdócio de Cristo, que se encontra bem fundamentado na Carta aos Hebreus, e é contemplado, por exemplo:
- no Prefácio da Páscoa V, “O Cristo, sacerdote e vítima” (Missal Romano, p. 425);
- no Prefácio da Santíssima Eucaristia I, “Eucaristia, sacrifício e sacramento de Cristo”, (p. 439);
- no Prefácio próprio da Solenidade de Cristo Rei (pp. 384-385);
- na Missa Crismal que, após o Concílio Vaticano II, passou a destacar o mistério do sacerdócio de Cristo e da Igreja (pp. 235-237.244-246).

Não obstante, a celebração por excelência do sacerdócio de Cristo é o Tríduo Pascal, particularmente o 1º dia, o “Dia do Crucificado”, que vai do pôr-do-sol da Quinta-feira Santa ao pôr-do-sol da Sexta-feira Santa, com duas celebrações:
- a Missa da Ceia do Senhor, com a instituição do sacrifício e do sacerdócio da nova aliança e a exortação de Jesus aos Apóstolos: “Fazei isto em memória de mim” (cf. 1Cor 11,23-26);
- a Celebração da Paixão do Senhor, na qual recordamos como Ele ofereceu o sacrifício da nova aliança “uma vez por todas” (cf. Hb 7,27; 9,12; 10,10) através da oblação livre e amorosa do seu “Corpo entregue” e do seu “Sangue derramado” na Cruz.

"Cristo eucarístico" com as vestes de sacerdote do Rito Romano
(Basílica de São Servácio, Maastricht)

O primeiro ofício em honra de Cristo sacerdote

O primeiro a propor um ofício próprio em honra do sacerdócio de Cristo foi São João Eudes (†1680), presbítero francês e grande promotor da devoção ao Sagrado Coração de Jesus e ao Imaculado Coração de Maria.

Esse ofício, composto em 1652, foi difundido pela Congregação de Jesus e Maria, sendo acolhido em algumas dioceses francesas. Porém, caiu em desuso no século XIX, quando a Santa Sé suprimiu várias particularidades litúrgicas da França.

A Missa votiva de Cristo, Sumo e Eterno Sacerdote

No dia 20 de dezembro de 1935 o Papa Pio XI, que já havia instituído a Festa de Cristo Rei dez anos antes, publicou a Encíclica Ad catholici sacerdotii sobre o sacerdócio, através da qual aprovou a Missa votiva a Jesus Cristo, Sumo e Eterno Sacerdote (De Domino nostro Iesu Christo Summo et Aeterno Sacerdote) [3], a ser celebrada nas quintas-feiras, junto com a Missa votiva da Santíssima Eucaristia [4].

Essa Missa, conhecida como “Iurávit” (em referência ao introito, tomado do Sl 109,4: “Iurávit Dominus...”), possuía toda a eucologia menor própria (oração do dia, sobre as oferendas e após a Comunhão), além da leitura de Hb 5,1-11, o versículo de Lc 4,18 como “salmo” gradual, e o Evangelho (Lc 22,14-20).

O Prefácio, por sua vez, era o da Santa Cruz, pois, como vimos, é na Cruz que Cristo ofereceu o sacrifício da nova aliança como “sacerdote, altar e cordeiro”.

Pio XI, Papa que aprovou a Missa votiva a Cristo Sacerdote em 1935

Na 2ª edição do Missal Romano, utilizada atualmente no Brasil, este formulário aparece como “Missa votiva da Santíssima Eucaristia B” (pp. 943-944), sendo novamente reintegrado como “Missa votiva de nosso Senhor Jesus Cristo, Sumo e Eterno Sacerdote” na 3ª edição do Missal, ainda sem tradução para o Brasil.

A reforma litúrgica propôs novas orações para a Missa votiva, mais adequadas à eclesiologia do Concílio Vaticano II. Com efeito, este define a define a sagrada Liturgia como “exercício da função sacerdotal de Cristo”, “obra de Cristo sacerdote e do seu Corpo que é a Igreja” (Constituição Sacrosanctum Concilium, n. 7).

Todos nós participamos dessa “função sacerdotal de Cristo” pelo sacramento do Batismo (sacerdócio comum ou batismal), enquanto alguns fiéis, chamados dentre o Povo de Deus, participam também pelo sacramento da Ordem (sacerdócio ministerial) (cf. Constituição Dogmática Lumen Gentium, n. 10).

As novas orações dessa Missa votiva são fortemente eucarísticas: o sacramento da Eucaristia é definido como “memorial” da Morte e Ressureição do Senhor (oração do dia), “sacrifício” da nossa redenção (sobre as oferendas) e “oblação perpétua” (após a Comunhão). Essa chave de leitura eucarística é reforçada pelo uso do Prefácio da Santíssima Eucaristia I ou II (Missal Romano, pp. 439-440).

Para a Liturgia da Palavra, por sua vez, são indicados os seguintes textos: Is 52,13–53,12 ou Hb 10,12-23; Sl 39(40),6ab.9-11ab (R: 8a.9a); Lc 22,14-20.

A Festa de Jesus Cristo, Sumo e Eterno Sacerdote

Ainda durante o Concílio Vaticano II (1962-965), o grande defensor da instituição de uma festa própria em honra do sacerdócio de Cristo foi o então Bispo Auxiliar de Madrid (Espanha), o Venerável Dom José María García Lahiguera (†1989).

Dom Lahiguera, que foi posteriormente Bispo de Huelva e Arcebispo de Valência, além de fundador da Congregação das Irmãs Oblatas de Cristo Sacerdote - congregação feminina de vida contemplativa dedicada à oração pela santificação dos sacerdotes -, propôs que a Festa de Cristo, Sumo e Eterno Sacerdote fosse instituída para toda a Igreja como fruto do Concílio, porém não obteve sucesso.

Venerável José María Lahiguera, Bispo:
"Apóstolo" da Festa de Cristo Sacerdote

Em 1972, porém, por ocasião do VII Congresso Eucarístico Nacional, celebrado em Valência, conseguiu que os Bispos espanhóis solicitassem à Santa Sé a instituição da festa para o seu país.

A Congregação para o Culto Divino, com efeito, aprovou o pedido no dia 22 de agosto de 1973, fixando-a na quinta-feira após o Domingo de Pentecostes, uma semana antes da Solenidade de Corpus Christi [5].

Além de Dom Lahiguera, cabe destacar, em tempos mais recentes, a valiosa contribuição do Cardeal Albert Vanhoye (†2021), grande estudioso da Carta aos Hebreus e do sacerdócio na Sagrada Escritura.

O Ano Sacerdotal e a instituição da Festa

Em 2009 o Papa Bento XVI convocou um “Ano Sacerdotal” para celebrar os 150 anos da morte de São João Maria Vianney, o Cura d’Ars. Esse teve início no dia 19 de junho de 2009, Solenidade do Sagrado Coração de Jesus, e concluiu-se na mesma Solenidade no ano seguinte, a 11 de junho de 2010.

Confira as homilias do Papa Bento XVI na abertura e na conclusão do Ano Sacerdotal.

Vale recordar, com efeito, que São João Paulo II (†2005) já havia proposto em 1995 a Solenidade do Sagrado Coração como Dia de Oração pela Santificação dos Sacerdotes.

Como fruto do Ano Sacerdotal, no dia 03 de julho de 2012 o então Prefeito da Congregação para o Culto Divino, Cardeal Antonio Cañizares Llovera, publicou uma carta anunciando que as Conferências Episcopais que desejassem poderiam inserir em seus Calendários Particulares a Festa de nosso Senhor Jesus Cristo, Sumo e Eterno Sacerdote (Domini nostri Iesu Christi,  Summi et Aeterni Sacerdotis) na quinta-feira após a Solenidade de Pentecostes (Feria V post Pentecostem).

Junto à Carta foram publicados os textos próprios para a Missa e a Liturgia das Horas da nova Festa em sua forma típica (em latim): a tradução, como prescreve o Direito Canônico, fica a cargo das Conferências Episcopais que desejarem acolher a Festa [6].

Bento XVI na Missa de encerramento do Ano Sacerdotal:
Papa que aprovou a Festa de Cristo Sacerdote em 2012

Note-se que, diferentemente das demais Festas do Senhor, como a Apresentação (02 de fevereiro) ou a Transfiguração (06 de agosto), celebradas por toda a Igreja, a celebração da Festa de Cristo Sacerdote fica a cargo de cada Conferência Episcopal.

Dentre os países que já acolheram a nova Festa em seus Calendários Particulares, podemos citar a Polônia em 2013; a República Tcheca em 2015; Inglaterra e Gales, Índia e Canadá em 2018 [7].

Até o momento, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) não se pronunciou a respeito. Por ora, é possível celebrar na quinta-feira após o Pentecostes a já mencionada Missa votiva, utilizando os textos indicados no Missal (pp. 943-944).

As orações da nova Festa retomam aquelas promulgadas por Pio XI em 1935, com ligeiras modificações, conservando as orações elaboradas em 1970 para a Missa votiva. Enquanto estas, como vimos, possuem uma tonalidade mais “eucarística”, as orações da Festa celebram Cristo como Mediador entre nós e o Pai (cf. 1Tm 2,5; Hb 8,6).

Na Missa votiva, como vimos, é indicado o Prefácio da Santíssima Eucaristia; para a Festa, por sua vez, propõe-se o Prefácio da Missa Crismal, “O sacerdócio de Cristo e o ministério sacerdotal” (Missal Romano, p. 245), que também é utilizado nas Ordenações, o qual é renomeado aqui como “De sacerdotio Christi et Ecclesiae” (Do sacerdócio de Cristo e da Igreja).

Merecem destaque também as leituras, que seguem o ciclo trienal A-B-C, algo incomum para as Festas, que geralmente possuem apenas um ciclo de leituras, retomado a cada ano (o ciclo trienal de leituras é próprio dos domingos e solenidades).

Além disso, para cada ano são indicadas duas opções de leitura: uma do Antigo Testamento e outra da Carta aos Hebreus, o principal escrito do Novo Testamento sobre o sacerdócio de Cristo:

Ano A: Gn 22,9-18 ou Hb 10,4-10; Sl 39(40),7-8a.8b-9.10-11ab.17 (R: 8a.9a); Mt 26,36-42;
Ano B: Jr 31,31-34 ou Hb 10,11-18; Sl 109(110),1b-e.2.3 (R: 4b); Mc 14,22-25;
Ano C: Is 6,1-4.8 ou Hb 2,10-18; Sl 22(23),2-3.5.6 (R: 1); Jo 17,1-2.9.14-26.

Em um artigo publicado na Revista Notitiae, revista oficial da Congregação para o Culto Divino, Monsenhor Renato de Zan destaca a particularidade das leituras de cada ciclo: o ano A contempla o sacerdócio de Cristo sob a ótica da “obediência”, o ano B sob a ótica a “nova aliança”, enquanto o ano C destaca a temática da “santidade” [8].

Cristo Mediador entre nós e o Pai (William Blake)

Para a Liturgia das Horas, além das Preces das Laudes e Vésperas, que constituem uma verdadeira “ladainha” de títulos de Cristo, destacam-se os três hinos próprios:
Ofício das Leituras: Póntifex Iesu, mediátor une;
Laudes: Cóncinunt caeli parilíque tellus;
Vésperas: Aetérne, Christe, póntifex.

A 2ª leitura do Ofício das Leituras, por sua vez, é um breve trecho da Encíclica Mediator Dei sobre a sagrada Liturgia, promulgada em 1947pelo Papa Pio XII (†1958), particularmente do n. 74, dedicado a Jesus Cristo como “sacerdote e vítima”.

A Ladainha de Jesus Cristo, Sacerdote e Vítima

Por fim, outro fruto do Ano Sacerdotal foi a aprovação da Ladainha de Jesus Cristo, Sacerdote e Vítima (Litaniae de Domino Nostro Iesu Christo Sacerdote et Victima), oficializada pela Congregação para o Culto Divino no dia 30 de maio de 2013, juntamente com a Ladainha do Santíssimo Sacramento, através do Decreto Unigenitum Filium suum [9].

Até então eram seis as Ladainhas aprovadas pela Igreja e, portanto, as únicas que podiam ser recitadas nas celebrações litúrgicas: do Santíssimo Nome de Jesus; do Sagrado Coração de Jesus; do Preciosíssimo Sangue de Jesus; de Nossa Senhora; de São José; e de Todos os Santos [10].

A Ladainha de Jesus Cristo, Sacerdote e Vítima, como indica o Monsenhor Maurizio Barba em um artigo publicado na Revista Notitiae, teve sua origem na piedade popular, tendo sido composta na França entre os séculos XVII-XVIII [11]. São João Paulo II, com efeito, recorda que essa Ladainha era entoada no Seminário de Cracóvia na véspera das ordenações sacerdotais [12].

Para acessar nossa postagem com o texto da Ladainha em latim e em português, conforme a tradução divulgada pela Congregação para o Clero, clique aqui.

Ícone de Cristo Sacerdote com as vestes do Rito Bizantino

Notas:

[1] EUSÉBIO DE CESAREIA. História Eclesiástica. São Paulo: Paulus, 2000, pp. 40-41 (Coleção: Patrística, vol. 15). A citação encontra-se no Livro 1, cap. 3, n. 8.

[2] Rupert Berger, em seu Dicionário de Liturgia Pastoral, distingue as “festas dinâmicas”, que surgiram no primeiro milênio da Era Cristã e celebram eventos da história da salvação (Páscoa, Natal, Pentecostes...), e as festas “estáticas” ou “temáticas”, instituídas ao longo do segundo milênio para celebrar “ideias” teológicas ou devoções: Santíssima Trindade, Corpus Christi, Sagrado Coração... (cf. BERGER, Rupert. Dicionário de Liturgia Pastoral: Obra de consulta sobre todas as questões referentes à Liturgia. São Paulo: Loyola, 2010, pp. 164-166).

[3] cf. Acta Apostolicae Sedis, vol. XXVIII, 1936, pp. 5-56.
No site da Santa Sé, além do texto original em latim, a Encíclica está disponível em italiano, espanhol, francês e inglês.

[4] No Missale Romanum promulgado por São Pio V em 1570, para cada dia da semana era indicada uma ou mais Missas Votivas, celebradas à escolha para promover a piedade dos fiéis. A reforma litúrgica do Concílio Vaticano II manteve tais Missas, sem porém associá-las a um dia específico.

[5] cf. Revista Notitiae, n. 89 (1974, n. 1), p. 34.

[6] cf. Notitiae, n. 551-552 (2012, n. 7-8), pp. 335-368.

[7] Polônia: Notitiae, n. 563-564 (2013, n. 7-8), p. 369; República Tcheca: Notitiae, n. 581-586 (2015, n. 1-6), p. 50; Inglaterra e Gales, Índia e Canadá: Notitiae, n. 595 (Nova series, 3), 2018, pp. 90-91.

[8] DE ZAN, Renato. “Si compia la tua volontà”: Commento alle letture della Festa di Nostro Signore Gesù Cristo Sommo ed Eterno Sacerdote (Anno A). in: Notitiae, n. 551-552 (2012, n. 7-8), pp. 406-425.

Nesta edição da Revista Notitiae há outros três artigos dedicados à nova Festa:

BARBA, Maurizio. L'Eucologia della Festa di Nostro Signore Gesù Cristo Sommo ed Eterno Sacerdote (pp. 348-405);

MANZI, Franco. “Tu es Sacerdos in Aeternum”. Commento alle letture della festa di Nostro Signore Gesù Cristo Sommo ed  Eterno Sacerdote (Anno B) (pp. 426-436);

PITTA, Antonio. “Gesù Cristo, Sommo Sacerdote Misericordioso e Fedele”. Commento alle letture della festa di Nostro Signore Gesù Cristo Sommo ed Eterno Sacerdote (Anno C) (pp. 437-448).

[9] cf. Notitiae, n. 561-562, (2013, n. 5-6), pp. 236-247.

[10] cf. INDULGÊNCIAS: Orientações Litúrgico-pastorais. São Paulo: Paulus, 2005, p. 62.

[11] BARBA, Maurizio. L’approvazione di due Litanie cristologiche. in: Notitiae, n. 561-562, (2013, n. 5-6), pp. 255-274.

[12] cf. JOÃO PAULO II. Carta aos Sacerdotes por ocasião da Quinta-feira Santa. 16 de março de 1997. 

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