“Sede santos porque Eu, o Senhor vosso Deus sou santo” (Lv 19,2).
Nas últimas postagens da nossa série sobre a leitura litúrgica dos livros da Sagrada Escritura analisamos o Livro do Êxodo, que narra
o início da história de Moisés e da peregrinação do povo de Israel pelo
deserto.
Mas esta história continua... Por isso, prosseguiremos o
nosso estudo com o Livro do Levítico
(Lv).
1. Breve introdução ao Levítico
Terceiro dos rolos da Torá
(Pentateuco), o Levítico recebe este
nome em grego (Λευιτικόν) em referência ao seu “tema”: o culto,
responsabilidade da tribo de Levi. Em hebraico seu nome é Vaikrá, “Chamou”, primeira expressão que aparece no texto.
Aarão com as vestes de sumo sacerdote |
Como vimos em nosso estudo sobre o Êxodo, durante todo o relato do Levítico o povo de Israel permanece junto ao monte Sinai (ou Horeb). Assim, diferentemente do Êxodo, onde se intercalam narrativas e leis, no Levítico predomina o gênero literário legislativo, com leis referentes ao sacerdócio e ao culto, à pureza ritual e a outras questões.
O livro pode ser dividido em quatro grandes seções, seguidas
de um apêndice:
a) Lv 1–7: Normas
sobre os sacrifícios;
b) Lv 8–10:
Investidura dos sacerdotes;
c) Lv 11–16: Leis
sobre a pureza ritual e o Dia da Expiação (Yom
Kippur);
d) Lv 17–26:
“Código da Santidade”;
e) Lv 27: Apêndice
sobre a consagração de pessoas, animais e propriedades ao Senhor.
Alguns autores, por sua vez, consideram o capítulo 16, sobre
o Dia da Expiação, como uma seção à parte. Dentro desse capítulo se encontra o
relato sobre o célebre “bode expiatório”, parte do rito penitencial desse
Dia.
Sem dúvida a parte mais importante do livro é o Código da
Santidade (cap. 17–26), um dos três grandes códigos de leis do Pentateuco, junto
com o Código da Aliança (Ex 20–23) e
o Código Deuteronômico (Dt 12–25).
O Código da Santidade pode ser dividido em dois blocos
concêntricos e uma conclusão, conforme seus diversos temas:
1º bloco:
Sacrifícios (cap. 17);
Moral sexual (cap. 18);
Moral social:
relações na comunidade (cap. 19);
Moral sexual (cap. 20);
Sacrifícios (cap. 21–22).
2º bloco:
Calendário das festas: Sábado, Páscoa, Festa das Semanas,
Festa das Tendas (cap. 23);
O santuário (cap. 24);
Calendário dos anos santos: Ano sabático e ano jubilar (cap.
25).
Conclusão: Bênçãos
e maldições (cap. 26).
Embora muitas destas leis sejam de caráter local e já tenham
sido “superadas” (por exemplo, as normas sobre os sacrifícios caíram em desuso
após a destruição do Templo de Jerusalém no ano 70), o objetivo central do Levítico permanece sempre válido: a
busca da santidade.
Este objetivo fica claro nos “refrãos” que percorrem o
escrito, como se fossem sua “espinha dorsal”: “Sede santos porque Eu sou santo” (Lv 11,44.45; 19,2; 20,7.26); “Eu
sou o Senhor que vos santifica” (Lv
20,8; 21,15.23; 22,9.16.32).
Este caráter “repetitivo”, com refrãos, é
característico da literatura sacerdotal, responsável por sistematizar o livro
após o exílio da Babilônia (séc. VI-V), recolhendo tanto leis mais antigas (como
aquelas relativas à moral sexual) quanto normas elaboradas após o exílio,
durante o período persa.
Para saber mais, confira a bibliografia indicada no final da
postagem.
2. Leitura litúrgica
do Livro do Levítico: Composição
harmônica
Dado o seu caráter legislativo, a presença do Levítico nas celebrações litúrgicas é
bastante “discreta”: dos cinco livros do Pentateuco, com efeito, é o que menos
aparece.
A seguir analisaremos sua leitura a partir dos dois critérios
propostos no n. 66 do Elenco das Leituras
da Missa (ELM): composição harmônica e leitura semicontínua [1], começando naturalmente
pelo primeiro critério: a escolha dos textos por sua “harmonia” com o tempo ou
a festa litúrgica.
a) Celebração
Eucarística
Nosso livro é lido em composição harmônica na Missa em
quatro ocasiões. A primeira delas encontra-se nos dias de semana da Quaresma, quando “as leituras do Evangelho e do
Antigo Testamento foram escolhidas de modo que tivessem uma relação mútua; elas
tratam de diversos temas próprios da catequese quaresmal” (ELM, n. 98) [2].
Assim, na segunda-feira
da I semana da Quaresma lemos Lv
19,1-2.11-18 [3], que inicia com a exortação “Sede santos” (v. 2), segue com uma série de prescrições sobre as
relações humanas (“Não explores o teu
próximo”, “Não cometas injustiças”...)
e culmina no grande mandamento: “Amarás o
teu próximo como a ti mesmo” (v. 18).
O Evangelho deste dia, com efeito, traz o texto escatológico
de Mt 25,31-46, onde o julgamento é
realizado a partir das ações em favor do irmão.
Nos domingos do Tempo
Comum, por sua vez, encontramos duas ocorrências do nosso livro, escolhidas
“em relação às perícopes evangélicas” (ELM, n. 106) [4]:
- VII Domingo do Tempo
Comum do ano A: Lv 19,1-2.17-18 [5],
com a exortação à santidade e o mandamento do amor ao próximo. No Evangelho (Mt 5,38-48), um trecho do “Sermão da
Montanha”, Jesus completa o mandamento do amor: “Amai os vossos inimigos e rezai por aqueles que vos perseguem” (v.
44); e reitera a busca da santidade: “Sede
perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito!” (v. 48).
- VI Domingo do Tempo
Comum do ano B: Lv 13,1-2.44-46 [6],
com normas sobre as pessoas que haviam contraído lepra (hanseníase), uma doença
contagiosa para a qual não havia cura na época, o que levava a isolar estas
pessoas da comunidade. No Evangelho (Mc
1,40-45), como um dos seus primeiros milagres, Jesus cura um leproso.
Por fim, uma leitura do Levítico
é proposta dentre os textos ad libitum
(à escolha) do Comum dos Santos: Lv 19,1-2.17-18 [7], trecho que, como
vimos, contém a exortação à santidade e ao amor ao próximo.
b) Liturgia das Horas
Na Liturgia das Horas a Igreja nos propõe apenas uma perícope do nosso escrito em composição harmônica. Trata-se da leitura breve das Laudes do V Domingo da Quaresma: Lv 23,4-7 [8], com a normativa sobre a festa da Páscoa.
Destaca-se aqui a exortação a comer pães ázimos, isto é, sem fermento: estes pães são símbolo da virtude da humildade, uma vez que o fermento, ao “inchar” a massa, representaria o vício do orgulho (cf. 1Cor 5,6b-8).
3. Leitura litúrgica
do Livro do Levítico: Leitura
semicontínua
O segundo critério de seleção dos textos bíblicos nas
celebrações litúrgicas é a leitura semicontínua, isto é, a proclamação dos
principais textos de um livro na sequência [9].
a) Celebração Eucarística
Na Celebração Eucarística, os
livros do Antigo Testamento são lidos de maneira semicontínua nos dias de semana do Tempo Comum, intercalados pelos livros do Novo Testamento (cf. ELM, n. 110) [10].
A leitura do Livro do Levítico encontra-se dentro de um grande bloco de leitura
do Pentateuco, que se estende da XII à XIX semana do Tempo Comum nos anos
ímpares. Do nosso livro, situado naturalmente entre Êxodo e Números, foram
selecionados apenas dois textos, na
sexta-feira e no sábado da XVII semana do Tempo Comum no ano ímpar:
Sexta-feira: Lv
23,1.4-11.15-16.27.34b-37, sobre as festas da Páscoa (Pessach), das Semanas (Shavuot)
e das Tendas (Sukkot), e sobre o Dia
da Expiação (Yom Kippur);
Sábado: Lv 25,1.8-17,
sobre o Ano do Jubileu, celebrado a cada cinquenta anos [11].
O bode expiatório, associado ao Dia da Expiação (William Holman Hunt) |
b) Liturgia das Horas
Também na Liturgia das Horas a leitura semicontínua do Levítico está situada entre o Êxodo e os Números. Os três livros são lidos no Ofício das Leituras do Tempo da Quaresma, convidando a Igreja, nestes 40 dias, a trilhar o caminho de conversão que o povo de Israel empreendeu pelo deserto durante 40 anos.
As perícopes selecionadas do Levítico aqui são três, lidas do domingo à terça-feira da IV semana da Quaresma [12]:
Domingo: Lv 8,1-17; 9,22-24: Consagração dos sacerdotes (tema que será retomado a partir da V semana da Quaresma com a leitura semicontínua da Carta aos Hebreus);
Segunda-feira: Lv 16,2-28: O dia da expiação (em sintonia com o caráter penitencial da Quaresma);
Terça-feira: Lv 19,1-18.31-37: Preceitos referentes ao próximo (incluindo advertências sobre as injustiças impetradas contra os marginalizados: o pobre, o surdo, o cego, o estrangeiro...).
No ciclo bienal
do Ofício das Leituras, ainda sem tradução para o Brasil, a leitura dos livros
do Êxodo, Levítico e Números é
feita na Quaresma do ano par (dando
maior espaço para a leitura do Deuteronômio
e da Carta aos Hebreus no ano ímpar).
Assim, no ciclo bienal, a leitura semicontínua do Levítico estende-se do domingo à quarta-feira da IV semana da
Quaresma do ano par. A única leitura “inédita” em relação ao ciclo anual é:
Quarta-feira: Lv
26,3-17.38-45: Bênçãos e maldições [13].
Por fim, além das leituras longas do Ofício, temos ainda uma
leitura breve do nosso livro na Hora
Média (9h) da segunda-feira da IV semana do Saltério: Lv 20,26 [15], uma das exortações à santidade presentes ao longo do
escrito.
Cumpre recordar que os salmos organizados nessas quatro
semanas são entoados ao longo de todo o ano, mas as leituras são proferidas
apenas no Tempo Comum, uma vez que o Advento, o Natal, a Quaresma e a Páscoa
possuem leituras próprias.
Encerramos assim nosso breve percurso pelas leituras do Livro do Levítico nas celebrações
litúrgicas do Rito Romano. Na próxima postagem retomaremos a caminhada pelo
deserto junto com o povo de Israel, conduzidos pelo Livro dos Números.
"Sede santos porque Eu sou Santo" (Anjos celebram o Deus Três vezes Santo) |
Breve bibliografia
sobre o Livro do Levítico usada para
esta postagem:
ARANA, André Ibáñez. Levítico.
in: OPORTO, Santiago Guijarro;
GARCÍA, Miguel Salvador [org.]. Comentário
ao Antigo Testamento I. São Paulo: Ave Maria, 2002, pp. 179-219.
FALEY, Roland J. Levítico.
in: BROWN, Raymond E.; FITZMYER,
Joseph A.; MURPHY, Roland E. [org.]. Novo
Comentário Bíblico São Jerônimo: Antigo Testamento. São Paulo: Academia
Cristã; Paulus, 2007, pp. 161-196.
LÓPEZ, Félix Gárcia. O
Livro do Levítico. - in: O Pentateuco: Introdução à leitura dos cinco
primeiros livros da Bíblia. São Paulo: Ave-Maria, 2004, pp. 179-203. Coleção:
Introdução ao Estudo da Bíblia, v. 3A.
SCHENKER, Adrian. Levítico.
- in: RÖMER, Thomas; MACCHI,
Jean-Daniel; NIHAN, Christophe [org.]. Antigo
Testamento: História, Escritura e Teologia. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2015,
pp. 231-241.
Para aprofundar o tema das festas judaicas, confira: DI
SANTE, Carmine. Liturgia judaica: fontes,
estrutura, orações e festas. São Paulo: Paulus, 2004.
Para acessar nossa resenha desta última obra, clique aqui. Confira também nossas postagens sobre a Festa da Páscoa, a Festa das Semanas (Pentecostes) e o Ano do Jubileu.
Notas:
[1] ALDAZÁBAL, José. A
Mesa da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São
Paulo: Paulinas, 2007, p. 76.
[2] ibid., p. 97.
[3] LECIONÁRIO II: Semanal. Tradução portuguesa da 2ª edição
típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1995, p. x.
[4] ALDAZÁBAL, op.
cit., p. 103.
[5] LECIONÁRIO I, p. x.
[6] ibid., p. x.
[7] LECIONÁRIO III: Para as Missas dos Santos, dos Comuns, para
Diversas Necessidades e Votivas. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o
Brasil. São Paulo: Paulus, 1997, p. x.
[8] OFÍCIO DIVINO. Liturgia
das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição
típica. São Paulo: Paulus, 1999, v. II, p. 307.
[9] cf. ALDAZÁBAL,
op. cit., p. 76.
[10] ibid., p.
105.
[11] LECIONÁRIO II, pp. x-x.
[12] OFÍCIO DIVINO, v. II, pp. 243.252.261.
[13] Os títulos das leituras foram traduzidos livremente do
texto espanhol divulgado pelo site Dei
Verbum.
[14] OFÍCIO DIVINO, v. III, p. 1063; v. IV, p. 1017.
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