terça-feira, 21 de junho de 2022

História do culto ao Imaculado Coração de Maria

“Maria guardava todos esses fatos e meditava sobre eles em seu coração” (Lc 2,19).

“Da Páscoa do Senhor derivam todas as celebrações do Ano Litúrgico”: é a partir do Domingo de Páscoa, pois, que se calculam as celebrações móveis, tanto em “contagem regressiva” (até a Quarta-feira de Cinzas) quanto em “contagem progressiva” (até o Pentecostes e as Solenidades da Santíssima Trindade, Corpus Christi e Sagrado Coração de Jesus).

O último “eco da Páscoa” é a Memória do Imaculado Coração da Virgem Maria, no sábado da III semana após o Pentecostes (isto é, no dia seguinte à Solenidade do Sagrado Coração de Jesus), 70 dias após a Páscoa [1].

1. Origem e fundamento do culto ao Coração de Maria

Na Sagrada Escritura o coração é a sede das emoções, dos sentimentos, da inteligência e da vontade, o núcleo fundamental da pessoa humana [2]. O culto ao “coração”, portanto, é uma “sinédoque” ou “metonímia”: através da “parte” (coração se quer chegar ao “todo” (pessoa).

Imaculado Coração de Maria
(Igreja de Todos os Santos - St Peters, Missouri, EUA)

A devoção ao Coração de Maria está diretamente relacionada à devoção ao Coração de Jesus - salvaguardada a distância entre o Filho, Deus que se fez homem, e a Mãe, simples criatura (cf. Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia, n. 174).

O Evangelho de Lucas menciona duas vezes o coração de Maria, indicando que ela meditava sobre os mistérios do Filho em seu coração (Lc 1,19.51). Também o seu cântico, o Magnificat (Lc 1,46-55), é inspirado pelo cântico de Ana, mãe do profeta Samuel: “Exulta no Senhor meu coração...” (1Sm 2,1).

Os Padres da Igreja interpretavam o coração de Maria como símbolo do seu amor indiviso por Deus (Dt 6,5), morada preparada pelo Espírito Santo (Lc 1,35), símbolo da sua participação “cordial” (de todo o coração) na obra salvífica de Jesus: desde a Encarnação até a Morte-Ressurreição e o dom do Espírito Santo (cf. Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia, n. 174).

Santo Agostinho (†430) indica que Maria concebeu a carne de Cristo no ventre e sua verdade no coração [3], afirmando que ela foi “mais feliz por ter trazido Cristo em seu coração do que em sua carne” (cf. Lc 11,27-28) [4].

Os Padres também associaram o coração de Maria à profecia de Simeão: “Quanto a ti, uma espada te traspassará a alma” (Lc 2,35), alusão à sua participação na Paixão do Filho (cf. Marialis cultus, n. 20).

Os teólogos e místicos medievais prosseguiram com a reflexão sobre o coração de Maria.Destacam-se Ruperto de Deutz (†1129), Hugo de São Vítor (†1141), São Bernardo de Claraval (†1153), São Boaventura (†1274), Santa Matilde de Magdeburgo (†1282), Santa Matilde de Hackeborn (†1299), Santa Gertrudes de Helfta (†1302), São Bernardino de Sena (†1444), entre outros.

São João Eudes, "apóstolo" da devoção aos Corações de Jesus e Maria

2. A devoção ao Coração de Maria na Idade Moderna

O grande “apóstolo” da devoção aos Corações de Jesus e Maria, porém, foi São João Eudes (†1680). Este presbítero francês, fundador da Congregação de Jesus e Maria (“eudistas”), escreveu algumas obras sobre a devoção ao Coração de Maria e compôs os primeiros textos para a Missa e a Liturgia das Horas em honra desse mistério.

Com efeito, a Festa do Coração de Maria teria sido celebrada pela primeira vez pelos eudistas no dia 08 de fevereiro de 1648, com a permissão do Bispo de Autun (França).

A celebração logo se espalhou por outras Dioceses francesas, embora a Santa Sé tenha se recusado duas vezes a aprová-la (1669 e 1726). Vale lembrar que nesse período a própria celebração do Coração de Jesus encontrava resistência por parte de alguns teólogos, sendo aprovada pro aliquibus locis (para alguns lugares) apenas em 1765.

Século XIX

Em 1799, porém, o Papa Pio VI (†1799) permitiu uma celebração do Coração de Maria na Diocese de Palermo (Itália), abrindo um precedente. Assim, no dia 31 de agosto de 1805, no pontificado de Pio VII (†1843), a Sagrada Congregação dos Ritos indicou que concederia a autorização para celebrar a festa do Coração de Maria às Dioceses e congregações religiosas que solicitassem, porém utilizando os textos de “Nossa Senhora das Neves” (Dedicação da Basílica de Santa Maria Maior), a 05 de agosto.

A partir de então o culto ao Coração de Maria se difundiu rapidamente, graças:

- à fundação de confrarias e congregações religiosas ligadas a essa devoção, sobretudo na França e na Itália;

- à propagação da “medalha milagrosa” a partir de 1830 por Santa Catarina Labouré (†1876), com as imagens dos Corações de Jesus e Maria no verso;

"Medalha milagrosa"
(Note-se os Corações de Jesus e Maria no verso)

- e a proclamação do dogma da Imaculada Conceição de Maria pelo Papa Pio IX (†1878) no dia 08 de dezembro 1854, através da Bula Ineffabilis Deus.

Até então, com efeito, o Coração de Maria era referido com vários “títulos”: Sagrado, Puríssimo, Piíssimo... Porém, a partir da proclamação do dogma, prevaleceu o título de “Imaculado Coração de Maria” (Cor Immaculatum Mariae).

No ano seguinte, a 21 de julho de 1855, igualmente sob Pio IX, é publicado o decreto autorizando os textos próprios para a Missa e o ofício do Coração de Maria, adaptando em parte aqueles compostos por São João Eudes.

Muito colaboraram para essa aprovação o Bispo espanhol Santo Antonio Maria Claret (†1870) e a Congregação por ele fundada, os Missionários Filhos do Imaculado Coração de Maria (claretianos).

Devido ao empenho dos claretianos, a Congregação para os Ritos autorizou em 1862 a inscrição da Festa do Imaculado Coração de Maria no Calendário próprio da Espanha, no domingo após à oitava da Assunção de Maria (isto é, no domingo após o dia 22 de agosto).

Note-se que nesse período não havia uma data unificada para a festa, uma vez que era celebrada apenas em alguns lugares: por exemplo, os eudistas a celebravam no dia 08 de fevereiro, enquanto em outros lugares era celebrada no 3º domingo após o Pentecostes, logo após a Solenidade do Sagrado Coração de Jesus, ou no início do mês de julho.

Santo Antonio Maria Claret
Fundador da Congregação dos Missionários Filhos do Imaculado Coração de Maria

Século XX

Na Exortação Apostólica Marialis cultus (1974), o Papa São Paulo VI (†1978) elenca o Coração de Maria entre as celebrações que “exprimem orientações que surgiram na piedade contemporânea” (n. 8).

No início do século XX, pois, destacam-se as aparições da Virgem Maria em Fátima (Portugal) em 1917. Atendendo a um pedido dos Bispos portugueses, durante a celebração dos 25 anos das aparições, o Papa Pio XII (†1958) consagrou o mundo ao Imaculado Coração de Maria através de uma mensagem radiofônica transmitida no dia 31 de outubro de 1942, renovando tal consagração na Basílica de São Pedro no dia 08 de dezembro do mesmo ano.

Dois anos depois, através do Decreto Cultus liturgicus, de 04 de maio de 1944, a Congregação dos Ritos instituiu a Festa do Imaculado Coração de Maria para toda a Igreja de Rito Romano, com Missa e ofício próprios, celebrada no dia 22 de agosto, oitava da Solenidade da Assunção [5].

Nesse período, o mesmo Pio XII, em sua Encíclica Haurietis Aquas sobre o culto do Sagrado Coração de Jesus (1956), dedica um parágrafo ao Coração de Maria:

“A fim de que a devoção ao Coração augustíssimo de Jesus produza frutos mais copiosos na família cristã e mesmo em toda a humanidade, procurem os féis unir a ela estreitamente a devoção ao Coração Imaculado da Mãe de Deus.  (...) convém que o povo cristão, que de Jesus Cristo, por intermédio de Maria, recebeu a vida divina, depois de prestar ao Sagrado Coração o devido culto, renda também ao amantíssimo Coração de sua Mãe celestial os correspondentes obséquios de piedade, de amor, de agradecimento e de reparação” (Haurietis aquas, n. 74).

Pio XII consagra o mundo ao Coração de Maria (1942)
(Mosaico do Santuário da Imaculada Conceição - Washington, EUA)

3. A celebração do Imaculado Coração de Maria hoje

Buscando “unir” os Corações da Mãe e do Filho, como indicado por Pio XII, a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II transferiu a celebração do Imaculado Coração de Maria do dia 22 de agosto (que passa a ser a Memória de Nossa Senhora Rainha) para o dia seguinte à Solenidade do Sagrado Coração de Jesus, isto é, o sábado da III semana após o Pentecostes, 70 dias após a Páscoa, inicialmente como Memória facultativa, e logo como Memória obrigatória.

Sobre as orações da Missa:

- conservou-se a oração do dia (coleta), na qual, após recordar do coração de Maria como “morada digna do Espírito Santo”, pedimos ser, como ela, “um templo da vossa glória”;

- a bela oração sobre as oferendas do Missal anterior foi infelizmente substituída por uma mais “genérica”. A oração anterior pedia que o Senhor fizesse “arder em nosso coração aquela chama de amor divino que abrasou o coração da Virgem Maria”;

- também a oração após a Comunhão foi alterada: a do Missal anterior suplicava a intercessão de Maria nos perigos, enquanto na nova oração pedimos “crescer na graça até a plenitude da salvação” [6].

Quanto às leituras, antes da reforma litúrgica os textos escolhidos tinham um caráter fortemente “sapiencial”: Eclo 24,23-31 (segundo a Vulgata); Sl 12,6; 44,18 (ou, nas Missas votivas durante a Quaresma, Pr 8,32.35); enquanto o Evangelho recordava a presença de Maria junto à cruz: Jo 19,25-27

As novas opções de leituras, por sua vez, possuem um caráter mais “profético”, inspirado no Magnificat: Is 61,9-11; cântico de 1Sm 2,1.4-8; o Evangelho, por sua vez, destaca a “beleza espiritual” de Maria, que medita sobre o mistério da salvação em seu coração: Lc 2,41-51.

Imaculado Coração de Maria
(Leopold Kupelwieser)

Para a Liturgia das Horas há apenas dois textos próprios: a 2ª leitura do Ofício das Leituras, dos Sermões de São Lourenço Justiniano (Lorenzo Giustiniani, †1456), e a antífona do cântico evangélico das Laudes (oração da manhã). Tudo o mais toma-se do Comum de Nossa Senhora.

Vale lembrar que essa Memória não possui oração da tarde (Vésperas), uma vez que a partir do pôr-do-sol do sábado celebra-se já a Missa e o ofício do domingo.

Em 1986, no pontificado de São João Paulo II (†2005), a Congregação para o Culto Divino promulgou a Coletânea de Missas de Nossa Senhora, com 46 formulários de Missas votivas em honra da Virgem Maria, publicada no Brasil no ano seguinte e reeditada em 2016.

O formulário n. 28 da Coletânea é justamente a Missa votiva ao Imaculado Coração de Maria, que pode ser celebrada no Tempo Comum, nos dias em que tais Missas são permitidas. Seus textos foram tomados sobretudo do Próprio dos claretianos, contando com orações, leituras e mesmo um Prefácio próprio, destacando as diversas virtudes do Coração de Maria [7].

Voltando a São João Paulo II, já no primeiro documento do seu pontificado, a Encíclica Redemptor hominis (1979), o Papa polonês recordou o Coração de Maria, ao refletir sobre o mistério da “participação de Maria no plano divino da salvação do homem, através do mistério da Redenção”:

“Este mistério formou-se, podemos dizer, sob o coração da Virgem de Nazaré, quando ela pronunciou o seu fiat (faça-se). A partir daquele momento esse coração virginal e ao mesmo tempo materno, sob a particular ação do Espírito Santo, acompanha sempre a obra do seu Filho e palpita na direção de todos aqueles que Cristo abraçou e abraça continuamente com o seu inexaurível amor. E, por isso mesmo, este coração deve ser também maternalmente inexaurível” (Redemptor hominis, n. 22).

Foi também São João Paulo II, em suas meditações sobre a Ladainha do Sagrado Coração de Jesus (proferidas na oração do Ângelus dominical ao longo dos anos de 1985, 1986 e 1989), a recordar a admirável “aliança” entre os Corações da Mãe e do Filho.

Imaculado Coração de Maria
(Catedral de Barcelona, Espanha)

Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia, promulgado pela Congregação para o Culto Divino em dezembro de 2001, destaca em seu n. 174 o valor da devoção ao Coração Imaculado de Maria, ao mesmo tempo em que adverte sobre os seus limites.

Por exemplo, a prática da Comunhão sacramental dos cinco primeiros sábados do mês, ligada à aparição em Fátima, não deve obscurecer a primazia da Eucaristia dominical, nem ser interpretada com um caráter “mágico”.

O Papa Paulo VI, por sua vez, através da Exortação Apostólica Signum Magnum (1967), escrita por ocasião dos 50 anos das aparições em Fátima, exortava à consagração pessoal ao Imaculado Coração de Maria, concluindo:

“Possa o Coração Imaculado de Maria brilhar doravante ante o olhar de todos os cristãos como modelo de perfeito amor para com Deus e para com o próximo” (Signum Magnum, n. 14).

Notas:

[1] Uma vez que a Páscoa é celebrada sempre no domingo após a 1ª lua cheia da primavera no hemisfério norte - portanto, entre os dias 22 de março e 25 de abril -, a Memória do Imaculado Coração de Maria cai em um sábado entre 30 de maio e 03 de julho.

[2] Sobre o tema do coração nas Sagradas Escrituras, confira:
LÉON-DUFOUR, Xavier et al. Vocabulário de Teologia Bíblica. 9ª ed. Petrópolis: Vozes, 2008, pp. 179-182.
LURKER, Manfred. Dicionário de figuras e símbolos bíblicos. São Paulo: Paulus, 1993, pp. 67-68.
McKENZIE, John Lawrence. Dicionário Bíblico. São Paulo: Paulus, 2013, p. 167.

[3] AGOSTINHO. Sermão 25, 7. in: CORDEIRO, José de Leão [org.]. Antologia Litúrgica: Textos Litúrgicos, Patrísticos e Canónicos do Primeiro Milénio. Secretariado Nacional de Liturgia: Fátima, 2003, p. 861.

[4] idemA santa virgindade, 3. in: AGOSTINHO. Dos bens do matrimônio. A santa virgindade. Dos bens da viuvez: Cartas a Proba e a Juliana. São Paulo: Paulus, 2000, p. 103. Coleção: Patrística, vol. 16.

[5] cf. Acta Apostolicae Sedis, vol. 37, 1945, pp. 44-52. Disponível no site da Santa Sé.

[6] MISSAL ROMANO. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1991, p. 586.

[7] MISSAS DE NOSSA SENHORA. Brasília: Edições CNBB, 2016, pp. 151-153; LECIONÁRIO para Missas de Nossa Senhora. Brasília: Edições CNBB, 2016, pp. 115-117.

Vitral do Imaculado Coração de Maria
(Igreja de Santa Ifigênia - São Paulo, SP)

Referências:

ADAM, Adolf. O Ano Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica. São Paulo: Loyola, 2019, p. 159.

ALONSO, Joaquín María; SARTOR, Danilo. Coração Imaculado. in: DE FIORES, Stefano; MEO, Salvatore [org.]. Dicionário de Mariologia. São Paulo; Paulus, 1995, pp. 325-335.

BAINVEL, Jean. Devotion to the Immaculate Heart of Mary. in: Catholic Encyclopedia, vol. 7, 1910. Disponível em: New Advent.

CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E A DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS. Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia. São Paulo: Paulinas, 2003, pp. 148-149.

LODI, Enzo. Os Santos do Calendário Romano: Rezar com os Santos na Liturgia. São Paulo: Paulus, 1992, pp. 184-186.

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