“Invocarão o meu nome e Eu os abençoarei” (Nm 6,27).
Na postagem anterior da nossa série sobre a leitura litúrgica dos livros da Sagrada Escritura iniciamos um estudo sobre a presença
do Livro dos Números (Nm) nas celebrações do Rito Romano.
Após uma breve introdução, analisamos sua leitura na Celebração Eucarística sob o
critério da composição harmônica, isto é, da sintonia com o tempo ou a festa
litúrgica [1].
Aqui concluiremos essa análise com os demais sacramentos e
com os sacramentais, contemplando em seguida o outro critério de seleção dos
textos bíblicos na Liturgia: a leitura semicontínua.
As "uvas de Canaã" (Nm 13) |
2. Leitura litúrgica
do Livro dos Números: Composição
harmônica
b) Sacramentos e
sacramentais
Além da Eucaristia, o único Sacramento no qual são propostas leituras de Números é o sacramento da Ordem. Dentre as várias opções de leitura à escolha (ad libitum) para as Missas das ordenações há duas perícopes do nosso livro:
- para a ordenação de
diáconos sugere-se Nm 3,5-9 [2],
a instituição dos levitas como auxiliares dos sacerdotes “no serviço da morada de Deus”, uma prefiguração do ministério dos
diáconos, recordada inclusive na respectiva Prece de Ordenação:
“Para edificação do novo templo, constituístes três ordens
de ministros para servirem ao vosso Nome, como outrora escolhestes os filhos de
Levi para o serviço do antigo santuário” [3].
- para a ordenação de
presbíteros, por sua vez, propõe-se a leitura de Nm 11,11b-12.14-17.24-25a [4], sobre a comunicação do “espírito que
Moisés possuía” a setenta anciãos, episódio que prefigura o ministério dos
presbíteros, como igualmente citado na respectiva Prece de Ordenação:
“Já no Antigo Testamento, em sinais prefigurativos, surgiram
vários ofícios por Vós instituídos (...) Assim, no deserto, comunicastes a
setenta homens prudentes o espírito dado a Moisés que, com o auxílio deles,
pôde mais facilmente governar o vosso povo” [5].
Passando aos sacramentais,
identificamos leituras ad libitum (à
escolha) do Livro dos Números em cinco formulários de bênçãos:
- na Bênção de instrumentos
técnicos: Nm 20,2-11 [6], o
relato sobre a água que brotou do rochedo no deserto (leitura indicada, por
exemplo, para a bênção de uma adutora de água);
- na Bênção de uma cruz
para veneração pública: Nm 21,4-9
[7], o episódio da serpente de bronze, prefiguração da cruz de Cristo, mesma
leitura da Festa da Exaltação da Santa Cruz, como vimos na postagem anterior;
- na Bênção de um sino
e na Bênção de órgão: Nm 10,1-8.10 [8], as instruções sobre a
construção de duas trombetas de prata, as quais soariam na partida do povo em
caminhada pelo deserto e durante os sacrifícios. Indica-se aqui a dupla função
dos sinos: convocar os fiéis e louvar o Senhor, esta última função compartilhada
com o órgão;
- na Bênção para
diversas circunstâncias: Nm
6,22-27 [9], a “bênção de Aarão”, como vimos em nossa postagem anterior: “O Senhor te abençoe e te guarde! O Senhor faça
brilhar sobre ti a sua face e se compadeça de ti! O Senhor volte para ti o seu
rosto e te dê a paz!” (vv.
24-26).
3. Leitura litúrgica
do Livro dos Números: Leitura
semicontínua
Concluídas as leituras em composição harmônica, passamos ao
critério da leitura semicontínua: a proclamação dos principais textos de um
livro na sequência, oferecendo aos fiéis um contato mais amplo com a Sagrada
Escritura [10].
a) Celebração
Eucarística
Na Celebração Eucarística, a
Igreja nos propõe a leitura semicontínua dos livros do Antigo e do Novo
Testamento nos dias de semana do Tempo
Comum, várias semanas cada um, conforme sua extensão (cf. Elenco das Leituras da Missa, n. 110) [11].
Como vimos nas postagens sobre o Êxodo e o Levítico, a leitura do Pentateuco estrutura-se em um grande bloco,
da XII à XIX semana do Tempo Comum no ano ímpar.
O Livro dos Números é lido por quatro dias, da segunda à quinta-feira da XVIII
semana do Tempo Comum no ano ímpar, naturalmente
entre o Levítico e o Deuteronômio. As perícopes escolhidas do
nosso livro aqui são [12]:
Segunda-feira: Nm
11,4b-15 - a falta de alimentos e a intercessão de Moisés;
Terça-feira: Nm
12,1-13 - a rebelião de Aarão e Miriam;
Quarta-feira: Nm
13,1-2.25–14,1.26-30.34-35 - o envio de doze exploradores a Canaã. Como vimos
na postagem anterior, apenas Josué e Caleb oferecem uma visão positiva da
conquista, sendo portanto os únicos a entrar na terra prometida;
Quinta-feira: Nm
20,1-13 - o episódio da água que brota da rocha.
b) Liturgia das Horas
Como igualmente vimos nas postagens sobre o Êxodo e o Levítico, a Liturgia das Horas a leitura semicontínua desses livros
integra o Ofício das Leituras da
maior parte do Tempo da Quaresma: nestes 40 dias, com efeito, a Igreja refaz o
caminho do povo de Israel pelo deserto por 40 anos.
A eleição dos setenta anciãos (Jacob de Wit) |
O Livro dos Números conclui, pois, esse bloco de leituras, da quarta-feira ao sábado da IV semana da Quaresma, sucedido pela Carta aos Hebreus do V Domingo da Quaresma até o Tríduo Pascal. As quatro perícopes selecionadas do nosso livro são [13]:
Ofício das Leituras da IV semana da Quaresma
Quarta-feira: Nm 11,4-6.10-30 - O Espírito é dado aos anciãos e a Josué;
Quinta-feira: Nm 12,16–13,3a.17-33 - Exploradores israelitas são enviados a Canaã;
Sexta-feira: Nm 14,1-25 - Murmuração do povo e intercessão de Moisés;
Sábado: Nm 20,1-13; 21,4-9 - As águas de Meriba e a serpente de bronze.
No ciclo bienal
do Ofício das Leituras, por sua vez, o qual não possui tradução para o Brasil,
os livros do Êxodo, Levítico e Números são lidos na Quaresma dos anos pares (dando espaço à
leitura do Deuteronômio e de Hebreus nos anos ímpares).
Assim, no ciclo bienal a leitura semicontínua do Livro dos Números estende-se por dez
dias, da quinta-feira da IV semana ao sábado da V semana da Quaresma do ano par.
Indicamos abaixo em negrito as seis leituras “inéditas” em relação ao ciclo
anual [14]:
Ofício das Leituras
da IV semana da Quaresma (Ciclo bienal - ano par):
Quinta-feira: Nm 3,1-13; 8,5-11 - Legislação sobre os levitas;
Sexta-feira: Nm 9,15–10,10.33-36 - A coluna de nuvem;
Sábado: Nm
11,4-6.10-30.
Ofício das Leituras
da V semana da Quaresma (Ciclo bienal - ano par):
Domingo: Nm 12,1-15 - Humildade e grandeza de Moisés;
Segunda-feira: Nm
12,16–13,3a.17-33;
Terça-feira: Nm
14,1-25;
Quarta-feira: Nm 16,1-11.16-35 - Cisma de Coré, Datã e Abiram;
Quinta-feira: Nm
20,1-13; 21,4-9;
Sexta-feira: Nm
22,1-8a.20-35 - Balaão se põe a caminho
para amaldiçoar Israel;
Sábado: Nm 24,1-19
- Oráculo de Balaão.
O liturgista espanhol Padre Pedro Farnés (†2017), em sua
obra Leitura da Bíblia no Ano Litúrgico,
destaca que, enquanto as leituras do ciclo anual concluem com um episódio
“triste”, as “infidelidades do deserto junto às águas de Meriba”, no ciclo
bienal as leituras se concluem com um episódio muito mais “positivo” e “aberto
à Páscoa”: a visão de Balaão, que prefigura a vitória pascal de Cristo [15].
Oráculo de Balaão: "Uma estrela sai de Jacó..." (Nm 24,17) (Hippolyte Flandrin) |
Concluímos assim nosso percurso pelas leituras do Livro dos Números nas celebrações
litúrgicas do Rito Romano e com ela a narrativa da caminhada do povo de Israel
pelo deserto. Sobre o Livro do Deuteronômio, com a conclusão da história de Moisés, e o Livro de Josué, com o relato da
conquista da terra prometida, já possuímos postagens aqui em nosso blog.
Notas:
[1] ALDAZÁBAL, José. A
Mesa da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São
Paulo: Paulinas, 2007, p. 76.
[2] LECIONÁRIO IV: Lecionário
do Pontifical Romano. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil.
São Paulo: Paulus, 2000, p. 35.
[3] PONTIFICAL ROMANO: Ordenação
de Bispos, presbíteros e diáconos. São Paulo: Paulus, 2000, p. 158.
[4] LECIONÁRIO IV, p. 35.
[5] PONTIFICAL ROMANO, p. 114.
[6] RITUAL DE
BÊNÇÃOS. Tradução portuguesa da edição
típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1990, p. 251.
[7] ibid., p. 353.
[8] ibid., pp.
380.388.
[9] ibid., p. 463.
[10] cf. ALDAZÁBAL,
op. cit., p. 76.
[11] ibid., p.
105.
[12] LECIONÁRIO II: Semanal. Tradução portuguesa da 2ª edição
típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1995, pp. x-x.
[13] OFÍCIO DIVINO. Liturgia
das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição
típica. São Paulo: Paulus, 1999, LH v. II, pp. 269.278.286.293.
[14] Os títulos das leituras foram traduzidos livremente do
texto espanhol divulgado pelo site Dei
Verbum.
[15] FARNÉS, PEDRO. A
Mesa da Palavra II: Leitura da Bíblia no Ano Litúrgico. São Paulo:
Paulinas, 2007, p. 83.
Caríssimo, poderias explicar melhor do que se trata o "ciclo bienal"? Obrigado!
ResponderExcluirNo Ofício das Leituras da Liturgia das Horas há dois ciclos de leituras: o ciclo anual, no qual as mesmas leituras são retomadas todos os anos, e o ciclo bienal, com as leituras distribuídas por dois anos (ano par - ano ímpar), oferecendo assim mais textos da Palavra de Deus.
ExcluirOs livros da Liturgia das Horas publicados no Brasil trazem apenas o ciclo anual de leituras do Ofício.
Admiro muitíssimo o teu trabalho neste blogue. Minha oração por tua Vocação é a minha expressão de gratidão.
ResponderExcluirMuito obrigado! Continue nos acompanhando.
ExcluirObrigado por responder!
ResponderExcluirVou procurar conhecer este ciclo bienal que somente hoje fui saber dele.