terça-feira, 4 de outubro de 2022

Leitura litúrgica da Carta aos Hebreus (1)

“Muitas vezes e de muitos modos Deus falou outrora aos nossos pais; nestes dias Ele nos falou por meio do Filho” (cf. Hb 1,1-2).

A Carta aos Hebreus (Hb) é um escrito sui generis dentro do Novo Testamento (NT), fazendo a ponte entre as Cartas Paulinas e as Cartas Católicas. Nesta postagem da nossa série sobre a leitura dos livros da Sagrada Escritura nas celebrações litúrgicas começaremos a analisar esta extraordinária obra.

Jesus Cristo, Sumo e Eterno Sacerdote
(Capela das Irmãs Beneditinas - Clyde, Missouri, EUA)

1. Breve introdução à Carta aos Hebreus

Desde o início da Igreja se debate sobre a autoria deste escrito. Alguns o atribuíam a Paulo, considerando certas semelhanças com a teologia do Apóstolo - como os temas da fé e da obediência de Cristo - e a referência a Timóteo em Hb 13,23.

Em contrapartida, Hebreus apresenta várias diferenças em relação às Cartas Paulinas no estilo e no vocabulário, de modo que atualmente a maioria dos estudiosos considera que Paulo não foi seu autor.

A própria definição da obra como “carta” ou “epístola” é questionada. Esta começa não com as tradicionais saudações epistolares, mas sim com um prólogo teológico sobre a Revelação, semelhante àqueles do Evangelho e da Primeira Carta de João.

O texto prossegue como uma “homilia” ou “sermão”, ou melhor, como uma “palavra de exortação” (Hb 13,22). Apenas a conclusão da obra traz elementos do gênero epistolar (os quais, porém, poderiam ser acréscimos posteriores).

O título “aos Hebreus” (Πρὸς Ἑβραίους) também foi dado posteriormente, provavelmente devido ao amplo uso do Antigo Testamento (AT) - como o recurso ao “exemplo dos antepassados” no cap. 11 - e às referências ao culto judaico na obra.

Os destinatários poderiam ser tanto cristãos de origem judaica quanto de origem grega. O autor era provavelmente um cristão de origem grega, dado seu excelente domínio deste idioma.

A data da redação também é discutida: alguns estudiosos sugerem os anos 60, uma vez que a destruição do Templo de Jerusalém no ano 70 não é mencionada, enquanto outros a situam após o ano 80, por sua cristologia bem desenvolvida. De toda forma, a Carta era conhecida por Clemente de Roma (†100) no final do século I.

Não obstante as questões em aberto, fica claro que o grande “tema” de Hebreus é o sacerdócio de Cristo. Também é clara sua divisão em duas partes, emolduradas por uma introdução e uma conclusão:
a) Hb 1,1-4: Introdução ou prólogo;
b) Hb 1,5–10,39: Seção teológica ou doutrinal;
c) Hb 11,1–13,19: Seção parenética, isto é, de exortação moral;
d) Hb 13,20-25: Conclusão (bênção e saudação final).

Papiro com um trecho de Hebreus
(Papyrus 13, British Library)

Cardeal Albert Vanhoye (†2021), que foi um grande estudioso da Carta aos Hebreus, propõe uma subdivisão das duas grandes partes em cinco seções:
Hb 1,5–2,18: Cristo superior aos anjos;
Hb 3,1–5,10: Cristo, sumo sacerdote misericordioso e fiel;
Hb 5,11–10,39: O sacrifício e o sacerdócio de Cristo (tese central da obra);
Hb 11,1–12,13: Exortação à fé e à paciência;
Hb 12,14–13,19: O fruto da justiça.

Apesar dos conflitos com os sacerdotes do seu tempo, Cristo nunca se opôs ao sacerdócio judaico como tal. Contudo, sendo da tribo de Judá, Ele não podia ser sacerdote segundo o AT, que reservava esta função à tribo de Levi.

Carta aos Hebreus quer demonstrar que, através da sua Morte e Ressurreição, Cristo se torna o “mediador de uma nova aliança” (Hb 9,15), inaugurando um novo sacerdócio. Ele é ao mesmo tempo “sacerdote e vítima” do sacrifício - “Corpo entregue” e “Sangue derramado” - oferecido uma vez por todas na Cruz (Hb 7,27; 9,12; 10,10).

A seção parenética, por sua vez, dirige-se a cristãos já convertidos há certo tempo, os quais já passaram por dificuldades e perseguições (Hb 10,32-34). Portanto, o autor os exorta à fé e à perseverança, recordando também a promessa da vida eterna.

Para saber mais, confira a bibliografia indicada no final da postagem.

2. Leitura litúrgica da Carta aos Hebreus: Composição harmônica

Como temos feito com todos os livros da Sagrada Escritura estudados nesta série, analisaremos a presença da Carta aos Hebreus nas celebrações litúrgicas seguindo os dois critérios de seleção dos textos bíblicos: a composição harmônica e a leitura semicontínua (cf. Elenco das Leituras da Missa, n. 66) [1].

Iniciamos pela composição harmônica: a escolha do texto por sua sintonia com o tempo ou a festa litúrgica.

a) Celebração Eucarística

Guiados pelo Ano Litúrgico, começamos nossa análise pelo Ciclo do Natal. Primeiramente a Igreja nos propõe uma leitura de Hebreus no IV Domingo do Advento do ano C: Hb 10,5-10 [2]. Citando o Salmo 39, o autor da Carta coloca toda a vida de Cristo, desde a Encarnação, sob o sinal da obediência: “Eu vim, ó Deus, para fazer a tua vontade” (Hb 10,7; Sl 39,7-9).

Cristo Sacerdote, perfeito Mediador entre nós e o Pai
(Catedral de Birmingham, Inglaterra)

Na sequência, na Solenidade do Natal do Senhor, a 2ª leitura da Missa do Dia é tomada do início da nossa Carta: Hb 1,1-6 [3], traçando um notável paralelo com o prólogo do Evangelho de João (Jo 1,1-18), proclamado na mesma celebração.

Essa perícope de Hebreus insere o mistério do Natal na história da salvação, a qual tem o seu ápice em Cristo (vv. 1-2). Destaca-se também a citação do Salmo 2: “Tu és meu Filho, Eu hoje te gerei” (Hb 1,5; Sl 2,7).

Na Festa da Sagrada Família, celebrada no domingo após o Natal, propõe-se como 2ª leitura à escolha para o ano B o texto de Hb 11,8.11-12.17-19 [4]. Trata-se do elogio à fé de Abraão e Sara, recompensada com a continuidade de sua família, como narra a 1ª leitura (Gn 15,1-6; 21,1-3).

No Evangelho (Lc 2,22-40), seus descendentes, Simeão e Ana, se tornam destinatários da promessa, “contemplando a salvação” no Menino que de certa forma é “apresentado em sacrifício” no Templo, como outrora Abraão oferecera seu filho Isaac.

Passando ao Ciclo da Páscoa, identificamos outras três leituras de Hebreus em composição harmônica. No V Domingo da Quaresma do ano B lemos Hb 5,7-9 [5], texto que recorda a obediência de Cristo e a sua oração ao Pai antes da Paixão: “dirigiu preces e súplicas... e foi atendido” (v. 7), tema retomado no Evangelho da celebração: Jo 12,20-33 (sobretudo os vv. 27-28).

Uma vez que a oração de Cristo se deu “com forte clamor e lágrimas” (Hb 5,7), essa perícope costuma ser associada à sua agonia no Horto das Oliveiras. Assim, os peregrinos que visitam a Basílica do Getsêmani, em Jerusalém, podem celebrar a Missa votiva da agonia do Senhor (In commemoratione agoniae Domini), com Hb 5,7-9 como opção de leitura [6].

No coração do Ano Litúrgico, o Tríduo Pascal do Senhor Crucificado, Sepultado e Ressuscitado, lemos uma versão mais longa da perícope acima: a 2ª leitura da Celebração da Paixão do Senhor, na Sexta-feira Santa, é Hb 4,14-16; 5,7-9 [7].

O texto professa a dimensão salvífica da Morte de Cristo - “Na consumação da sua vida, tornou-se causa de salvação eterna” (Hb 5,9) - na qual Ele exerce o sacerdócio da nova e eterna aliança. Assim, somos exortados a nos aproximar com confiança do “trono da graça e da misericórdia” (Hb 4,15-16), isto é, da Cruz.

A mesma perícope da Sexta-feira Santa - Hb 4,14-16; 5,7-9 - consta como opção de leitura para a Missa votiva da Paixão do Senhor (De Passione Domini nostri Iesu Christi), própria da Basílica do Santo Sepulcro em Jerusalém [8].

Imagem do Crucificado com uma estola sacerdotal

Por fim, em relação ao Ciclo Pascal, na Solenidade da Ascensão do Senhor propõe-se como 2ª leitura à escolha para o ano C o texto de Hb 9,24-28; 10,19-23 [9], que recorda que Cristo, como sumo sacerdote da nova aliança, “entrou no próprio céu” (Hb 9,24), abrindo-nos “um caminho novo e vivo através da sua humanidade” (Hb 10,20).

Já no Tempo Comum, mas como um “eco” do Tempo Pascal, a Igreja celebra na II quinta-feira após o Pentecostes a Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo (Corpus Christi), que no ano B tem como 2ª leitura o texto de Hb 9,11-15 [10].

A perícope traça um paralelo com a 1ª leitura (Ex 24,3-8), a conclusão da aliança do Sinai, na qual Moisés asperge o sangue de animais sobre o povo. A leitura de Hebreus, por sua vez, indica como Cristo inaugurou o sacrifício da nova aliança com a oferta “do seu próprio sangue... uma vez por todas” sobre o altar da Cruz (Hb 9,12). É desse sacrifício que fazemos memorial no sacramento da Eucaristia.

Antes ainda, na quinta-feira após a Solenidade de Pentecostes, em alguns lugares se celebra a Festa de nosso Senhor Jesus Cristo, Sumo e Eterno Sacerdote. Esta foi instituída em 2012 como fruto do Ano Sacerdotal (2009-2010) convocado pelo Papa Bento XVI para celebrar os 150 anos da morte de São João Maria Vianney.

Para essa festa são indicadas duas opções de leitura para cada um dos três anos (A-B-C), além do salmo e do Evangelho, sendo uma do AT e outra da Carta aos Hebreus [11]:
Ano A: Hb 10,4-10 - “Eu vim, ó Deus, para fazer a tua vontade”;
Ano B: Hb 10,11-18 - “Cristo ofereceu um sacrifício único pelos pecados”;
Ano C: Hb 2,10-18 - “Jesus, sumo sacerdote misericordioso e digno de confiança”.

Em três artigos na Revista Notitiae, publicação oficial do Dicastério para o Culto Divino, Monsenhor Renato de Zan comenta as leituras de cada ciclo, destacando seu “tema” central: no ano A contemplamos o sacerdócio de Cristo sob a ótica da “obediência”; no ano B se destaca a “nova aliança”; e no ano C a “santidade” [12].

Para saber mais, confira nossa postagem sobre a Festa de Jesus Cristo, Sumo e Eterno Sacerdote.

Nos lugares onde a Festa não foi acolhida, é possível celebrar a Missa votiva de nosso Senhor Jesus Cristo, Sumo e Eterno Sacerdote, sobre a qual falaremos em nossa próxima postagem desta série.

Cabe recordar, por fim, outro fruto do Ano Sacerdotal: a Ladainha de Jesus Cristo, Sacerdote e Vítima, aprovada em 2013, com diversas invocações tomadas da Carta aos HebreusPara acessar nossa postagem sobre a Ladainha, com seu texto em latim e em português, clique aqui.

Cristo Sacerdote
(Francisco Romero Zafra, 2011)

Concluímos assim a primeira parte do nosso estudo sobre a presença da Carta aos Hebreus nas celebrações litúrgicas do Rito Romano. Nas próximas postagens daremos continuidade à proposta:



IV Parte: Leitura semicontínua - Missa e Liturgia das Horas (25 de outubro)

Breve bibliografia sobre a Carta aos Hebreus usada para esta postagem:

BOSCH, Jordi Sánchez. A Carta aos Hebreus. in: Escritos paulinos. 2ª ed. São Paulo: Ave Maria, 2008, pp. 425-463. Coleção: Introdução ao Estudo da Bíblia, v. 7.

BOURKE, Myles M. A epístola aos Hebreus. in: BROWN, Raymond E.; FITZMYER, Joseph A.; MURPHY, Roland E. [org.] Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Novo Testamento e artigos sistemáticos. São Paulo: Academia Cristã; Paulus, 2011, pp. 689-729.

BROWN, Raymond. Carta (epístola) aos Hebreus. in: Introdução ao Novo Testamento. 2ª ed. São Paulo: Paulinas, 2012, pp. 891-918.

FABRIS, Rinaldo. Carta aos Hebreus: Introdução. in: As Cartas de Paulo III: Tradução e comentários. São Paulo: Loyola, 1992, pp. 341-514. Coleção: Bíblica Loyola, v. 6.

MORÁN, Luís Rubio. Carta aos Hebreus.  in: OPORTO, Santiago Guijarro; GARCÍA, Miguel Salvador [org.]. Comentário ao Novo Testamento. São Paulo: Ave Maria, 2006, pp. 609-636.

VOUGA, François. A epístola aos Hebreus. in: MARGUERAT, Daniel [org.]. Novo Testamento: História, escritura e teologia. 3ª ed. São Paulo: Loyola, 2015, pp. 419-434.

Notas:

[1] ALDAZÁBAL, José. A Mesa da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São Paulo: Paulinas, 2007, p. 76.
[2] LECIONÁRIO I: Dominical A-B-C. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1994, p. x.
[3] ibid., p. x.
[4] ibid., p. x. Quando o dia 25 de dezembro cai em um domingo, por sua vez, essa Festa celebra-se no dia 30 de dezembro. Neste caso, proclama-se apenas uma das duas leituras antes do Evangelho.
[5] ibid., p. x.
As Missas votivas em honra do Senhor, da Virgem Maria ou dos santos são celebradas em determinados dias para favorecer a devoção dos fiéis; por exemplo, a Missa votiva ao Sagrado Coração de Jesus na primeira sexta-feira de cada mês (cf. Instrução Geral sobre o Missal Romano, 3ª edição, n. 375).
Cada santuário da Terra Santa, por sua vez, possui uma ou mais “Missas votivas do lugar”, nas quais os peregrinos contemplam os eventos da história da salvação associados a cada lugar. Para saber mais, confira nossa série de postagens sobre as Missas votivas da Terra Santa.
[7] LECIONÁRIO I, p. x.
[9] LECIONÁRIO I, p. x.
[10] ibid., p. x.
[11] Revista Notitiae, n. 551-552 (2012, n. 7-8), pp. 335-368. Fonte: Dicastério para o Culto Divino.
As demais leituras para a Festa, seguindo o ciclo trienal, são:
Ano A: Gn 22,9-18; Sl 39,7-8a.8b-9.10-11ab.17 (R: 8a.9a); Mt 26,36-42;
Ano B: Jr 31,31-34; Sl 109,1b-e.2.3 (R: 4b); Mc 14,22-25;
Ano C: Is 6,1-4.8; Sl 22,2-3.5.6 (R: 1); Jo 17,1-2.9.14-26.
[12] cf. ibid., pp. 406-448.

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