“Muitas vezes e de muitos
modos Deus falou outrora aos nossos pais; nestes dias Ele nos falou por meio do
Filho” (cf. Hb 1,1-2).
A Carta aos Hebreus (Hb)
é um escrito sui generis dentro
do Novo Testamento (NT), fazendo a ponte entre as Cartas Paulinas e as Cartas
Católicas. Nesta postagem da nossa série sobre a leitura dos livros da Sagrada Escritura nas celebrações litúrgicas começaremos a analisar esta
extraordinária obra.
Jesus Cristo, Sumo e Eterno Sacerdote (Capela das Irmãs Beneditinas - Clyde, Missouri, EUA) |
1. Breve introdução à Carta aos Hebreus
Desde o início da Igreja se debate sobre a autoria deste escrito. Alguns o atribuíam a Paulo, considerando certas semelhanças com a teologia do Apóstolo - como os temas da fé e da obediência de Cristo - e a referência a Timóteo em Hb 13,23.
Em contrapartida, Hebreus apresenta várias diferenças em relação às Cartas Paulinas no estilo e no vocabulário, de modo que atualmente a maioria dos estudiosos considera que Paulo não foi seu autor.
A própria definição da obra como “carta” ou “epístola” é
questionada. Esta começa não com as tradicionais saudações epistolares, mas sim
com um prólogo teológico sobre a Revelação, semelhante àqueles do Evangelho e da Primeira Carta de João.
O texto prossegue como uma “homilia” ou “sermão”, ou melhor,
como uma “palavra de exortação” (Hb
13,22). Apenas a conclusão da obra traz elementos do gênero epistolar (os
quais, porém, poderiam ser acréscimos posteriores).
O título “aos Hebreus”
(Πρὸς Ἑβραίους) também foi dado posteriormente, provavelmente devido ao amplo
uso do Antigo Testamento (AT) - como o recurso ao “exemplo dos antepassados” no
cap. 11 - e às referências ao culto judaico na obra.
Os destinatários poderiam ser tanto cristãos de origem
judaica quanto de origem grega. O autor era provavelmente um cristão de origem grega,
dado seu excelente domínio deste idioma.
A data da redação também é discutida: alguns estudiosos
sugerem os anos 60, uma vez que a destruição do Templo de Jerusalém no ano 70
não é mencionada, enquanto outros a situam após o ano 80, por sua cristologia
bem desenvolvida. De toda forma, a Carta era conhecida por Clemente de Roma
(†100) no final do século I.
Não obstante as questões em aberto, fica claro que o grande
“tema” de Hebreus é o sacerdócio de
Cristo. Também é clara sua divisão em duas partes, emolduradas por uma
introdução e uma conclusão:
a) Hb 1,1-4: Introdução
ou prólogo;
b) Hb 1,5–10,39: Seção
teológica ou doutrinal;
c) Hb 11,1–13,19: Seção parenética, isto é, de exortação
moral;
d) Hb 13,20-25:
Conclusão (bênção e saudação final).
Papiro com um trecho de Hebreus (Papyrus 13, British Library) |
O Cardeal Albert Vanhoye (†2021), que foi um grande estudioso da Carta aos Hebreus, propõe uma subdivisão das duas grandes partes em cinco seções:
Hb 1,5–2,18: Cristo superior aos anjos;
Hb 3,1–5,10: Cristo, sumo sacerdote misericordioso e fiel;
Hb 5,11–10,39: O sacrifício e o sacerdócio de Cristo (tese central da obra);
Hb 11,1–12,13: Exortação à fé e à paciência;
Hb 12,14–13,19: O fruto da justiça.
Apesar dos conflitos com os sacerdotes do seu tempo, Cristo nunca se opôs ao sacerdócio judaico como tal. Contudo, sendo da tribo de Judá, Ele não podia ser sacerdote segundo o AT, que reservava esta função à tribo de Levi.
A Carta aos Hebreus quer demonstrar que, através da sua Morte e Ressurreição, Cristo se torna o “mediador de uma nova aliança” (Hb 9,15), inaugurando um novo sacerdócio. Ele é ao mesmo tempo “sacerdote e vítima” do sacrifício - “Corpo entregue” e “Sangue derramado” - oferecido uma vez por todas na Cruz (Hb 7,27; 9,12; 10,10).
A seção parenética, por sua vez, dirige-se a cristãos já convertidos há certo tempo, os quais já passaram por dificuldades e perseguições (Hb 10,32-34). Portanto, o autor os exorta à fé e à perseverança, recordando também a promessa da vida eterna.
Para saber mais, confira a bibliografia indicada no final da postagem.
2. Leitura litúrgica da Carta aos Hebreus: Composição harmônica
Como temos feito com todos os livros da Sagrada Escritura estudados nesta série, analisaremos a presença da Carta aos Hebreus nas celebrações litúrgicas seguindo os dois
critérios de seleção dos textos bíblicos: a composição harmônica e a leitura
semicontínua (cf. Elenco das Leituras da Missa, n. 66) [1].
Iniciamos pela composição harmônica: a
escolha do texto por sua sintonia com o tempo ou a festa litúrgica.
a) Celebração Eucarística
Guiados pelo Ano Litúrgico, começamos nossa análise pelo Ciclo do Natal. Primeiramente a Igreja
nos propõe uma leitura de Hebreus no IV Domingo do Advento do ano C: Hb 10,5-10 [2]. Citando o Salmo 39, o
autor da Carta coloca toda a vida de
Cristo, desde a Encarnação, sob o sinal da obediência: “Eu vim, ó Deus, para fazer a tua vontade” (Hb 10,7; Sl 39,7-9).
Cristo Sacerdote, perfeito Mediador entre nós e o Pai (Catedral de Birmingham, Inglaterra) |
Na sequência, na Solenidade
do Natal do Senhor, a 2ª leitura da Missa
do Dia é tomada do início da nossa Carta: Hb 1,1-6 [3], traçando um notável paralelo com o prólogo do Evangelho de João (Jo 1,1-18), proclamado na mesma celebração.
Essa perícope de Hebreus
insere o mistério do Natal na história da salvação, a qual tem o seu ápice em
Cristo (vv. 1-2). Destaca-se também a citação do Salmo 2: “Tu és meu Filho, Eu hoje te gerei” (Hb 1,5; Sl 2,7).
Na Festa da Sagrada
Família, celebrada no domingo após o Natal, propõe-se como 2ª leitura à escolha para o ano B o
texto de Hb 11,8.11-12.17-19 [4]. Trata-se
do elogio à fé de Abraão e Sara, recompensada com a continuidade de sua
família, como narra a 1ª leitura (Gn
15,1-6; 21,1-3).
No Evangelho (Lc
2,22-40), seus descendentes, Simeão e Ana, se tornam destinatários da promessa,
“contemplando a salvação” no Menino que de certa forma é “apresentado em
sacrifício” no Templo, como outrora Abraão oferecera seu filho Isaac.
Passando ao Ciclo da
Páscoa, identificamos outras três leituras de Hebreus em composição harmônica. No V Domingo da Quaresma do ano B lemos Hb 5,7-9 [5], texto que recorda a obediência de Cristo e a sua oração
ao Pai antes da Paixão: “dirigiu preces e
súplicas... e foi atendido” (v. 7), tema retomado no
Evangelho da celebração: Jo 12,20-33
(sobretudo os vv. 27-28).
Uma vez que a oração de Cristo se deu “com forte clamor e
lágrimas” (Hb 5,7), essa perícope
costuma ser associada à sua agonia no Horto das Oliveiras. Assim, os peregrinos
que visitam a Basílica do Getsêmani,
em Jerusalém, podem celebrar a Missa
votiva da agonia do Senhor (In
commemoratione agoniae Domini), com Hb
5,7-9 como opção de leitura [6].
No coração do Ano Litúrgico, o Tríduo Pascal do Senhor Crucificado, Sepultado e Ressuscitado, lemos
uma versão mais longa da perícope acima: a 2ª leitura da Celebração da Paixão do Senhor, na Sexta-feira Santa, é Hb 4,14-16; 5,7-9 [7].
O texto professa a dimensão salvífica da Morte de Cristo - “Na consumação da sua vida, tornou-se causa
de salvação eterna” (Hb 5,9) - na
qual Ele exerce o sacerdócio da nova e eterna aliança. Assim, somos exortados a
nos aproximar com confiança do “trono da
graça e da misericórdia” (Hb 4,15-16), isto é, da Cruz.
A mesma perícope da Sexta-feira Santa - Hb 4,14-16; 5,7-9 - consta como opção de leitura para a Missa votiva da Paixão do Senhor (De Passione Domini nostri Iesu Christi),
própria da Basílica do Santo Sepulcro
em Jerusalém [8].
Imagem do Crucificado com uma estola sacerdotal |
Por fim, em relação ao Ciclo
Pascal, na Solenidade da Ascensão do
Senhor propõe-se como 2ª leitura à
escolha para o ano C o texto de Hb
9,24-28; 10,19-23 [9], que recorda que Cristo, como sumo sacerdote da nova
aliança, “entrou no próprio céu” (Hb 9,24), abrindo-nos “um caminho novo e vivo através da sua
humanidade” (Hb 10,20).
Já no Tempo Comum,
mas como um “eco” do Tempo Pascal, a Igreja celebra na II quinta-feira após o
Pentecostes a Solenidade do Santíssimo
Corpo e Sangue de Cristo (Corpus
Christi), que no ano B tem como
2ª leitura o texto de Hb 9,11-15 [10].
A perícope traça um paralelo com a 1ª leitura (Ex 24,3-8), a conclusão da aliança do
Sinai, na qual Moisés asperge o sangue de animais sobre o povo. A leitura de Hebreus, por sua vez, indica como Cristo
inaugurou o sacrifício da nova aliança com a oferta “do seu próprio sangue... uma vez por todas” sobre o altar da Cruz (Hb 9,12). É desse sacrifício que fazemos
memorial no sacramento da Eucaristia.
Antes ainda, na quinta-feira após a Solenidade de
Pentecostes, em alguns lugares se celebra a Festa de nosso Senhor Jesus Cristo, Sumo e Eterno Sacerdote. Esta
foi instituída em 2012 como fruto do Ano Sacerdotal (2009-2010) convocado pelo Papa
Bento XVI para celebrar os 150 anos da morte de São João Maria Vianney.
Para essa festa são indicadas duas opções de leitura para
cada um dos três anos (A-B-C), além do salmo e do Evangelho, sendo uma do AT e
outra da Carta aos Hebreus [11]:
Ano A: Hb 10,4-10 - “Eu vim, ó Deus, para fazer a tua vontade”;
Ano B: Hb 10,11-18 - “Cristo ofereceu um sacrifício único pelos pecados”;
Ano C: Hb 2,10-18 - “Jesus, sumo sacerdote misericordioso e digno de confiança”.
Em três artigos na Revista Notitiae, publicação oficial do Dicastério para o Culto Divino,
Monsenhor Renato de Zan comenta as leituras de cada ciclo, destacando seu
“tema” central: no ano A contemplamos o sacerdócio de Cristo sob a ótica da “obediência”;
no ano B se destaca a “nova aliança”; e no ano C a “santidade” [12].
Para saber mais, confira nossa postagem sobre a Festa de Jesus Cristo, Sumo e Eterno Sacerdote.
Nos lugares onde a Festa não foi acolhida, é possível
celebrar a Missa votiva de nosso Senhor Jesus Cristo, Sumo e Eterno Sacerdote,
sobre a qual falaremos em nossa próxima postagem desta série.
Cabe recordar, por fim, outro fruto do Ano Sacerdotal: a
Ladainha de Jesus Cristo, Sacerdote e Vítima, aprovada em 2013, com diversas
invocações tomadas da Carta aos Hebreus. Para acessar nossa postagem sobre a Ladainha, com seu texto em latim e em português, clique aqui.
Cristo Sacerdote (Francisco Romero Zafra, 2011) |
Concluímos assim a primeira parte do nosso estudo sobre a
presença da Carta aos Hebreus nas
celebrações litúrgicas do Rito Romano. Nas próximas postagens daremos continuidade à proposta:
IV Parte: Leitura semicontínua - Missa e Liturgia das Horas (25 de outubro)
Breve bibliografia sobre a Carta aos Hebreus usada para esta postagem:
BOSCH, Jordi Sánchez. A
Carta aos Hebreus. in: Escritos
paulinos. 2ª ed. São Paulo: Ave Maria, 2008, pp. 425-463. Coleção: Introdução ao Estudo da Bíblia, v. 7.
BOURKE, Myles M. A
epístola aos Hebreus. in: BROWN, Raymond E.; FITZMYER, Joseph A.; MURPHY,
Roland E. [org.] Novo Comentário Bíblico
São Jerônimo: Novo Testamento e artigos sistemáticos. São Paulo: Academia
Cristã; Paulus, 2011, pp. 689-729.
BROWN, Raymond. Carta
(epístola) aos Hebreus. in: Introdução ao Novo Testamento. 2ª ed.
São Paulo: Paulinas, 2012, pp. 891-918.
FABRIS, Rinaldo. Carta
aos Hebreus: Introdução. in: As Cartas de Paulo III: Tradução e comentários.
São Paulo: Loyola, 1992, pp. 341-514. Coleção: Bíblica Loyola, v. 6.
MORÁN, Luís Rubio. Carta
aos Hebreus. in: OPORTO, Santiago Guijarro; GARCÍA, Miguel Salvador [org.]. Comentário ao Novo Testamento. São
Paulo: Ave Maria, 2006, pp. 609-636.
VOUGA, François. A
epístola aos Hebreus. in:
MARGUERAT, Daniel [org.]. Novo Testamento:
História, escritura e teologia. 3ª ed. São Paulo: Loyola, 2015, pp. 419-434.
Notas:
[1] ALDAZÁBAL, José. A
Mesa da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São
Paulo: Paulinas, 2007, p. 76.
[2] LECIONÁRIO I:
Dominical A-B-C. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São
Paulo: Paulus, 1994, p. x.
[3] ibid., p. x.
[4] ibid., p. x.
Quando o dia 25 de dezembro cai em um domingo, por sua vez, essa Festa
celebra-se no dia 30 de dezembro. Neste caso, proclama-se apenas uma das duas leituras
antes do Evangelho.
[5] ibid., p. x.
[6] Fonte: Custódia Franciscana da Terra Santa.
As Missas votivas em honra do Senhor, da Virgem Maria ou
dos santos são celebradas em determinados dias para favorecer a devoção dos
fiéis; por exemplo, a Missa votiva ao Sagrado Coração de Jesus na primeira
sexta-feira de cada mês (cf. Instrução
Geral sobre o Missal Romano, 3ª edição, n. 375).
Cada santuário da Terra Santa, por sua vez, possui uma ou
mais “Missas votivas do lugar”, nas quais os peregrinos contemplam os eventos
da história da salvação associados a cada lugar. Para saber mais, confira nossa série de postagens sobre as Missas votivas da Terra Santa.
[7] LECIONÁRIO I, p. x.
[8] Fonte: Custódia Franciscana da Terra Santa.
[9] LECIONÁRIO I, p. x.
[10] ibid., p. x.
[11] Revista Notitiae,
n. 551-552 (2012, n. 7-8), pp. 335-368. Fonte: Dicastério para o Culto Divino.
As demais leituras para a Festa, seguindo o ciclo trienal,
são:
Ano A: Gn 22,9-18;
Sl 39,7-8a.8b-9.10-11ab.17 (R: 8a.9a); Mt 26,36-42;
Ano B: Jr
31,31-34; Sl 109,1b-e.2.3 (R: 4b); Mc 14,22-25;
Ano C: Is 6,1-4.8;
Sl 22,2-3.5.6 (R: 1); Jo 17,1-2.9.14-26.
[12] cf. ibid.,
pp. 406-448.
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