“Da celebração da
Páscoa do Senhor derivam todas as celebrações do Ano Litúrgico” [1].
Com efeito, é a partir da Páscoa (celebrada no domingo após a primeira lua
cheia da primavera no hemisfério norte) que se calcula a maior parte das festas
móveis do Ano Litúrgico, tanto as festas “dinâmicas” (que celebram eventos da
história da salvação), quanto as festas “estáticas” ou “temáticas”, isto é, que
celebram “ideias” teológicas ou devoções.
Dentre estas últimas inclui-se a Solenidade do Sagrado
Coração de Jesus, celebrada na sexta-feira da terceira semana após o Pentecostes, que,
junto com a Memória do Coração de Maria, no dia seguinte (70 dias após a
Páscoa), constitui o último “eco” da celebração anual da Morte-Ressurreição do
Senhor.
1. As raízes da devoção ao Sagrado Coração
O culto ao Sagrado Coração de Jesus tem suas origens mais
remotas na devoção às Chagas de Cristo. Esta origina-se nos séculos XII e XIII com as peregrinações aos locais da Paixão na Terra Santa e como reação à heresia dos cátaros. Estes possuíam uma concepção dualista, considerando
o espírito como bom e a matéria como má, negando assim o valor da Encarnação e
da Morte de Cristo.
Para combater tal heresia, as ordens religiosas passaram a enfatizar
a devoção à Paixão, incluindo portanto o culto ao Coração de Cristo atravessado
pela lança. Destacam-se primeiramente São Bernardo de Claraval (†1153) e São
Boaventura (†1274) e, nos séculos XIV-XV, as Santas Matilde de Magdeburgo (†1282),
Matilde de Hackeborn (†1299) e Gertrudes de Helfta (†1302) na Alemanha e as
Santas Ângela de Foligno (†1309) e Catarina de Sena (†1380) na Itália.
A partir da fundação da Companhia de Jesus em 1534, os
missionários jesuítas colaboraram na difusão da devoção, inclusive no Brasil.
Em Guarapari (Espírito Santo) foi construída em 1585 por São José de Anchieta a
primeira capela em honra do Sagrado Coração de Jesus (tendo Santa Ana como
co-padroeira) [2].
São João Eudes (†1680), fundador da Congregação de Jesus e Maria, é considerado o grande “apóstolo” do Sagrado Coração de Jesus. Com a aprovação do Bispo de Rennes (França), Dom Charles-François de La Vieuville, instituiu a festa em honra do Coração de Cristo no âmbito da sua Congregação em 1672.
Também merece destaque neste período Santa Margarida Maria
Alacoque (†1690), religiosa da Ordem da Visitação de Santa Maria. Ela teria supostamente recebido aparições de
Cristo no mosteiro de Paray-le-Monial (França), incentivando-a a propagar a devoção ao seu Coração, sendo apoiada
nesse intento por seu diretor espiritual, São Cláudio de la Colombière (†1682).
2. Instituição da festa
litúrgica do Coração de Jesus
Inicialmente houve bastante resistência à devoção: a ênfase no coração material de Cristo foi rejeitada pela maioria dos teólogos. Com o tempo foi esclarecido que o objeto dessa devoção é o mistério do amor de Cristo em sua totalidade, simbolizado em seu coração.
A festa litúrgica do Sagrado Coração seria aprovada por
decreto da Congregação dos Ritos em 25 de janeiro de 1765, no pontificado do
Papa Clemente XIII, a ser celebrada na sexta-feira após a oitava de Corpus Christi. Porém, inicialmente a
festa foi restrita à Polônia e à Arquiconfraria do Sagrado Coração de Jesus em
Roma.
A festa do Sagrado Coração seria instituída para toda a
Igreja somente no século seguinte, com o decreto emanado pela Congregação dos
Ritos no dia 23 de agosto de 1856, sob o pontificado do Papa Pio IX.
Pouco anos depois, em 1899, o Papa Leão XIII aprovou a
Ladainha do Sagrado Coração e, em sua Encíclica Annum Sacrum,
anunciou a consagração de toda a humanidade ao Sagrado Coração de Jesus no contexto
do Jubileu de 1900.
Em 1928 o Papa Pio XI elevou a festa ao grau de Solenidade
com oitava e propôs novas orações para a Missa, incluindo um Prefácio próprio (até então tomava-se o Prefácio da Santa Cruz) e textos para a Liturgia das
Horas, que seriam inaugurados no ano seguinte [3].
Da ênfase apenas na Paixão, as novas orações passaram a destacar a
reparação, isto é, o pedido de perdão pelos nossos pecados como resposta ao amor
de Cristo, manifestado em seu coração, tema destacado pelo Pontífice na
Encíclica Miserentissimus Redemptor.
Com a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II foram mantidas as orações do dia e sobre as oferendas, sendo acrescentadas uma 2ª opção de coleta e uma nova oração após a Comunhão, além de um novo Prefácio (inspirado nas reflexões dos Santos Padres) e leituras para os três anos do ciclo dominical e festivo:
Ano A: Dt 7,6-11; Sl 102; 1Jo 4,7-16; Mt 11,25-30
Ano B: Os 11,3-4.8c-9; Is 12,2-6; Ef 3,8-12.14-19; Jo 19,31-37
Ano C: Ez 34,11-16; Sl 22,1-6; Rm 5,5b-11; Lc 15,3-7
A reforma litúrgica também suprimiu a oitava, mantida apenas para as duas maiores Solenidades do Ano Litúrgico, isto é, a Páscoa e o Natal.
Cabe recordar ainda que no Missal
anterior à reforma litúrgica era prevista a Missa votiva ao Sagrado Coração de
Jesus para as sextas-feiras, dada a associação deste mistério com a Paixão. Na
atual edição do Missal conserva-se tal Missa votiva, porém sem a indicação do
dia de semana.
Não obstante, pode conservar-se
onde for costume a celebração da Missa votiva ao Sagrado Coração na primeira
sexta-feira de cada mês (prática difundida por Santa Margarida Alacoque), desde
que neste dia sejam permitidas as Missas votivas [4].
3. “O sacerdócio é o amor do Coração de Jesus” (São João Maria Vianney)
A partir de 1995, a Solenidade do Sagrado Coração de Jesus é também o Dia de Oração pela Santificação dos Sacerdotes, como testemunha o Papa São João Paulo II em sua Carta aos Sacerdotes por ocasião da Quinta-feira Santa de 1995.
Neste sentido, o Papa Bento XVI celebrou tanto a abertura quanto o encerramento do Ano Sacerdotal na Solenidade do Sagrado Coração (2009-2010), enquanto o Papa Francisco celebrou nessa Solenidade o Jubileu dos Sacerdotes no Ano da Misericórdia (2016).
Notas:
[1] Anúncio das Solenidades Móveis, a ser proclamado após o
Evangelho na Solenidade da Epifania do Senhor. O Diretório Litúrgico da CNBB
oferece o texto para cada ano.
[2] Posteriormente, após a expulsão dos jesuítas, a igreja
foi abandonada. Sendo recuperada no final do século XIX, passou a ter Nossa
Senhora da Conceição como padroeira.
[4] Nos dias de semana do Tempo Comum as Missas votivas são
sempre permitidas. Nas memórias obrigatórias, nos dias de semana do Advento
(até 16 de dezembro), do Natal e da Páscoa são permitidas, a juízo do sacerdote.
Nas festas, nos dias 17 a 24 de dezembro, na oitava do Natal e nos dias de
semana da Quaresma são permitidas apenas com a autorização do Bispo diocesano.
Nas solenidades e na oitava da Páscoa são sempre proibidas.
Referências:
ADAM, Adolf. O Ano
Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica.
São Paulo: Loyola, 2019, pp. 127-129.
AUGÉ, Matias. Ano
Litúrgico: É o próprio Cristo presente na sua Igreja. São Paulo: Paulinas,
2019, pp. 270-273.
BERGAMINI, Augusto. Cristo,
festa da Igreja: História, teologia, espiritualidade e pastoral do ano
litúrgico. São Paulo: Paulinas, 1994, pp. 432-434.
RIGHETTI, Mario. Historia
de la Liturgia, v. I: Introducción general; El año litúrgico; El Breviario.
Madrid: BAC, 1955, pp. 875-877.
Postagem publicada originalmente em 11 de junho de 2012. Revista e ampliada em 29 de maio de 2021.
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