segunda-feira, 11 de junho de 2012

A história do culto ao Sagrado Coração de Jesus

Da celebração da Páscoa do Senhor derivam todas as celebrações do Ano Litúrgico [1].

Com efeito, é a partir da Páscoa (celebrada na primeira lua cheia da primavera no hemisfério norte) que se calcula a maior parte das festas móveis do Ano Litúrgico, tanto as festas “dinâmicas” (que celebram eventos da história da salvação), quanto as festas “estáticas” ou “temáticas”, isto é, que celebram “ideias” teológicas ou devoções.

Dentre estas últimas inclui-se a Solenidade do Sagrado Coração de Jesus, na sexta-feira da terceira semana após o Pentecostes, que, junto com a Memória do Coração de Maria, no dia seguinte (70 dias após a Páscoa), compõe o último “eco” da celebração anual da Morte-Ressurreição do Senhor.

Santo Inácio de Loyola e São Luís Gonzaga adoram o Sagrado Coração
(José de Páez, 1770, México)

As raízes da devoção ao Sagrado Coração

O culto ao Sagrado Coração de Jesus tem suas origens mais remotas na devoção às Chagas de Cristo. Esta origina-se nos séculos XII e XIII com as peregrinações aos locais da Paixão na Terra Santa e, ao mesmo tempo, como reação à heresia dos cátaros. Estes possuíam uma concepção dualista - considerando o espírito como bom e a matéria como má -, negando assim o valor da Encarnação e da Morte de Cristo.

Para combater tal heresia, as ordens religiosas passaram a enfatizar a devoção à Paixão, incluindo portanto o culto ao coração de Cristo atravessado pela lança. Destacam-se primeiramente São Bernardo de Claraval (†1153) e São Boaventura (†1274) e, nos séculos XIV-XV, as Santas Matilde de Magdeburgo (†1282), Matilde de Hackeborn (†1299) e Gertrudes de Helfta (†1302) na Alemanha e as Santas Ângela de Foligno (†1309) e Catarina de Sena (†1380) na Itália.

A partir da fundação da Companhia de Jesus em 1534, os missionários jesuítas colaboraram na difusão da devoção, inclusive no Brasil. Em Guarapari (Espírito Santo) foi construída em 1585 por São José de Anchieta a primeira capela em honra do Sagrado Coração de Jesus (tendo Santa Ana como co-padroeira) [2].

São João Eudes, grande "apóstolo" do Sagrado Coração

São João Eudes (†1680), fundador da Congregação de Jesus e Maria, é considerado o grande “apóstolo” do Sagrado Coração de Jesus. Com a aprovação do Bispo de Rennes (França), Dom Charles-François de La Vieuville, instituiu a festa em honra do Coração de Cristo no âmbito da sua Congregação em 1672.

Também merece destaque neste período Santa Margarida Maria Alacoque (†1690), religiosa da Ordem da Visitação de Santa Maria. No mosteiro de Paray-le-Monial (França) ela teria supostamente recebido aparições de Cristo, que a incentivou a propagar a devoção ao seu Coração, sendo apoiada nesse intento por seu diretor espiritual, São Cláudio de la Colombière (†1682).

Santa Margarida Maria Alacoque com uma estampa do Sagrado Coração

Instituição da festa litúrgica do Coração de Jesus

Inicialmente houve bastante resistência à devoção: a ênfase no coração material de Cristo foi rejeitada pela maioria dos teólogos. Com o tempo foi esclarecido que o objeto dessa devoção é o mistério do amor de Cristo em sua totalidade, simbolizado em seu coração.

A festa litúrgica do Sagrado Coração seria aprovada por decreto da Congregação dos Ritos em 25 de janeiro de 1765, no pontificado do Papa Clemente XIII, a ser celebrada na sexta-feira após a oitava de Corpus Christi. Porém, inicialmente a festa foi restrita à Polônia e à Arquiconfraria do Sagrado Coração de Jesus em Roma.

A festa do Sagrado Coração seria instituída para toda a Igreja somente no século seguinte, com o decreto emanado pela Congregação dos Ritos no dia 23 de agosto de 1856, sob o pontificado do Papa Pio IX.

Pio IX, Papa que instituiu a festa do Sagrado Coração para toda a Igreja (1856)

Pouco anos depois, em 1899, o Papa Leão XIII aprovou a Ladainha (cf. nossa postagem sobre a história e o texto da Ladainha clicando aqui) e, em sua Encíclica Annum Sacrum, anunciou a consagração de toda a humanidade ao Sagrado Coração de Jesus no contexto do Jubileu de 1900.

Em 1928 o Papa Pio XI elevou a festa ao grau de Solenidade com oitava e propôs novas orações para a Missa (incluindo um Prefácio próprio, uma vez que até então tomava-se o Prefácio da Santa Cruz) e a Liturgia das Horas, que seriam inauguradas no ano seguinte [3].

Da ênfase apenas na Paixão as orações passam a destacar a reparação, isto é, o pedido de perdão pelos nossos pecados como resposta ao amor de Cristo, manifestado em seu coração. Tal tema foi destacado pelo Pontífice na Encíclica Miserentissimus Redemptor.

Com a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II foram mantidas as orações do dia e sobre as oferendas, sendo acrescidas uma 2ª opção de coleta e uma nova oração após a Comunhão, além de um novo prefácio (inspirado nas reflexões dos Santos Padres) e leituras para os três anos do ciclo dominical e festivo (A-B-C). Foi também suprimida a oitava, mantida apenas para as duas maiores Solenidades do Ano Litúrgico, isto é, a Páscoa e o Natal.

Pio XI, Papa que reformou a Liturgia da festa (1928)

Cabe recordar ainda que no Missal anterior à reforma litúrgica era prevista a Missa votiva ao Sagrado Coração de Jesus para as sextas-feiras, dada a associação deste mistério com a Paixão. Na atual edição do Missal conserva-se tal Missa votiva, porém sem a indicação do dia de semana.

Não obstante, pode conservar-se onde for costume a celebração da Missa votiva ao Sagrado Coração na primeira sexta-feira de cada mês (prática difundida por Santa Margarida Alacoque), desde que neste dia sejam permitidas as Missas votivas [4].

“O sacerdócio é o amor do Coração de Jesus” (São João Maria Vianney)

A partir de 1995, a Solenidade do Sagrado Coração de Jesus é também o Dia de Oração pela Santificação dos Sacerdotes, como testemunha o Papa São João Paulo II em sua Carta aos Sacerdotes por ocasião da Quinta-feira Santa de 1995.

Neste sentido, o Papa Bento XVI celebrou tanto a abertura quanto o encerramento do Ano Sacerdotal na Solenidade do Sagrado Coração (2009-2010), enquanto o Papa Francisco celebrou nessa Solenidade o Jubileu dos Sacerdotes no Ano da Misericórdia (2016).

Sagrado Coração de Jesus com os Doze Apóstolos
(Vitral da igreja do Santíssimo Salvador - Plancoët, França)

Notas:

[1] Anúncio das Solenidades Móveis, a ser proclamado após o Evangelho na Solenidade da Epifania do Senhor. O Diretório Litúrgico da CNBB oferece o texto para cada ano.

[2] Posteriormente, após a expulsão dos jesuítas, a igreja foi abandonada. Sendo recuperada no final do século XIX, passou a ter Nossa Senhora da Conceição como padroeira.


[4] Nos dias de semana do Tempo Comum as Missas votivas são sempre permitidas. Nas memórias obrigatórias, nos dias de semana do Advento (até 16 de dezembro), do Natal e da Páscoa são permitidas, a juízo do sacerdote. Nas festas, nos dias 17 a 24 de dezembro, na oitava do Natal e nos dias de semana da Quaresma são permitidas apenas com a autorização do Bispo diocesano. Nas solenidades e na oitava da Páscoa são sempre proibidas.

Referências:

ADAM, Adolf. O Ano Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica. São Paulo: Loyola, 2019, pp. 127-129.

AUGÉ, Matias. Ano Litúrgico: É o próprio Cristo presente na sua Igreja. São Paulo: Paulinas, 2019, pp. 270-273.

BERGAMINI, Augusto. Cristo, festa da Igreja: História, teologia, espiritualidade e pastoral do ano litúrgico. São Paulo: Paulinas, 1994, pp. 432-434.

RIGHETTI, Mario. Historia de la Liturgia, v. I: Introducción general; El año litúrgico; El Breviario. Madrid: BAC, 1955, pp. 875-877.


Postagem publicada originalmente em 11 de junho de 2012. Revista e ampliada em 29 de maio de 2021.

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