“Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo” (Mt 28,19).
No domingo após a Solenidade de Pentecostes, 57 dias após a
Páscoa, a Igreja de Rito Romano celebra a Solenidade da Santíssima Trindade (Sollemnitas Sanctissimae Trinitatis), cuja história gostaríamos de traçar brevemente nesta postagem.
1. As origens do culto à Santíssima Trindade
A revelação da Santíssima Trindade, “mistério central da fé e
da vida cristã” (cf. Catecismo da Igreja
Católica, nn. 232-267), nos é dada através da Sagrada Escritura e da Tradição.
Esse mistério foi sistematizado no Símbolo dos Apóstolos, a
profissão de fé batismal da Igreja romana (séc. III): - “Creio em Deus Pai...
Creio em Jesus Cristo, seu único Filho... Creio no Espírito Santo...”; e aprofundado
no Símbolo Niceno-Constantinopolitano, fruto dos Concílios de Niceia (325) e
Constantinopla (381).
Os Padres da Igreja e os teólogos de todos os tempos refletiram
sempre sobre esse mistério. Destacamos aqui Santo Agostinho (†430), que
interpreta a Trindade à luz da afirmação da Primeira
Carta de João, “Deus é amor” (1Jo
4,8.16): o Pai é “Aquele que ama”, o Filho é “Aquele que é amado” e o Espírito é
o próprio “Amor” [1].
O culto litúrgico específico da Santíssima Trindade surge a
partir do final do século VIII, fruto da devoção privada dos monges, sobretudo
na região da atual França.
Nesse período, Alcuíno de York (†804), então abade de um mosteiro
próximo a Tours (França), propôs uma série de Missas votivas, com formulários para todos os dias da semana, correspondendo ao
domingo a Missa votiva da Santíssima Trindade (Missa de Sancta Trinitate).
Nos séculos seguintes, por sua vez, surgem vários ofícios e hinos em honra da Trindade. Dentre os ofícios - com hinos, antífonas e responsórios para a Liturgia das Horas - destacam-se o composto no início do século X pelo Bispo de Liège (Bélgica),
Étienne (†920), In festo Sanctissimae Trinitatis; e o composto no século XII pelo o franciscano John Peckham
(†1292), Arcebispo de Canterbury (Inglaterra): Officium Sanctissimae
Trinitatis;
Quanto às sequências, composições poéticas a serem entoadas antes do Evangelho da Missa, destaca-se, entre o final do século IX e o início do século X, o célebre Notker
Balbulus (†912), monge beneditino da Abadia de Sankt Gallen (Suíça), cuja composição em honra da Trindade intitula-se Benedicta
semper Sancta sit Trinitas.
No século XII, por sua vez, destaca-se a sequência Profitentes unitatem, atribuída a Adão
de São Vítor (†1146), monge da Abadia de São Vítor em Paris (França).
2. O caminho rumo à instituição da Festa
A Missa votiva da Santíssima Trindade elaborada por Alcuíno logo
começou a difundir-se entre os mosteiros de toda a Europa, sendo atestada em
alguns livros litúrgicos dos séculos X-XI, como o Sacramentário do Mosteiro de Fulda (Alemanha) e o Sacramentário de Pádua (Itália). Sua
difusão, porém, deve-se sobretudo à celebre Abadia de Cluny (França), onde foi
acolhida no ano de 1030.
Alcuíno de York, promotor da Missa votiva à Trindade |
Embora Alcuíno houvesse proposto essa Missa votiva para
todos os domingos, logo se estabeleceu o 1º Domingo após o Pentecostes como a
Festa da Santíssima Trindade.
Nessa época este era um “domingo vacante” (Dominica vacans), pois o Papa São Gregório
VII (†1085) fixara as Têmporas de verão (no hemisfério norte) na oitava de
Pentecostes, cuja celebração culminava em uma solene vigília na noite do sábado: por isso, no domingo não se celebrava a Missa.
Sendo um domingo “vacante”, os monges quiseram consagrá-lo à
celebração da Trindade, pois com a efusão do Espírito Santo sobre os Apóstolos em Pentecostes completou-se a revelação da Trindade (cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 732) e começou a missão da
Igreja, com o anúncio do Evangelho a todas as nações e o Batismo “em nome do
Pai e do Filho e do Espírito Santo” (Mt
28,18-20). Essa explicação é atestada, por exemplo, por Ruperto de Deutz (†1129), em sua obra De Divinis Officiis.
Para acessar nossa postagem sobre a história da Solenidade de Pentecostes, clique aqui.
À medida que a celebração da Vigília das Têmporas foi sendo
gradativamente antecipada para a manhã do sábado, também algumas Dioceses,
sobretudo na França e na Alemanha, começaram a celebrar a Festa da Santíssima
Trindade no domingo após o Pentecostes. Outras, porém, celebravam-na no último
domingo do Ano Litúrgico, antes do Advento (no dia em que atualmente celebramos Cristo Rei).
Objeções à instituição da Festa
A princípio a festa encontrou resistência por parte dos
teólogos. O Papa Alexandre II (†1073) teria argumentado que todo domingo e mesmo
todo dia era celebração do Deus Uno e Trino: “cum in omni dominica, imo quotidie, memoria celebretur”. Posição semelhante adotaria o Papa Alexandre
III (†1181) no século seguinte.
Trono da graça: A Trindade ladeada por Maria e João (Anônimo do século XIII) |
Com efeito, praticamente todas as celebrações litúrgicas
começam e terminam com a invocação da Santíssima Trindade; a oração litúrgica é
dirigida ao Pai, pelo Filho, no Espírito Santo (cf. Catecismo, nn.
1077-1112).
Para saber mais, confira: a Liturgia, obra da Trindade: Deus Pai / Deus Filho / Deus Espírito Santo.
Mesmo a piedade popular é convidada a deixar-se iluminar
pelo mistério trinitário (cf. Diretório
sobre Piedade Popular e Liturgia, nn. 76-80.157-160). Muitas práticas de
piedade popular, com efeito, têm como “refrão” a doxologia: “Glória ao Pai e ao
Filho e ao Espírito Santo. Como era no princípio, agora e sempre. Amém”.
Além disso, cabe destacar que a Liturgia não celebra
“temas”, mas sim a história da salvação. Por isso as festas instituídas no primeiro milênio da Era cristã, acolhidas pelas Igrejas do Oriente e do Ocidente, são
“festas dinâmicas”, que celebram eventos da história da salvação: Páscoa, Natal,
Pentecostes...
Apenas no segundo milênio surgiram as festas “estáticas” ou
“temáticas”, tipicamente ocidentais, que celebram “ideias teológicas” ou
devoções: Santíssima Trindade, Corpus Christi, Sagrado Coração de Jesus... [2]. Contudo, também essas
festas devem ser celebradas à luz da história da salvação.
Com efeito, para os cristãos orientais, sobretudo de Rito
Bizantino, o “Domingo da Santíssima Trindade” é o próprio Domingo de
Pentecostes, quando se completou a revelação da Trindade. No domingo seguinte,
por sua vez, celebra-se a Festa de Todos os Santos, pois o Espírito é a fonte
de toda a santidade.
No Domingo de Pentecostes, com efeito, muitas igrejas orientais expõem à veneração dos fiéis o ícone da Trindade, cujo modelo mais famoso é aquele
realizado pelo iconógrafo russo Andrei Rublev (†1430).
Esse ícone remete justamente a um evento da história da salvação: a filoxenia (hospitalidade) de Abraão, que
acolheu em sua tenda, junto ao carvalho de Mambré, três misteriosos
viajantes (Gn 18,1-14). Os Padres da
Igreja viram nesses três personagens uma prefiguração da Trindade, como fica
claro na expressão de Santo Agostinho: Tres
vidit, unum adoravit (“Tendo visto os três, adora a um”) [3].
Ícone da Santíssima Trindade (Andrei Rublev, século XV) |
No Ocidente, por sua vez, a representação da Trindade mais
comum é através da composição chamada “Trono da graça” (Thronum gratiae) ou “Trono da misericórdia” (Thronum misericordiae): o Pai, representado como o “Ancião de
muitos dias” (cf. Dn 7,9-10), sentado
em um trono (cf. Ap 4–5), segura em
suas mãos o Filho Crucificado ou o corpo de Cristo deposto da cruz, com as
marcas da Paixão, enquanto o Espírito Santo sobrevoa a cena em forma de pomba (cf. Mt 3,16 e paralelos) [4]. Às vezes aparecem ainda a Virgem Maria e João, testemunhas da Crucificação, representando a Igreja que contempla o mistério da Trindade.
Essa composição, cujo título é inspirado em Hb 4,16, destaca o caráter trinitário do
Mistério Pascal da Morte-Ressureição de Cristo, “Filho de Deus
feito homem, o qual, livremente e por amor, oferece sua vida a seu Pai pelo
Espírito Santo” (Catecismo, n. 614).
3. A instituição da Festa da Santíssima Trindade
Superadas as objeções iniciais, a Festa da Santíssima
Trindade foi instituída para toda a Igreja de Rito Romano pelo Papa João XXII em 1334, mesmo ano de sua morte. Para a Missa, foram indicadas as orações propostas por
Alcuíno no século IX.
A reforma litúrgica do Concílio Vaticano II optou por
conservar a Solenidade da Santíssima Trindade no domingo após o Pentecostes, “como
uma espécie de olhar retrospectivo de ação de graças sobre todo o mistério
salvífico que o Pai opera no Filho pelo Espírito Santo” [5].
Conservaram-se igualmente as orações de Alcuíno, com
pequenas alterações, sobretudo na oração do dia (coleta), enriquecida com
referências bíblicas: o Pai enviou ao mundo o Filho (Jo 3,17), “Palavra da verdade” (Ef
1,13), e o “Espírito santificador” (Rm
1,4) [6].
Também permanece o Prefácio da Santíssima Trindade (Praefatio de Sanctissima Trinitate), que
remonta ao Sacramentário Gelasiano
(séc. VII-VIII), que exprime a doutrina trinitária com uma linguagem precisa,
mais “dogmática” que “poética”.
A partir dos séculos XII-XIII este Prefácio passou a ser
usado em todos os Domingos “após a Epifania” e “após o Pentecostes” [7]. Tal
prática perdurou até o Concílio Vaticano II, quando foram elaborados novos
textos para o Tempo Comum, ficando o Prefácio da Trindade restrito à
respectiva Solenidade.
Relevo do Papa João XXII, que instituiu a Festa da Trindade |
Além das orações, o grande mérito da reforma litúrgica é a
maior oferta dos “tesouros da Palavra de Deus” (cf. Sacrosanctum Concilium,
nn. 35.51). Anteriormente nesse domingo liam-se sempre os mesmos textos (Rm 11,33-36; cântico de Dn 3,55-56; Mt 28,18-20); atualmente, como em todos os domingos e solenidades,
a Liturgia da Palavra segue o ciclo trienal (anos A-B-C):
Ano A: Ex 34,4b-6.8-9; cântico de Dn 3,52-56; 2Cor 13,11-13; Jo 3,16-18;
Ano B: Dt 4,32-34.39-40; Sl 32; Rm 8,14-17; Mt 28,16-20;
Ano C: Pr 8,22-31; Sl 8; Rm 5,1-5; Jo 16,12-15.
Cabe recordar ainda que se conserva no Missal Romano a Missa votiva da Santíssima Trindade, com as orações e
leituras da respectiva Solenidade.
Quanto à Liturgia das Horas, destacam-se os três hinos de
nova composição, elaborados pela comissão coordenada pelo Padre Anselmo Lentini
(†1989):
Vésperas: Imménsa et una, Trínitas (Ó Trindade
imensa e una);
Ofício: Te Patrem summum genitúmque Verbum (A
vós, Pai santo, ao Verbo);
Laudes: Trínitas, summo sólio corúscans (Ó
Trindade, num sólio supremo).
Os hinos recitados anteriormente nesse domingo, por sua vez,
foram distribuídos ao longo das quatro semanas do Saltério.
Ainda em relação à Liturgia das Horas, cabe recordar o Símbolo
Atanasiano ou Quicumque, que era
recitado todos os domingos na hora Prima, o primeiro ofício do dia, no início
da manhã.
Após a reforma litúrgica do Papa São Pio X (†1914), por sua
vez, esse Símbolo passou a ser recitado apenas nos Domingos após a Epifania e
após o Pentecostes (isto é, nos Domingos do Tempo Comum), até que, em 1960, São João XXIII (†1963) o restringiu ao
Domingo da Santíssima Trindade.
A reforma litúrgica suprimiu a hora Prima, uma vez que essa
se confundia com as Laudes. Assim, o Credo Atanasiano ficou excluído da
Liturgia, embora possa ser recitado como ato de devoção pessoal.
Trono da graça: A Trindade com Maria e João e dois devotos (Masaccio, século XV) |
À guisa de conclusão
Tanto Augusto Bergamini quanto Matias Augé indicam que o significado da Solenidade da Santíssima Trindade está resumido no n. 2 da Constituição Dogmática Dei
Verbum do Concílio Vaticano II, que reproduzimos aqui à guisa de conclusão:
“Aprouve a Deus, na sua bondade e sabedoria, revelar-se a Si
mesmo e dar a conhecer o mistério da sua vontade, segundo o qual os homens, por meio de Cristo, Verbo
encarnado, têm acesso ao Pai no Espírito Santo e se tornam participantes da
natureza divina” (Dei Verbum, n. 2).
Notas:
[1] cf. AGOSTINHO.
A Trindade VIII, 10 - IX, 4. São
Paulo: Paulus, 1995, pp. 284-294. Coleção: Patrística,
07.
[2] cf. BERGER,
Rupert. Dicionário de Liturgia Pastoral:
Obra de consulta sobre todas as questões referentes à Liturgia. São Paulo:
Loyola, 2010, pp. 164-166.
[3] cf. AGOSTINHO,
Contra Maximinum, livro 2, cap. XXVI,
7.
Expressões semelhantes encontram-se em autores anteriores,
como Hilário de Poitiers (†367): HILÁRIO DE POITIERS. Tratado sobre a Santíssima Trindade, IV, 25. São Paulo: Paulus,
2005, p. 67. Coleção: Patrística, 22.
[4] Para saber mais, cf.
ANTUNES, Otávio Ferreira. A beleza como
experiência de Deus. São Paulo: Paulus, 2010, pp. 105-119 (A imagem da Trindade).
HEINZ-MOHR, Gerd. Dicionário
dos Símbolos: Imagens e sinais da arte cristã. São Paulo: Paulus, 1994, pp
350-352.
[5] ADAM, Adolf. O Ano
Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica.
São Paulo: Loyola, 2019, p. 122.
[6] cf. MISSAL
ROMANO. Tradução portuguesa da 2ª edição
típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1991, pp. 379-380.
[7] Para saber mais, cf.
JUNGMANN, Josef Andreas. Missarum
Sollemnia: Origens, liturgia, história e teologia da Missa romana. São
Paulo: Paulus, 2009, pp. 589-592.
Vitrais da Santíssima Trindade (Santuário Nacional da Imaculada Conceição, Washington) |
Referências:
ADAM, Adolf. O Ano
Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica.
São Paulo: Loyola, 2019, pp. 122-123.
AUGÉ, Matias. Ano
Litúrgico: É o próprio Cristo presente na sua Igreja. São Paulo: Paulinas,
2019, pp. 262-265.
BERGAMINI, Augusto. Cristo,
festa da Igreja: O ano litúrgico. São Paulo: Paulinas, 1994, pp. 427-430.
MERSHMAN, Francis. Trinity
Sunday. in: Catholic Encyclopedia, vol. 15, 1912. Disponível em: New Advent.
RIGHETTI, Mario. Historia
de la Liturgia, v. I: Introducción general; El año litúrgico; El Breviario.
Madrid: BAC, 1945, pp. 867-869.
SCHUSTER, Cardeal Alfredo Ildefonso. Liber Sacramentorum: Note storiche e liturgiche sul Messale Romano;
v. V: Le nozze eterne dell’Agnello (La Sacra Liturgia dalla Domenica della
Trinità all’Avvento). Torino-Roma: Marietti, 1930, pp. 75-79.
Boa noite André.
ResponderExcluirVi que essa liturgia, não tem um salmo específico e sim o cântico de Daniel ano A. Pq essa liturgia e tb nao pode ser outro salmo, isso esta no lecionario?
Sim, está previsto no Lecionário.
ExcluirNa verdade são várias as ocasiões em que um cântico tomado sobretudo dos livros do Antigo Testamento é entoado como salmo.
Inclusive o cântico da Virgem Maria, o Magnificat (Lc 1,46-55) é entoado como salmo em algumas celebrações.
Muito agradeço a verdadeira história , a qual podemos apresentá-la aos nossos irmãos nas pastorais das nossas igrejas. Creio.
ResponderExcluirGratidão!
Paz e bem!