sexta-feira, 10 de junho de 2022

A história da Solenidade da Santíssima Trindade

“Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo” (Mt 28,19).

No domingo após a Solenidade de Pentecostes, 57 dias após a Páscoa, a Igreja de Rito Romano celebra a Solenidade da Santíssima Trindade (Sollemnitas Sanctissimae Trinitatis), cuja história gostaríamos de traçar brevemente nesta postagem.

1. As origens do culto à Santíssima Trindade

A revelação da Santíssima Trindade, “mistério central da fé e da vida cristã” (cf. Catecismo da Igreja Católica, nn. 232-267), nos é dada através da Sagrada Escritura e da Sagrada Tradição.

Esse mistério foi sistematizado no Símbolo dos Apóstolos, a profissão de fé batismal da Igreja romana (séc. III): - “Creio em Deus Pai... Creio em Jesus Cristo, seu único Filho... Creio no Espírito Santo...”; e aprofundado no Símbolo Niceno-Constantinopolitano, fruto dos Concílios de Niceia (325) e Constantinopla (381).


Os Padres da Igreja e os teólogos de todos os tempos refletiram sempre sobre esse mistério. Destacamos aqui Santo Agostinho (†430), que interpreta a Trindade à luz da afirmação da Primeira Carta de João, “Deus é amor” (1Jo 4,8.16): o Pai é “Aquele que ama”, o Filho é “Aquele que é amado” e o Espírito é o próprio “Amor” [1].

O culto litúrgico específico da Santíssima Trindade surge a partir do final do século VIII, fruto da devoção privada dos monges, sobretudo na região da atual França.

Nesse período, Alcuíno de York (†804), então abade de um mosteiro próximo a Tours (França), uma série de Missas votivas para cada dia da semana, correspondendo ao domingo a Missa votiva da Santíssima Trindade (Missa de Sancta Trinitate).

Nos séculos seguintes, por sua vez, surgem vários ofícios e hinos em honra da Trindade. Dentre os ofícios - com hinos, antífonas e responsórios para a Liturgia das Horas - destacam-se o composto no início do século X pelo Bispo de Liège (Bélgica), Étienne (†920), In festo Sanctissimae Trinitatis; e o composto no século XII pelo o franciscano John Peckham (†1292), Arcebispo de Canterbury (Inglaterra): Officium Sanctissimae Trinitatis;

Quanto às sequências, composições poéticas a serem entoadas antes do Evangelho da Missa, destaca-se, entre o final do século IX e o início do século X, o célebre Notker Balbulus (†912), monge beneditino da Abadia de Sankt Gallen (Suíça), cuja composição em honra da Trindade intitula-se Benedicta semper Sancta sit Trinitas.

No século XII, por sua vez, destaca-se a sequência Profitentes unitatem, atribuída a Adão de São Vítor (†1146), monge da Abadia de São Vítor em Paris (França).

2. O caminho rumo à instituição da Festa

A Missa votiva da Santíssima Trindade elaborada por Alcuíno logo começou a difundir-se entre os mosteiros de toda a Europa, sendo atestada em alguns livros litúrgicos dos séculos X-XI, como o Sacramentário do Mosteiro de Fulda (Alemanha) e o Sacramentário de Pádua (Itália). Sua difusão, porém, deve-se sobretudo à celebre Abadia de Cluny (França), onde foi acolhida no ano de 1030.

Alcuíno de York, promotor da Missa votiva à Trindade

Embora Alcuíno houvesse proposto essa Missa votiva para todos os domingos, logo se estabeleceu o 1º Domingo após o Pentecostes como a Festa da Santíssima Trindade.

Nessa época este era um “domingo vacante” (Dominica vacans), pois o Papa São Gregório VII (†1085) fixara as Têmporas de verão (no hemisfério norte) na oitava de Pentecostes, cuja celebração culminava em uma solene vigília na noite do sábado: por isso, no domingo não se celebrava a Missa.

Sendo um domingo “vacante”, os monges quiseram consagrá-lo à celebração da Trindade, pois com a efusão do Espírito Santo sobre os Apóstolos em Pentecostes completou-se a revelação da Trindade (cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 732) e começou a missão da Igreja, com o anúncio do Evangelho a todas as nações e o Batismo “em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo” (Mt 28,18-20). Essa explicação é atestada, por exemplo, por Ruperto de Deutz (†1129), em sua obra De Divinis Officiis.

Para acessar nossa postagem sobre a história da Solenidade de Pentecostes, clique aqui.

À medida que a celebração da Vigília das Têmporas foi sendo gradativamente antecipada para a manhã do sábado, também algumas Dioceses, sobretudo na França e na Alemanha, começaram a celebrar a Festa da Santíssima Trindade no domingo após o Pentecostes. Outras, porém, celebravam-na no último domingo do Ano Litúrgico, antes do Advento (no dia em que atualmente celebramos Cristo Rei).

Objeções à instituição da Festa

A princípio a festa encontrou resistência por parte dos teólogos. O Papa Alexandre II (†1073) teria argumentado que todo domingo e mesmo todo dia era celebração do Deus Uno e Trino: “cum in omni dominica, imo quotidie, memoria celebretur”. Posição semelhante adotaria o Papa Alexandre III (†1181) no século seguinte.

Trono da graça: A Trindade ladeada por Maria e João
(Anônimo do século XIII)

Com efeito, praticamente todas as celebrações litúrgicas começam e terminam com a invocação da Santíssima Trindade; a oração litúrgica é dirigida ao Pai, pelo Filho, no Espírito Santo (cf. Catecismo, nn. 1077-1112).

A Liturgia, obra da Trindade: Deus Pai / Deus Filho / Deus Espírito Santo

Mesmo a piedade popular é convidada a deixar-se iluminar pelo mistério trinitário (cf. Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia, nn. 76-80.157-160). Muitas práticas de piedade popular, com efeito, têm como “refrão” a doxologia: “Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo. Como era no princípio, agora e sempre. Amém”.

Além disso, cabe destacar que a Liturgia não celebra “temas”, mas sim a história da salvação. Por isso as festas instituídas no I milênio da Era cristã, acolhidas pelas Igrejas do Oriente e do Ocidente, são “festas dinâmicas”, que celebram eventos da história da salvação: Páscoa, Natal, Pentecostes...

Apenas no II milênio surgiram as festas “estáticas” ou “temáticas”, tipicamente ocidentais, que celebram “ideias teológicas” ou devoções: Santíssima Trindade, Corpus Christi, Sagrado Coração de Jesus... [2]. Contudo, também essas festas devem ser celebradas à luz da história da salvação.

Com efeito, para os cristãos orientais, sobretudo no Rito Bizantino, o “Domingo da Santíssima Trindade” é o próprio Domingo de Pentecostes, quando se completou a revelação da Trindade. No domingo seguinte, por sua vez, celebra-se a Festa de Todos os Santos, pois o Espírito é a fonte de toda a santidade.

No Domingo de Pentecostes muitas igrejas orientais expõem para a veneração dos fiéis o ícone da Trindade, cujo modelo mais famoso é aquele realizado pelo iconógrafo russo Andrei Rublev (†1430).

Esse ícone remete justamente a um evento da história da salvação: a filoxenia (hospitalidade) de Abraão, que acolheu em sua tenda, junto ao carvalho de Mambré, três misteriosos viajantes (Gn 18,1-14). Os Padres da Igreja viram nesses três personagens uma prefiguração da Trindade, como fica claro na expressão de Santo Agostinho: Tres vidit, unum adoravit (“Tendo visto os três, adora a um”) [3].

Ícone da Santíssima Trindade
(Andrei Rublev, século XV)

No Ocidente, por sua vez, a representação da Trindade mais comum é através da composição chamada “Trono da graça” (Thronum gratiae) ou “Trono da misericórdia” (Thronum misericordiae): o Pai, representado como o “Ancião de muitos dias” (cf. Dn 7,9-10), sentado em um trono (cf. Ap 4–5), segura em suas mãos o Filho Crucificado ou o corpo de Cristo deposto da cruz, com as marcas da Paixão, enquanto o Espírito Santo sobrevoa a cena em forma de pomba (cf. Mt 3,16 e paralelos) [4]. Às vezes aparecem ainda a Virgem Maria e João, testemunhas da Crucificação, representando a Igreja que contempla o mistério da Trindade.

Essa composição, cujo título é inspirado em Hb 4,16, destaca o caráter trinitário do Mistério Pascal da Morte-Ressureição de Cristo, “Filho de Deus feito homem, o qual, livremente e por amor, oferece sua vida a seu Pai pelo Espírito Santo” (Catecismo, n. 614).

3. A instituição da Festa da Santíssima Trindade

Superadas as objeções iniciais, a Festa da Santíssima Trindade foi instituída para toda a Igreja de Rito Romano pelo Papa João XXII em 1334, mesmo ano de sua morte. Para a Missa, foram indicadas as orações propostas por Alcuíno no século IX.

A reforma litúrgica do Concílio Vaticano II optou por conservar a Solenidade da Santíssima Trindade no domingo após o Pentecostes, “como uma espécie de olhar retrospectivo de ação de graças sobre todo o mistério salvífico que o Pai opera no Filho pelo Espírito Santo” [5].

Conservaram-se igualmente as orações de Alcuíno, com pequenas alterações, sobretudo na oração do dia (coleta), enriquecida com referências bíblicas: o Pai enviou ao mundo o Filho (Jo 3,17), “Palavra da verdade” (Ef 1,13), e o “Espírito santificador” (Rm 1,4) [6].

Também permanece o Prefácio da Santíssima Trindade (Praefatio de Sanctissima Trinitate), que remonta ao Sacramentário Gelasiano (séc. VII-VIII), que exprime a doutrina trinitária com uma linguagem precisa, mais “dogmática” que “poética”.

A partir dos séculos XII-XIII este Prefácio passou a ser usado em todos os Domingos “após a Epifania” e “após o Pentecostes” [7]. Tal prática perdurou até o Concílio Vaticano II, quando foram elaborados novos textos para o Tempo Comum, ficando o Prefácio da Trindade restrito à respectiva Solenidade.

Relevo do Papa João XXII, que instituiu a Festa da Trindade

Além das orações, o grande mérito da reforma litúrgica é a maior oferta dos “tesouros da Palavra de Deus” (cf. Sacrosanctum Concilium, nn. 35.51). Anteriormente nesse domingo liam-se sempre os mesmos textos (Rm 11,33-36; cântico de Dn 3,55-56; Mt 28,18-20); atualmente, como em todos os domingos e solenidades, a Liturgia da Palavra segue o ciclo trienal (anos A-B-C):

Ano A: Ex 34,4b-6.8-9; cântico de Dn 3,52-56; 2Cor 13,11-13; Jo 3,16-18;
Ano B: Dt 4,32-34.39-40; Sl 32; Rm 8,14-17; Mt 28,16-20;
Ano C: Pr 8,22-31; Sl 8; Rm 5,1-5; Jo 16,12-15.

Cabe recordar ainda que se conserva no Missal Romano a Missa votiva da Santíssima Trindade, com as orações e leituras da respectiva Solenidade.

Quanto à Liturgia das Horas, destacam-se os três hinos de nova composição, elaborados pela comissão coordenada pelo Padre Anselmo Lentini (†1989):
Vésperas: Imménsa et una, Trínitas (Ó Trindade imensa e una);
Ofício: Te Patrem summum genitúmque Verbum (A vós, Pai santo, ao Verbo);
Laudes: Trínitas, summo sólio corúscans (Ó Trindade, num sólio supremo).

Os hinos recitados anteriormente nesse domingo, por sua vez, foram distribuídos ao longo das quatro semanas do Saltério.

Ainda em relação à Liturgia das Horas, cabe recordar o Símbolo Atanasiano ou Quicumque, que era recitado todos os domingos na hora Prima, o primeiro ofício do dia, no início da manhã.

Após a reforma litúrgica do Papa São Pio X (†1914), por sua vez, esse Símbolo passou a ser recitado apenas nos Domingos após a Epifania e após o Pentecostes (isto é, nos Domingos do Tempo Comum), até que, em 1960, São João XXIII (†1963) o restringiu ao Domingo da Santíssima Trindade.

A reforma litúrgica suprimiu a hora Prima, uma vez que essa se confundia com as Laudes. Assim, o Credo Atanasiano ficou excluído da Liturgia, embora possa ser recitado como ato de devoção pessoal.

Trono da graça: A Trindade com Maria e João e dois devotos
(Masaccio, século XV)

À guisa de conclusão

Tanto Augusto Bergamini quanto Matias Augé indicam que o significado da Solenidade da Santíssima Trindade está resumido no n. 2 da Constituição Dogmática Dei Verbum do Concílio Vaticano II, que reproduzimos aqui à guisa de conclusão:

“Aprouve a Deus, na sua bondade e sabedoria, revelar-se a Si mesmo e dar a conhecer o mistério da sua vontade, segundo o qual os homens, por meio de Cristo, Verbo encarnado, têm acesso ao Pai no Espírito Santo e se tornam participantes da natureza divina” (Dei Verbum, n. 2).

Notas:

[1] cf. AGOSTINHO. A Trindade VIII, 10 - IX, 4. São Paulo: Paulus, 1995, pp. 284-294. Coleção: Patrística, 07.

[2] cf. BERGER, Rupert. Dicionário de Liturgia Pastoral: Obra de consulta sobre todas as questões referentes à Liturgia. São Paulo: Loyola, 2010, pp. 164-166.

[3] cf. AGOSTINHO, Contra Maximinum, livro 2, cap. XXVI, 7.
Expressões semelhantes encontram-se em autores anteriores, como Hilário de Poitiers (†367): HILÁRIO DE POITIERS. Tratado sobre a Santíssima Trindade, IV, 25. São Paulo: Paulus, 2005, p. 67. Coleção: Patrística, 22.

[4] Para saber mais, cf. ANTUNES, Otávio Ferreira. A beleza como experiência de Deus. São Paulo: Paulus, 2010, pp. 105-119 (A imagem da Trindade).
HEINZ-MOHR, Gerd. Dicionário dos Símbolos: Imagens e sinais da arte cristã. São Paulo: Paulus, 1994, pp 350-352.

[5] ADAM, Adolf. O Ano Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica. São Paulo: Loyola, 2019, p. 122.

[6] cf. MISSAL ROMANO. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1991, pp. 379-380.

[7] Para saber mais, cf. JUNGMANN, Josef Andreas. Missarum Sollemnia: Origens, liturgia, história e teologia da Missa romana. São Paulo: Paulus, 2009, pp. 589-592.

Vitrais da Santíssima Trindade
(Santuário Nacional da Imaculada Conceição, Washington)

Referências:

ADAM, Adolf. O Ano Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica. São Paulo: Loyola, 2019, pp. 122-123.

AUGÉ, Matias. Ano Litúrgico: É o próprio Cristo presente na sua Igreja. São Paulo: Paulinas, 2019, pp. 262-265.

BERGAMINI, Augusto. Cristo, festa da Igreja: O ano litúrgico. São Paulo: Paulinas, 1994, pp. 427-430.

MERSHMAN, Francis. Trinity Sunday. in: Catholic Encyclopedia, vol. 15, 1912. Disponível em: New Advent.

RIGHETTI, Mario. Historia de la Liturgia, v. I: Introducción general; El año litúrgico; El Breviario. Madrid: BAC, 1945, pp. 867-869.

SCHUSTER, Cardeal Alfredo Ildefonso. Liber Sacramentorum: Note storiche e liturgiche sul Messale Romano; v. V: Le nozze eterne dell’Agnello (La Sacra Liturgia dalla Domenica della Trinità all’Avvento). Torino-Roma: Marietti, 1930, pp. 75-79.

2 comentários:

  1. Boa noite André.
    Vi que essa liturgia, não tem um salmo específico e sim o cântico de Daniel ano A. Pq essa liturgia e tb nao pode ser outro salmo, isso esta no lecionario?

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Sim, está previsto no Lecionário.
      Na verdade são várias as ocasiões em que um cântico tomado sobretudo dos livros do Antigo Testamento é entoado como salmo.
      Inclusive o cântico da Virgem Maria, o Magnificat (Lc 1,46-55) é entoado como salmo em algumas celebrações.

      Excluir