domingo, 19 de junho de 2022

Corpus Christi em Lisboa: Homilia

Homilia na Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo
Uma presença real, de consequências precisas

Nesta Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo há muito a considerar, meditar e aprender. Tanto que nunca se abarca de uma vez e cada ano nos revela algo de novo e mais profundo. Podemos considerá-la como compêndio do realismo cristão. Realismo, como São Paulo escreveu aos colossenses, distraídos que andavam com muita coisa secundária ou imaginária: «A realidade está em Cristo!» (Cl 2,17).
Hoje como então, corremos o risco de nos dispersarmos por aspectos marginais do Cristianismo, buscando coisas extraordinárias e miraculosas, no sentido vulgar do termo... Porém - e muito pelo contrário - o que o Cristianismo tem de extraordinário e miraculoso é o fato de acontecer no que há de mais simples e corrente, como apareceu na humanidade de Jesus, enquanto Verbo de Deus encarnado. Ninguém esperaria Deus desse modo, mas nós sabemos e confessamos que assim mesmo foi e continua a ser.
É a substância do realismo cristão. A imensidão divina diz-se e revela-se no pouco mais de trinta anos da vida humana de Jesus. Como a Carta aos Hebreus nos sugere o diálogo entre Jesus e Deus Pai: «Não quiseste sacrifício nem oferenda, mas preparaste-me um corpo» (Hb 10,5).
Um corpo, precisamente, que é o Corpo de Deus Filho entre nós. Corpo infantil do Filho de Maria, que José adotou: um menino a brincar entre os demais, como lembraria depois (cf. Lc 7,32). Corpo já adulto, que em tudo traduziu a misericórdia que trazia. Rosto definido, palavras concretas e gestos transparentes, como sempre teve.


Assim foi, Jesus, “corpo de Deus” neste mundo. Porque dizer “corpo” é dizer manifestação da pessoa que se é, como ser em relação. E porque, sem confundirmos Jesus e Deus Pai, reconhecemos que expressava e concretizava a aproximação divina a cada um, como perfeito Verbo de Deus. Tanto que pôde responder a um discípulo; «Quem me vê, vê o Pai» (Jo 14,9). Mesmo na cruz, tanto se contempla a oferta do Filho como as mãos do Pai e o sopro do Espírito: «Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito! (Lc 23,46)»
Em suma, encontramos tudo o que há de mais real e concreto na revelação de Deus em Cristo. Tudo o que há de mais corpóreo, de Deus para nós, quando o vemos assim.
Creio que é precisamente este realismo cristão o que mais influiu no melhor da cultura de tanto tempo já somado. Assim foi até há dois mil anos como profecia e de então para cá como realização. Identificamos a nossa realidade vivida ou sofrida com a que Cristo viveu e sofreu também. Social e culturalmente, cada passo do seu percurso terreno tornou-se um padrão criativo de identificação absoluta para todos nós. Em Cristo, Deus encontra-nos aí mesmo, no drama comum que a todos nos toca. E é por isso mesmo que consola e salva.
Também deste modo quis ficar conosco. Ouvimo-lo há pouco: «Isto é o meu Corpo, entregue por vós!». Maior realismo não podia haver, sendo Deus tão grande em sinais tão nossos: o Corpo de Deus na espécie do pão. O corpo eucarístico de Cristo, como daqui a pouco estará sobre o altar, pelos próprios gestos que nos mandou repetir: «Fazei isto em memória de mim!». Esse mesmo que comungamos e adoramos no Santíssimo Sacramento, coração da Igreja no coração do mundo.
Que importante, que inadiável mesmo, é intensificarmos e afervorarmos a devoção eucarística, acompanhando Aquele que quer acompanhar a nós, no realismo sacramental com que a todos e por todos se oferece.

Uma presença real de consequências bem precisas. Se, em Cristo, Deus nos incorpora a nós, é também nos outros que tocamos Deus.
Por isso falamos de Corpo de Cristo em várias acepções que se alargam. O corpo humano do Filho de Maria, como foi concebido e depois nasceu, cresceu e morreu; o seu corpo ressuscitado, como sabemos e dizemos: “Ele está no meio de nós!”; o seu corpo eclesial, que constitui conosco, n’Ele batismalmente incorporados e por Ele eucaristicamente alimentados; e o corpo daqueles em que nos espera, na humanidade total que assumiu, para ser sustentado, dessedentado, acolhido ou visitado. Também aqui ecoa a ordem de Cristo que ouvimos há pouco: «Dai-lhes vós mesmos de comer!» (Lc 9,13).
Correspondendo na prática ao que proclamamos, compreendemos também que celebrar a Solenidade de hoje é levá-la à consequência necessária em tudo quanto cada pessoa nos requer, da vida à saúde, do pão à morada, do trabalho ao descanso. Estas mesmas circunstâncias humanas são também divinas, pela presença de Cristo que nos incorpora. É por isso que, juntando de novo a nossa voz à de tantas pessoas e instituições da sociedade civil e diversos credos, que requerem respeito legal e apoio concreto à vida mais frágil, só podemos e devemos rejeitar o aborto e a eutanásia e tudo quanto a tal possa levar, por falta de resposta solidária e pública a quem precisar de apoio e companhia.
Contrariamente ao que se diz, mais como os antigos gnósticos do que como cristãos autênticos, ninguém tem propriamente um corpo, porque já é em si mesmo um corpo, como polo de relação com os outros. Sabê-lo é também evitar muita distorção, no que se faça a si mesmo ou a quem quer que seja. Porque dizer “corpo” é dizermo-nos a nós e dizermos os outros, com toda a dignidade pessoal de cada um, da concepção à morte natural, saudável ou mais carente de cuidados, inviolável sempre. Ninguém desistirá de viver se nós todos, pessoal e comunitariamente, não desistirmos de quem sofre.
É sempre do realismo cristão que falamos, nas várias acepções que comporta. Corresponder-lhe mais e concretizá-lo melhor é o sentido da Solenidade de hoje, como esta tarde a levaremos à cidade. Adorar a Cristo no seu corpo eucarístico é fonte abundante de serviço à vida dos que Ele incorpora. Souberam-no e sabem-no os heróis e heroínas da caridade cristã, que graças a Deus não faltaram ontem como não faltam agora e a todos estimulam. Celebremos, adoremos e sirvamos o Corpo de Deus, na constante procissão das vidas.

Sé de Lisboa, 16 de junho de 2022.

Manuel, Cardeal-Patriarca



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