“A Semana Santa tem
início no Domingo de Ramos e da Paixão do Senhor, que une em um todo o triunfo
real de Cristo e o anúncio da Paixão” (Carta Circular Paschalis Sollemnitatis,
n. 28).
Como seu próprio nome indica, o Domingo de Ramos e da Paixão
do Senhor (Dominica in Palmis de Passione
Domini), celebração que abre a Semana Santa, é fruto de duas tradições:
- a tradição oriental, que celebra neste dia a entrada
messiânica de Jesus em Jerusalém, episódio narrado nos quatro Evangelhos (Mt 21,1-11; Mc 11,1-10; Lc 19,28-40; Jo 12,12-16), à luz da profecia de Zc 9,9-10 (cf. Catecismo da Igreja Católica, nn. 559-560);
- e a tradição ocidental, que enfatiza o memorial da Paixão
do Senhor.
“Glória, louvor e honra a ti, Cristo Rei”: O Domingo de Ramos no
Oriente
O testemunho mais antigo da celebração do Domingo de Ramos
é, naturalmente, de Jerusalém. A peregrina Etéria (ou Egéria), que visitou a
Terra Santa no final do século IV, descreve-nos as celebrações desse dia em seu
“diário de viagem” (Itinerarium ad loca
sancta):
No “domingo que dá entrada à semana pascal” os fiéis
reúnem-se à tarde no Monte das Oliveiras, onde “dizem-se hinos e antífonas
apropriadas àquele dia e ao lugar, e igualmente leituras”. À hora undécima
(17h) proclama-se o Evangelho da entrada messiânica de Jesus em Jerusalém,
provavelmente segundo Mateus, considerado o destaque que Etéria dá às crianças
no relato (cf. Mt 21,15-16).
Após o Evangelho, forma-se a procissão desde o alto do Monte
das Oliveiras até a Anástasis
(Basílica do Santo Sepulcro), ao canto de hinos e antífonas. Todos levam ramos
de oliveira ou de palmeira nas mãos.
Chegando à Basílica da Ressurreição, celebra-se a oração da tarde (lucernário), recita-se uma oração junto à Cruz (isto é, junto ao Calvário), e o Bispo abençoa os fiéis [1].
De uma comemoração local da Igreja de Jerusalém, o Domingo
de Ramos logo se difundiu entre as demais Igrejas Orientais.
O Ocidente, por sua vez, teve contato com esta celebração
através da Espanha e da Gália no início do século VII. A partir de Santo
Isidoro de Sevilha (†636) o domingo antes da Páscoa é chamado Dominica Palmarum ou Dominica in Palmis (Domingo de Ramos),
ou, mais raramente, Dominica Hosanna
[2].
Apesar do nome, as Igrejas ocidentais relacionavam o domingo
antes da Páscoa com a dupla característica da Quaresma, batismal e penitencial:
- ligado ao Batismo, esse domingo também era chamado Capitulavium (literalmente “da ablução
da cabeça”), sobretudo na Espanha e na Gália, uma vez que os catecúmenos
cortavam o cabelo, lavavam a cabeça e eram ungidos com o Óleo dos Catecúmenos em
vista à recepção do Batismo.
Esse rito da ablução da cabeça era iluminado pela perícope
evangélica da “unção de Betânia” (Jo
12,1-11) [3], Evangelho que no Rito Romano é proclamado na Segunda-feira da
Semana Santa.
Também nesse domingo em alguns lugares tinha lugar a Traditio Symboli, a entrega do Símbolo
da fé (isto é, do Creio) aos catecúmenos [4].
- ligado ao itinerário da penitência quaresmal, o VI Domingo
da Quaresma era chamado Dominica
Indulgentia (Domingo da Indulgência ou do Perdão), aludindo ao rito da
reconciliação dos penitentes que teria lugar na manhã da Quinta-feira Santa.
No Ocidente a procissão
de ramos só se popularizaria no século VIII, como atesta, por exemplo, o Missal de Bobbio. No final desse século,
Teodulfo de Orleans (†821) compôs o célebre hino em honra de Cristo Rei, “Gloria, laus et honor” (Glória, louvor e
honra a ti), que até hoje consta no Missal
Romano para a procissão de ramos.
Em Roma, a procissão chega mais tarde, a partir do Pontifical Romano-Germânico (séc. X), o
qual contém várias fórmulas para a bênção dos ramos. Essa bênção era particularmente
solene, com uma Liturgia da Palavra [5], um “prefácio” e uma longa série de
orações, que recordavam diversos “temas”, como, por exemplo, o simbolismo do
ramo de oliveira no episódio do dilúvio (Gn
8,11). Esse rito seria simplificado na reforma da Semana Santa de 1955,
promovida pelo Papa Pio XII (†1958).
Durante a Idade Média a procissão de ramos ganhou grande
popularidade e conheceu diferentes níveis de dramatismo. Os fiéis comumente
reuniam-se fora da cidade, preferencialmente em uma colina, emulando o Monte
das Oliveiras, de onde partia a procissão, guiada pela cruz ornada com ramos.
Nesta procissão dava-se grande destaque ao Livro dos
Evangelhos (Evangeliário), conduzido por quatro diáconos em um portatorium (andor) envolto em um véu
púrpura [6]. Durante a procissão se entoavam várias antífonas e as crianças
ofereciam flores ao longo do caminho.
Quando a procissão chegava às portas da cidade, havia uma
“estação” para a adoração da cruz. Todos se prostravam e em seguida
aproximavam-se em pequenos grupos para venerar a cruz, depositando flores,
enquanto entoavam-se antífonas e hinos (dentre os quais o já citado Gloria, laus et honor).
Concluída a adoração da cruz, todos entravam na cidade e
dirigiam-se à catedral ou igreja principal, onde o Bispo ou sacerdote celebrava
a Missa.
A ênfase no tema das flores deve-se a que, sobretudo no
norte da Europa, onde é mais difícil encontrar palmeiras ou oliveiras, os fiéis
ofereciam ramos de outras árvores, muitas com os primeiros brotos de flores da
primavera. Por isso o Domingo de Ramos passou a ser conhecido também como Pascha floridum (Páscoa florida) ou dies florum (dia das flores).
Na Inglaterra, ao invés do Evangeliário, era costume conduzir
na procissão o Santíssimo Sacramento, prática que posteriormente cairia em
desuso em benefício da procissão eucarística de Corpus Christi.
Na Alemanha, por sua vez, conduzia-se em procissão o palmesel ou “asno da palma”, uma imagem
de madeira de Jesus sobre o asno. Algo similar ocorre até hoje na Espanha, onde
as diversas procissões da Semana Santa são enriquecidas com artísticas imagens
dos mistérios celebrados, conduzidas pelos fiéis em grandes andores.
Atualmente recomenda-se evitar esses elementos “teatrais” na
procissão: “não se trata de uma representação de caráter historicizante da
entrada de Jesus em Jerusalém, uma espécie de encenação de mistérios, mas da
proclamação pública do nosso seguimento de Cristo na fé e na caridade” [7].
O Diretório sobre
Piedade Popular e Liturgia (n. 144) recorda
que enquanto a “encenação” é apenas “mimese”
(memória), a Liturgia é “anamnese” (memorial), isto é, atualização, presença
mistérica da história da salvação celebrada “hoje”. Nesse sentido, Santo André
de Creta (†740) nos exorta a agitar hoje diante de Cristo “nossos ramos
espirituais” [8].
Outro gesto característico da procissão de ramos que se
originou provavelmente no século XII e foi introduzido no Missal Romanum pelo Papa
Clemente VIII (†1605) é a solene abertura das portas da igreja.
Ao chegar ao templo, a procissão parava diante das portas
fechadas, golpeadas então com a haste da cruz processional. Tal gesto,
provavelmente uma dramatização dos Salmos 23 (24) e 117 (118), expressava que
através do Mistério Pascal da Morte-Ressurreição de Cristo foram abertas para
nós as portas da salvação (cf.
Sacrosanctum Concilium, n. 5). Um rito semelhante de “abertura das portas”
é realizado no Rito Bizantino no Domingo de Páscoa.
Ainda em relação à Idade Média, por fim, cabe recordar as
interpretações equivocadas do simbolismo dos ramos, aos quais eram atribuídos
poderes “mágicos”, como resquício do costume pagão de queimar certas plantas
para afastar o mal.
O Diretório sobre
Piedade Popular e Liturgia recorda, em seu n. 139, que os ramos “não devem
ser guardados como amuletos ou somente para fins terapêuticos ou apotropaicos,
isto é, a fim de manter distantes os espíritos maus e afastar das casas e dos
campos os prejuízos causados por eles, o que poderia ser uma forma de
superstição. Tais ramos devem ser conservados antes de tudo como testemunho da
fé em Cristo, rei messiânico, e na sua vitória pascal” [9].
“A tua entrada ao Calvário conduzia”: O Domingo da Paixão no
Ocidente
Apesar de ter incorporado o costume oriental da procissão de
ramos, a igreja de Roma nunca abandonou suas tradições. Com efeito, desde os
séculos IV-V o domingo antes da Páscoa era chamado em Roma de Dominica de Passione Domini (Domingo da
Paixão do Senhor), como testemunham diversos sermões dos Padres latinos (como
Santo Agostinho ou São Leão Magno).
Procissão de ramos em Elche (ou Elx), Espanha |
No Rito Romano, com efeito, esse domingo sempre foi caracterizado
pela proclamação da narrativa da Paixão do Senhor segundo Mateus (os demais
relatos eram lidos ao longo da Semana Santa: Marcos na terça, Lucas na quarta e
João na Sexta-feira). O Evangelho da entrada de Jesus em Jerusalém, por sua
vez, curiosamente era lido no I Domingo do Advento, interpretado em chave
escatológica [10].
A partir do século V surge o costume de empregar três
tonalidades distintas para a narrativa da Paixão: o diácono usava um tom para a
narração, outro para as falas de Cristo e outro para as falas dos demais
personagens.
Assim, a partir do século XI, a fim de facilitar o canto e
dar mais dramatismo ao relato, a Paixão passou a ser entoada por três diáconos:
um entoava as falas de Cristo, outro as os demais personagens e um terceiro servia
como cronista ou narrador, além do coro que entoava as parte do povo (turba). Tal costume convém ser
conservado, como indica a Carta Circular Paschalis
Sollemnitatis (n. 33).
O gesto de ajoelhar-se ao anúncio da Morte do Senhor, por fim, remonta aos séculos XIII-XIV.
A atual celebração do
Domingo de Ramos e da Paixão do Senhor
A partir do século VII, as últimas duas semanas antes da
Páscoa passaram a integrar o “Tempo da Paixão”: assim, o V Domingo da Quaresma
tornou-se o I Domingo da Paixão e o Domingo de Ramos o II Domingo da Paixão.
Além disso, para o Domingo de Ramos previam-se paramentos
roxos, os mesmos usados durante toda a Quaresma. Com a reforma da Semana Santa
realizada pelo Papa Pio XII em 1955, passou-se a prescrever paramentos
vermelhos para a bênção dos ramos e a procissão e roxos para a Missa.
A reforma litúrgica do Concílio Vaticano II simplificou esses
ritos, suprimindo o Tempo da Paixão e prescrevendo paramentos vermelhos (cor
dos ofícios da Paixão) para toda a celebração do Domingo de Ramos.
Para a bênção dos ramos, além de uma monição introdutória, são propostas duas opções de oração à escolha (Missal Romano, pp. 220-221). Quanto às orações da Missa (pp. 230-231), foi conservada a coleta do anterior Missal, enquanto as orações sobre as oferendas e após a Comunhão, que até então eram “genéricas”, deram lugar a textos relacionados ao mistério a Paixão.
Destaca-se também o novo Prefácio próprio, “A Paixão do Senhor” (até então se utilizava o Prefácio da Santa Cruz), no qual o Mistério Pascal é expresso em sua totalidade: “Inocente, Jesus quis sofrer pelos pecadores. Santíssimo, quis ser condenado a morte pelos criminosos. Sua Morte apagou nossos pecados e sua Ressurreição nos trouxe vida nova” (Missal, p. 221).
Cumpre recordar, por fim, o maior contato com a Palavra de Deus na Liturgia renovada:
- o Evangelho da entrada de Jesus em Jerusalém e a narrativa da Paixão (esta com uma “forma longa” e uma “forma breve”) seguem o ciclo trienal (anos A-B-C);
- à epístola que se proclamava anteriormente (Fl 2,6-11, com a infeliz omissão do v. 5) e ao Sl 21 foi acrescentada a leitura de Is 50,4-7, o terceiro dos quatro “cânticos do Servo Sofredor”, lidos ao longo da Semana Santa.
Notas:
[1] ETÉRIA. Peregrinação ou Diário de Viagem (Itinerarium ad loca sancta), nn. 30-31; in: CORDEIRO, José de Leão [org.]. Antologia Litúrgica: Textos Litúrgicos, Patrísticos e Canónicos do Primeiro Milénio. Secretariado Nacional de Liturgia: Fatima, 2003, pp. 453-454.
[2] O termo hebraico “hosana” era originalmente era uma súplica: “salva-nos” (cf. Sl 117/118,25). A partir do seu uso em Mt 21,9 tornou-se uma aclamação: “Hosana ao Filho de Davi!”.
[3] Até hoje no Rito Hispano-Mozárabe (próprio da Espanha) o Evangelho do Domingo de Ramos compreende tanto a unção de Betânia quanto a entrada messiânica de Jesus em Jerusalém (Jo 11,55–12,13).
No Rito Ambrosiano (próprio da Arquidiocese de Milão - Itália), por sua vez, há um duplo esquema de leituras: quando há a bênção dos ramos (Zc 9,9-10; Sl 47; Cl 1,15-20; Jo 12,12-16) e quando não há a bênção (Is 52,13–53,12; Sl 87; Hb 12,1b-3; Jo 11,55–12,13).
[4] Em Roma, por sua vez, a Traditio Symboli tinha lugar tradicionalmente na quarta-feira da IV
semana da Quaresma, durante uma sugestiva celebração na Basílica de São Paulo
fora-dos-muros.
Atualmente, esse rito é celebrado durante o próprio itinerário
catequético ou durante a III semana da Quaresma, após o I Escrutínio (cf. RITUAL DA INICIAÇÃO CRISTÃ DE
ADULTOS. Tradução portuguesa para o
Brasil da edição típica. São Paulo: Paulus, 2001, pp. 48-56).
No Rito
Ambrosiano, em contrapartida, a entrega do Símbolo conserva-se no sábado antes
do Domingo de Ramos.
[5] Ex 15,27–16,7
(com a referência às “70 palmeiras” no v. 27 e a murmuração do povo contra Deus
no deserto, “tema” tipicamente quaresmal); Jo
11,47-50.53 ou Mt 28,39.41 (à guisa
de “salmo”, os quais estão um pouco “fora de contexto” aqui, antecipando o
“tema” da Paixão); Mt 21,1-9.
[6] A cor púrpura ou roxa remete aqui primeiramente à
realeza de Cristo: uma vez que era um pigmento difícil de conseguir, na
Antiguidade era reservada aos reis e nobres. Ao mesmo tempo, remete à união hipostática,
isto é, a Cristo verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Com efeito, a cor púrpura ou
roxa é composta pela mescla do azul, que remete ao céu (divindade), e do
vermelho, que recorda o sangue (humanidade).
[7] ADAM, Adolf. O Ano
Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica.
São Paulo: Loyola, 2019, p. 81.
[8] II leitura do Ofício das Leituras do Domingo de Ramos e
da Paixão do Senhor (OFÍCIO DIVINO. Liturgia
das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição
típica. São Paulo: Paulus, 1999, v. II, pp. 366-367).
[9] CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E A DISCIPLINA DOS
SACRAMENTOS. Diretório sobre Piedade
Popular e Liturgia. São Paulo: Paulinas, 2003, p. 123.
[10] Tal costume é conservado no Rito Ambrosiano (Milão), no
qual se lê o Evangelho da entrada de Jesus em Jerusalém no IV Domingo do
Advento (vale lembrar, porém, que nesse rito o Advento possui seis domingos, e
não quatro como no Rito Romano).
Referências:
ADAM, Adolf. O Ano
Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica.
São Paulo: Loyola, 2019, pp. 79-83.
BERGAMINI, Augusto. Cristo,
festa da Igreja: O ano litúrgico. São Paulo: Paulinas, 1994, pp. 292-299.
CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO. Paschalis Sollemnitatis: A preparação e celebração das festas pascais.
Brasília: Edições CNBB, 2018. Coleção: Documentos
da Igreja, n. 38.
RIGHETTI, Mario. Historia
de la Liturgia, v. I: Introducción general; El año litúrgico; El Breviario.
Madrid: BAC, 1945, pp. 777-785.
SCHUSTER, Cardeal Alfredo Ildefonso. Liber Sacramentorum: Note storiche e liturgiche sul Messale Romano;
vol. III: Il Testamento Nuovo nel Sangue del Redentore (La Sacra Liturgia dalla
Settuagesima a Pasqua). Torino-Roma: Marietti, 1933, pp. 178-189.
Postagem publicada originalmente em 31 de março de 2012.
Revista e ampliada em 03 de março de 2022.
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