“Foi a fé que valeu
aos antepassados um bom testemunho” (Hb 11,2)
A Constituição Dogmática Lumen
Gentium, do Concílio Vaticano II, em seu n. 50, destaca a particular
devoção da Igreja aos Apóstolos, aos Mártires, à Virgem Maria e aos anjos. A
estes podemos acrescentar ainda João Batista e José, o esposo de Maria.
Nota-se nesta lista a preponderância de personagens do Novo
Testamento, aos quais somamos os anjos, mencionados já no Antigo (inclusive os
três arcanjos). Mas, e os demais personagens do Antigo Testamento (AT), podem
ser venerados como santos?
A esta pergunta responde o Catecismo da Igreja Católica: “Os patriarcas, os profetas e outros
personagens do Antigo Testamento foram, e serão sempre, venerados como santos em todas as tradições litúrgicas da Igreja”
(n. 61).
Fundamentação bíblica
e teológica
A veneração dos santos do AT remonta aos “elogios dos
antepassados” presentes no Livro do
Eclesiástico (cap. 44–50) e no cap. 11 da Carta aos Hebreus. Os dois grandes hinos lucanos - que a Igreja
recita diariamente na Liturgia das Horas - recordam que Deus “falou pela boca
de seus santos, os profetas” (Lc 1,70) e “mostrou misericórdia a nossos pais”
(v. 72), isto é, Abraão e sua descendência (v. 55.73).
Mas é no Livro do
Apocalipse, com sua linguagem simbólica, que sua presença é destacada: na
“Liturgia do trono” (cap. 4–5) há 24 anciãos (Ap 4,4), que podem ser
interpretados como as doze tribos de Israel, simbolizando todos os justos da
primeira aliança, e os doze Apóstolos, isto é,
todo o novo Israel, a Igreja.
O Cordeiro e os 24 anciãos (Altar da Basílica de Ars, França) |
No cap. 7, os servos de Deus são 144 mil: 12 mil (número que
indica aqui totalidade) de cada uma das tribos de Israel (Ap 7,4-8), além de “uma
multidão enorme, que ninguém podia contar, de todas as nações, tribos, povos e
línguas” (v. 9).
Comentando especificamente este texto, o Papa Bento XVI
esclarece: “Este povo compreende os santos
do Antigo Testamento, a partir do justo Abel e do fiel Patriarca Abraão, os
do Novo Testamento, os numerosos mártires do início do cristianismo e também os
beatos e os santos dos séculos seguintes, até às testemunhas de Cristo desta
nossa época” (Homilia na Solenidade de
Todos os Santos, 01 de novembro de 2006).
Além da Sagrada Escritura, há um texto (provavelmente do
século III), posteriormente inserido no Evangelho
de Nicodemos, que narra a descida de Cristo ao Hades após sua morte para
resgatar os justos do AT [1]. Este texto inspirou a célebre homilia anônima do
século IV lida no Ofício das Leituras do Sábado Santo [2].
Tal tradição foi acolhida pela fé da Igreja, como testemunha
mais uma vez o Catecismo da Igreja
Católica, confirmando que Cristo desceu à “mansão dos mortos” “para
libertar os justos que O tinham precedido” (n. 633).
Arte sacra
Expressão visível dessa crença são os ícones bizantinos da
Crucificação e da Ressurreição. No primeiro vemos como o sangue de Cristo desce
simbolicamente sobre o crânio de Adão, redimindo nele toda a humanidade. No
segundo, à luz dos textos acima citados, o Senhor toma pela mão os primeiros
pais para conduzi-los ao paraíso.
Ícone da Ressurreição (Igreja do Salvador em Chora, Istambul) |
O AT é, com efeito, um tema particularmente caro à arte
sacra. Suas cenas são retratadas à luz da interpretação “tipológica”, isto é,
como prefigurações dos mistérios de Cristo (por exemplo, o sacrifício de Isaac é
profecia da Paixão; a passagem do mar Vermelho aponta para o Batismo...).
Destaca-se, a partir dos séculos V-VI, a presença da típica auréola ou halo nos
personagens veterotestamentários [3].
Um tema recorrente na arte é o paralelo entre os Apóstolos
ou Evangelistas e os Profetas (ou, mais raramente, os doze filhos de Jacó).
Podemos encontrar de um lado da igreja os quatro Evangelistas e do outro os
quatro “Profetas Maiores”; ou de um lado os doze Apóstolos e do outro os doze
“Profetas Menores” [4].
Os quatro evangelistas sobre os ombros dos quatro profetas maiores (Vitral da Catedral de Chartres, França) |
Orações litúrgicas
Além da arte sacra, os justos do AT estão presentes nas
orações litúrgicas. O Cânon Romano (Oração Eucarística I), que remonta ao século
IV, no momento da oblação, ao pedir a Deus que acolha a oferenda do pão e do
vinho apresentada pela Igreja, recorre a três personagens ligados ao tema do
sacrifício:
“Recebei, ó Pai, esta oferenda, como recebestes a oferta de
Abel, o sacrifício de Abraão e os dons de Melquisedeque” (Missal Romano, p. 474).
Dada a pobreza da atual tradução brasileira, vamos recorrer
mais uma vez à versão de Portugal (como fizemos na postagem sobre os arcanjos):
“Olhai com benevolência e agrado para esta oferenda e
dignai-Vos aceitá-la como aceitastes os dons do justo Abel, vosso servo, o
sacrifício de Abraão, nosso pai na fé, e a oblação pura e santa do sumo
sacerdote Melquisedec” (Ordinário da
Missa, site do Secretariado Nacional de Liturgia de Portugal).
Os sacrifícios de Abel, Melquisedec e Abraão (Mosaico da Basílica de Santo Apolinário em Ravena) |
No Rito de Encomendação dos Agonizantes, por sua vez, há uma
série de invocações que mencionam oito personagens do Antigo Testamento que
teriam sido livrados por Deus de suas tribulações. Assim, o texto pede que o
Senhor livre também o fiel por quem se reza de seu sofrimento:
“Livrai, Senhor, o vosso servo (a vossa serva), como
livrastes Noé das águas do dilúvio.
(...) como livrastes Abraão da cidade de Ur da Caldeia.
(...) como livrastes Jó dos seus sofrimentos.
(...) como livrastes Moisés das mãos do faraó.
(...) como livrastes Daniel da cova dos leões.
(...) como livrastes os três jovens da fornalha acesa e das mãos
de um rei injusto.
(...) como livrastes Suzana do falso testemunho.
(...) como livrastes Davi do rei Saul e das mãos de Golias”
[5].
Existem várias outras orações nas quais os santos do AT são
“evocados”, como a Bênção para o início de uma viagem, que menciona as
peregrinações de Abraão [6]. Porém, nessas orações eles não são “invocados”, ou
seja, a oração não é dirigida a eles, mas a Deus. Não obstante, o Livro do Apocalipse testemunha sua
participação ativa na Liturgia celeste: os 24 anciãos têm cítaras nas mãos,
para entoar o louvor de Deus, e taças de incenso, para apresentar-Lhe nossas
orações (Ap 5,8).
Destaca-se na Escritura a figura de Moisés como intercessor
em favor do povo, imagem de Cristo, único Mediador entre nós e o Pai (1Tm 2,5).
Moisés intercede pelo povo durante a batalha (Ex 17,8-13) e mesmo após a sua
infidelidade (Ex 32,30-32).
Na Liturgia encontramos a invocação direta aos justos do AT,
pedindo-lhes sua intercessão, em versões mais antigas da Ladainha de Todos os
Santos. Nestas, após a Virgem Maria e os anjos, eram recordados Abraão, Moisés
e Elias [7], além de uma invocação genérica a todos os Patriarcas e Profetas:
Sancte Abraham, ora
pro nobis (Santo Abraão, rogai por nós).
Sancte Moyses, ora pro
nobis (São Moisés, rogai por nós)
Sancte Elia, ora pro
nobis (Santo Elias, rogai por nós).
Omnes sancti
Patriarchae et Prophetae, orate pro nobis (Todos os santos Patriarcas e
Profetas, rogai por nós).
Na versão da Ladainha para as Exéquias, por sua vez, eram
invocados Abel, Abraão e o “coro dos Justos”:
Sancte Abel, ora pro
eo (Santo Abel, rogai por ele).
Omnis chorus Justórum,
ora pro eo (Todo o coro dos Justos,
rogai por ele).
Sancte Abraham, ora pro eo (Santo Abraão, rogai por
ele).
Merecem destaque aqui os títulos de “Patriarcas” e “Profetas”,
que englobam todos os santos da primeira aliança. Com efeito, de modo análogo
ao que aconteceu aos anjos, buscou-se classificar os santos em “coros”, como
atesta a anáfora das Constituições Apostólicas (final do século IV):
“Nós Te apresentamos ainda a nossa oblação por todos os
santos que desde as origens Te foram agradáveis: Patriarcas, Profetas, Justos, Apóstolos, Mártires, Confessores
(...) e por todos aqueles cujos nomes Tu mesmo conheces” [8].
O Cordeiro ladeado por Patriarcas e Profetas (Batistério de Florença) |
Com a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II, as
invocações genéricas aos “coros” dos santos foram suprimidas da Ladainha, assim
como os próprios santos do AT. Permanecem, porém, os máximos representantes dos
seus dois coros, que fazem a ponte entre Antigo e Novo Testamento: São João
Batista, o último e maior dos Profetas, e São José, o maior dos Patriarcas.
A invocação dos santos do AT (Abraão, Moisés e Elias), bem
como aos coros dos Patriarcas e Profetas conserva-se na Ladainha entoada na
Quarta-feira de Cinzas em Roma, que acompanha a procissão penitencial presidida
pelo Papa na forma das antigas estações quaresmais romanas.
Além disso, na Ladainha de Nossa Senhora foram conservadas
suas invocações como Rainha dos “coros” dos santos, dentre os quais os
Patriarcas e Profetas:
Regina Patriarcharum,
ora pro nobis (Rainha dos Patriarcas, rogai por nós).
Regina Prophetarum,
ora pro nobis (Rainha dos Profetas, rogai por nós).
Martirológio Romano
Não obstante, o maior testemunho a respeito dos santos do AT
nos é oferecido pelo Martirológio Romano (Martyrologium
Romanum). Este é um livro litúrgico que contém a lista dos santos venerados
pela Igreja, remontando às listas de nomes dos mártires que eram elaboradas no
início do cristianismo.
Para cada um dos santos o Martirológio apresenta um
“elogio”, isto é, um breve resumo da sua vida. Santos mais importantes
(celebrados com solenidades, festas ou memórias no Calendário) possuem
“elogios” mais completos, enquanto os demais possuem ao menos o nome, o local e
a data da morte.
O elenco dos santos de cada dia pode ser lido no final da
Liturgia das Horas (não, porém, na Missa) ou como ato de devoção pessoal. Em
algumas comunidades religiosas há o costume de ler o Martirológio em uma das
refeições.
A atual edição do Martirológio foi publicada em sua forma típica
(em latim) em 2001 e revisada em 2004. A Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil (CNBB) até o momento não se preocupou em traduzi-la. Felizmente o
Secretariado Nacional de Liturgia de Portugal não apenas traduziu o
Martirológio como também o disponibilizou na íntegra em seu site.
É a partir desta versão que identificamos as comemorações de
diversos santos do Antigo Testamento, que serão temas das próximas
postagens aqui no blog. Nelas elencaremos os “elogios” de todos os
Patriarcas e Profetas celebrados atualmente no Rito Romano, além de traçar
alguns paralelos com sua celebração no Rito Bizantino, onde são particularmente
venerados, e na igreja luterana, que também os comemora, invocando-os como
“justos”.
A pesquisa será dividida em três partes:
Cumpre notar que a comemoração dos personagens do AT não é
uma afirmação dogmática de sua existência histórica, uma vez que temos figuras
que a maioria dos estudiosos considera como lendárias, como é o caso de Jó. O
mais importante dessas comemorações é meditar sobre sua mensagem, deixando-nos
iluminar pela sabedoria das Sagradas Escritura.
Cenas do Antigo Testamento ladeadas pelos Profetas (Catedral anglicana da Santíssima Trindade em Ely, Inglaterra) |
Notas:
[1] Descida de Cristo
ao Inferno: Versão grega. in:
PROENÇA, Eduardo de [Org.] Apócrifos e
pseudo-epígrafos da Bíblia, v. I. São Paulo: Fonte Editorial, 2005, pp.
563-569.
[2] OFÍCIO DIVINO. Liturgia
das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição
típica. São Paulo: Paulus, 2000, v. II, pp. 439-440.
[3] cf. HEINZ-MOHR, Gerd. Dicionário dos símbolos: Imagens e sinais da arte cristã. São
Paulo: Paulus, 1994, p. 44. Inicialmente a auréola era restrita a Cristo (séc.
II), sendo posteriormente estendida à Virgem Maria, aos anjos, aos Apóstolos e
Evangelistas (séc. IV-V).
[4] Os “Profetas Maiores” são Isaías, Jeremias, Ezequiel e
Daniel, assim chamados pela maior extensão dos respectivos livros. Os “Profetas
Menores” são: Oseias, Joel, Amós, Abdias, Jonas, Miqueias, Naum, Habacuc,
Sofonias, Ageu, Zacarias e Malaquias.
[5] CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E A DISCIPLINA DOS
SACRAMENTOS. Diretório sobre Piedade
Popular e Liturgia: Princípios e orientações. São Paulo: Paulinas, 2003, p.
89.
[6] RITUAL DE BÊNÇÃOS. Tradução
portuguesa da edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1990, p. 162.
[7] A santidade destes três personagens é de certa forma atestada
pelos próprios Evangelhos: a bem-aventurança após a morte é chamada de “seio de
Abraão” (Lc 16,22); Moisés e Elias, por sua vez, aparecem junto a Jesus na
glória da sua Transfiguração (Mt 17,3 e paralelos).
[8] Constituições
Apostólicas, VIII, 12, 43. in:
CORDEIRO, José de Leão (Org.). Antologia
Litúrgica: Textos Litúrgicos, Patrísticos e Canónicos do Primeiro Milénio.
Secretariado Nacional de Liturgia: Fatima, 2003, p. 435.
Nenhum comentário:
Postar um comentário