“Memento quia pulvis es...” - “Lembra-te de que és pó...” (Gn 3,19).
Nos primeiros
séculos do Cristianismo, a celebração anual da Páscoa era precedida de dois
dias de intenso jejum, na sexta-feira e no sábado. No século IV, porém, a
partir do rico simbolismo bíblico do número “quarenta”, surge a “Quadragesima”, um período de
preparação de 40 dias para a Páscoa.
Para acessar nossa postagem sobre a história do Tempo da Quaresma, clique aqui.
Inicialmente esse Tempo tinha início no I Domingo da Quaresma (o sexto domingo antes da Páscoa).
Porém, como os cristãos tradicionalmente não jejuam nos domingos, dia
consagrado à memória da Ressurreição do Senhor, os domingos logo foram excluídos da
contagem dos quarenta dias e a Quaresma passou a começar na quarta-feira
anterior, chamada in capite ieiunni
(no início do jejum).
Esse tempo
estava diretamente associado a duas instituições: a preparação dos catecúmenos
para a recepção dos sacramentos da Iniciação Cristã na Vigília Pascal e a
penitência eclesiástica pública [1]. Em relação à imposição das cinzas, nos deteremos
aqui sobre esta última.
A imposição das cinzas sobre os penitentes
A
partir do século IV começa a organizar-se um rigoroso itinerário penitencial
para os pecadores públicos, isto é, para aqueles que haviam cometido pecados
graves (como, por exemplo, a apostasia, renegando a fé em contextos de
perseguição).
No primeiro dia
da Quaresma os pecadores se dirigiam ao Bispo ou a um presbítero, confessavam
seu pecado e este lhes impunha uma penitência [2]. Como expressão externa do
seu arrependimento e propósito de conversão, os pecadores (doravante chamados
“penitentes”) prostravam-se no chão e os sacerdotes impunham as mãos sobre
eles. Em seguida os penitentes recebiam uma veste ou cinto grosseiro, chamado
“cilício”, e um punhado de cinzas sobre a cabeça.
Esse duplo gesto
aparece já na Sagrada Escritura: atento à exortação do profeta Jonas, o rei de
Nínive “vestiu-se de saco e sentou-se em cima de cinza” (Jn 3,6); Judite, ao rezar, “prostrou-se com o rosto em terra,
cobriu a cabeça com cinza, rasgou sua túnica e deixou à mostra o pano de saco
com que se revestia” (Jt 9,1).
O próprio Jesus
alude a tais gestos ao repreender os impenitentes: “Ai de ti, Corazim! Ai de
ti, Betsaida! Porque, se os milagres que se realizaram no meio de vós, tivessem
sido feitos em Tiro e Sidônia, há muito tempo elas teriam feito penitência,
vestindo-se de cilício e cobrindo-se de cinza” (Mt 11,21).
Comentando esses
textos, os Santos Padres (como Tertuliano, Cipriano, Ambrósio, Jerônimo...) exortavam frequentemente à penitência in cinere et cilicio...
Pregação do profeta Jonas na cidade de Nínive (Andrea Vaccaro) |
Além da
imposição das cinzas e da veste grosseira, os penitentes não podiam participar
de maneira plena da Celebração Eucarística, até que fossem reconciliados com
Deus e com a comunidade pela absolvição sacramental.
Assim, durante a
Quaresma, viviam uma pedagógica “excomunhão”: participavam das Missas no fundo
da igreja (no chamado nártex), desde os ritos iniciais até a homilia inclusive,
de modo que pudessem ser fortalecidos pela Palavra de Deus.
Antes da
Liturgia Eucarística, porém, o diácono os convidava a sair (gesto que adquiriu
bastante solenidade em algumas regiões, sobretudo no Rito Galicano,
que se desenvolveu entre os séculos V e VIII na região da atual França). A comunidade então prosseguia a
celebração rezando por eles através das preces e do próprio sacrifício
eucarístico [3].
A reconciliação
dos penitentes, por sua vez, tinha lugar com uma Missa na manhã da Quinta-feira
Santa, dia que marca o fim da Quaresma. Os penitentes recebiam a absolvição
(novamente marcada pela prostração e pela imposição das mãos do sacerdote) e podiam então
participar plenamente das celebrações do Tríduo Pascal [4].
A imposição das cinzas sobre todos os fiéis
A partir do
século VI, a penitência pública foi sendo paulatinamente abandonada, e a Igreja
adotou outras formas de reconciliação dos pecadores, sobretudo a confissão
individual (durante a qual no mesmo ato litúrgico ocorrem a confissão dos
pecados, a absolvição e a imposição da penitência).
Assim, o gesto
da imposição das cinzas no início da Quaresma é estendido a todos os fiéis,
como expressão do desejo sincero de conversão. De acordo com a Catholic Encyclopedia, Aelfric (†1010 ou
1020), Abade de Eynsham (Inglaterra), indica em uma de suas homilias, proferida
no final do século X, que a imposição das cinzas era então um gesto praticado por
todos.
No final do século XII, por ocasião do Sínodo de Benevento (1091), a prática da
imposição das cinzas é recomendada pelo Papa Urbano II (†1099) tanto aos leigos como aos clérigos.
Estátua do Papa Urbano II em Clermont (França) |
A quarta-feira que marca o início da Quaresma, até então denominada sobretudo in capite ieiunni (no início do jejum), passa a ser mais conhecida como dies cinerum (dia das cinzas) ou feria quarta cinerum (quarta-feira de cinzas).
Entre os séculos
XI e XII começam a difundir-se vários costumes em torno das cinzas: as orações de
bênção das cinzas; a prática de prepará-las com os ramos abençoados no Domingo de Ramos do ano
anterior; o gesto de impô-las sobre a cabeça aos homens e traçando uma cruz na
testa às mulheres...
“O gesto de se
cobrir de cinzas tem o sentido de reconhecer a própria fragilidade e
mortalidade, que necessita ser remida pela misericórdia de Deus. Longe de ser
um gesto puramente exterior, a Igreja o conservou como símbolo da atitude do
coração penitente que cada batizado é chamado a assumir no itinerário
quaresmal. (...) [Esse gesto] abre à conversão e ao compromisso de renovação
pascal” (Diretório sobre Piedade Popular
e Liturgia, n. 125) [5].
A celebração da imposição das cinzas
Desde o início a
imposição das cinzas era um rito penitencial que tinha lugar fora da Missa. Em Roma, onde vigorava a “Liturgia estacional”, o Papa abençoava e impunha as cinzas aos Cardeais e ao clero romano
na célebre Basílica de Santa Anastasia al
Palatino (associada à Missa da Aurora do Natal), que era a igreja ad collectam,
isto é, da “reunião” desse dia, de onde partia a procissão.
Seguia-se, com
efeito, a procissão penitencial, na qual muitos iam a pés descalços (nudis pedibus), até a igreja titular
desse dia, a Basílica de Santa Sabina
all’Aventino, onde o Papa celebrava a Missa.
O Bem-aventurado
Cardeal Alfredo Ildefonso Schuster (†1954) indica em seu Liber Sacramentorum que diante da Basílica havia um pequeno
cemitério, onde a procissão parava para que os fiéis recordassem o mistério da
morte, expresso na fórmula da imposição das cinzas: “Meménto, homo, quia pulvis es, et in púlverem revertéris” (Gn
3,19).
Basílica de Santa Sabina all'Aventino: Igreja estacional da Quarta-feira de Cinzas |
A escolha de
Santa Sabina como “igreja estacional” para esse dia remonta ao século V.
Provavelmente tal escolha se deva à sua localização no alto do monte Aventino,
uma das sete colinas originais de Roma, exprimindo assim nosso desejo de,
durante a Quaresma, subir ao monte santo da Páscoa (cf. Cerimonial dos Bispos, n. 249).
Atualmente o
Papa continua a presidir a Missa da Quarta-feira de Cinzas em Santa Sabina. A
“coleta”, porém, foi transferida para a igreja de Santo Anselmo all’Aventino, reduzindo assim drasticamente a
procissão penitencial.
Além disso, a
imposição das cinzas já não se faz antes da procissão, mas sim após a Liturgia
da Palavra. Assim, a responsabilidade de impor as cinzas ao Papa recai, segundo
a tradição, sob o Cardeal Presbítero do Título de Santa Sabina, que desde 1996
é o Cardeal Jozef Tomko.
Nas ocasiões
extraordinárias em que o Papa celebrou nesse dia na Basílica de São Pedro,
porém, quem lhe impôs as cinzas foi o Arcipreste da Basílica Vaticana (que até
a Quarta-feira de Cinzas de 2021 era o Cardeal Ângelo Comastri, substituído
então pelo Cardeal Mauro Gambetti).
Até
a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II (1962-1965), independentemente da
Liturgia estacional, a bênção e a imposição das cinzas tinham lugar no início
da celebração, antes da procissão de entrada (à semelhança da bênção das velas na Festa da Apresentação do Senhor e da bênção dos ramos no Domingo de Ramos e da Paixão do Senhor).
Atualmente a
imposição das cinzas é realizada após a homilia, como parte da Liturgia da
Palavra: o propósito de conversão, com efeito, é a nossa “resposta” à
escuta da Palavra de Deus.
Assim, à célebre
fórmula de imposição das cinzas inspirada no livro do Gênesis, foi acrescida outra, à escolha, tomada do Evangelho: “Paenitémini, et crédite Evangélio”, isto
é, “Convertei-vos e crede no Evangelho” (Mc
1,15).
Cardeal Tomko impõe as cinzas ao Papa Francisco |
Notas:
[1] Nesse
sentido, a Constituição do Concílio Vaticano II
sobre a sagrada Liturgia, Sacrosanctum
Concilium (1963), exorta a recuperar a dimensão batismal própria da
Quaresma, unida à sua dimensão penitencial (nn. 109-110).
[2] Inicialmente
o rito de admissão dos pecadores à penitência pública tinha lugar na
segunda-feira da I semana da Quaresma. O Papa, Bispo de Roma, presidia o rito
na Basílica de San Pietro in Vincoli (São Pedro “em cadeias”), em
alusão ao poder de “ligar e desligar”, de “atar e desatar” dado ao Apóstolo (cf. Mt 16,19; 18,18). Posteriormente, o
rito foi transferido para a quarta-feira da semana anterior, de modo a
completar os 40 dias de penitência até a Páscoa (excluídos os domingos).
[3] Além dos
penitentes, eram “expulsados” da celebração também os catecúmenos, de modo que
pudessem participar de maneira plena da Eucaristia com a recepção dos
sacramentos na Vigília Pascal. O Ritual
da Iniciação Cristã de Adultos (RICA) indica no n. 19 da sua Introdução que tal prática deve ser
conservada nos ritos do catecumenato, dado o seu sentido “pedagógico”, ou
melhor, “mistagógico” (RITUAL DA INICIAÇÃO CRISTÃ DE ADULTOS. Tradução portuguesa para o Brasil da edição
típica. São Paulo: Paulus, 2001, p. 22).
[4] A Carta Circular
Paschalis Sollemnitatis, promulgada pela
Congregação para o Culto Divino em 1988, recomenda fomentar as celebrações penitenciais
tanto durante a Quaresma (nn. 13-15) quanto na Semana Santa (n. 37) (cf. CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO. Paschalis
Sollemnitatis: A preparação e celebração das festas pascais. Brasília:
Edições CNBB, 2018. Coleção: Documentos
da Igreja, n. 38).
[5] CONGREGAÇÃO
PARA O CULTO DIVINO E A DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS. Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia. São Paulo: Paulinas,
2003, pp. 112-113.
Referências:
ADAM, Adolf. O Ano Litúrgico: Sua história e seu
significado segundo a renovação litúrgica. São Paulo: Loyola, 2019, pp.
72-73.
AUGÉ, Matias. Ano Litúrgico: É o próprio Cristo presente
na sua Igreja. São Paulo: Paulinas, 2019, pp. 155-159.190-191.
RIGHETTI, Mario.
Historia de la Liturgia, vol. I:
Introducción general; El año litúrgico; El Breviario. Madrid: BAC, 1955,
pp. 752-755.
SCHUSTER,
Cardeal Alfredo Ildefonso. Liber
Sacramentorum: Note storiche e liturgiche sul Messale Romano; vol. III: Il
Testamento Nuovo nel Sangue del Redentore (La Sacra Liturgia dalla Settuagesima
a Pasqua). Torino-Roma: Marietti, 1933, pp. 38-46.
THURSTON,
Herbert. Ash Wednesday. in: The Catholic
Encyclopedia, vol. 1, 1907. Disponível em: New Advent.
Postagem
publicada originalmente em 20 de fevereiro de 2012. Revista e ampliada em 01 de janeiro de 2022.
Nenhum comentário:
Postar um comentário