segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

A história da Quarta-feira de Cinzas

“Memento quia pulvis es...” - “Lembra-te de que és pó...” (Gn 3,19).

Nos primeiros séculos do Cristianismo, a celebração anual da Páscoa era precedida de dois dias de intenso jejum, na sexta-feira e no sábado. No século IV, porém, a partir do rico simbolismo bíblico do número “quarenta”, surge a “Quadragesima”, um período de preparação de 40 dias para a Páscoa.

Para acessar nossa postagem sobre a história do Tempo da Quaresma, clique aqui.


Inicialmente esse Tempo tinha início no I Domingo da Quaresma (o sexto domingo antes da Páscoa). Porém, como os cristãos tradicionalmente não jejuam nos domingos, dia consagrado à memória da Ressurreição do Senhor, os domingos logo foram excluídos da contagem dos quarenta dias e a Quaresma passou a começar na quarta-feira anterior, chamada in capite ieiunni (no início do jejum).

Esse tempo estava diretamente associado a duas instituições: a preparação dos catecúmenos para a recepção dos sacramentos da Iniciação Cristã na Vigília Pascal e a penitência eclesiástica pública [1]. Em relação à imposição das cinzas, nos deteremos aqui sobre esta última.

A imposição das cinzas sobre os penitentes

A partir do século IV começa a organizar-se um rigoroso itinerário penitencial para os pecadores públicos, isto é, para aqueles que haviam cometido pecados graves (como, por exemplo, a apostasia, renegando a fé em contextos de perseguição).

No primeiro dia da Quaresma os pecadores se dirigiam ao Bispo ou a um presbítero, confessavam seu pecado e este lhes impunha uma penitência [2]. Como expressão externa do seu arrependimento e propósito de conversão, os pecadores (doravante chamados “penitentes”) prostravam-se no chão e os sacerdotes impunham as mãos sobre eles. Em seguida os penitentes recebiam uma veste ou cinto grosseiro, chamado “cilício”, e um punhado de cinzas sobre a cabeça.

Esse duplo gesto aparece já na Sagrada Escritura: atento à exortação do profeta Jonas, o rei de Nínive “vestiu-se de saco e sentou-se em cima de cinza” (Jn 3,6); Judite, ao rezar, “prostrou-se com o rosto em terra, cobriu a cabeça com cinza, rasgou sua túnica e deixou à mostra o pano de saco com que se revestia” (Jt 9,1).

O próprio Jesus alude a tais gestos ao repreender os impenitentes: “Ai de ti, Corazim! Ai de ti, Betsaida! Porque, se os milagres que se realizaram no meio de vós, tivessem sido feitos em Tiro e Sidônia, há muito tempo elas teriam feito penitência, vestindo-se de cilício e cobrindo-se de cinza” (Mt 11,21).

Comentando esses textos, os Santos Padres (como Tertuliano, Cipriano, Ambrósio, Jerônimo...) exortavam frequentemente à penitência in cinere et cilicio...

Pregação do profeta Jonas na cidade de Nínive (Andrea Vaccaro)

Além da imposição das cinzas e da veste grosseira, os penitentes não podiam participar de maneira plena da Celebração Eucarística, até que fossem reconciliados com Deus e com a comunidade pela absolvição sacramental.

Assim, durante a Quaresma, viviam uma pedagógica “excomunhão”: participavam das Missas no fundo da igreja (no chamado nártex), desde os ritos iniciais até a homilia inclusive, de modo que pudessem ser fortalecidos pela Palavra de Deus.

Antes da Liturgia Eucarística, porém, o diácono os convidava a sair (gesto que adquiriu bastante solenidade em algumas regiões, sobretudo no Rito Galicano, que se desenvolveu entre os séculos V e VIII na região da atual França). A comunidade então prosseguia a celebração rezando por eles através das preces e do próprio sacrifício eucarístico [3].

A reconciliação dos penitentes, por sua vez, tinha lugar com uma Missa na manhã da Quinta-feira Santa, dia que marca o fim da Quaresma. Os penitentes recebiam a absolvição (novamente marcada pela prostração e pela imposição das mãos do sacerdote) e podiam então participar plenamente das celebrações do Tríduo Pascal [4].

A imposição das cinzas sobre todos os fiéis

A partir do século VI, a penitência pública foi sendo paulatinamente abandonada, e a Igreja adotou outras formas de reconciliação dos pecadores, sobretudo a confissão individual (durante a qual no mesmo ato litúrgico ocorrem a confissão dos pecados, a absolvição e a imposição da penitência).

Assim, o gesto da imposição das cinzas no início da Quaresma é estendido a todos os fiéis, como expressão do desejo sincero de conversão. De acordo com a Catholic Encyclopedia, Aelfric (†1010 ou 1020), Abade de Eynsham (Inglaterra), indica em uma de suas homilias, proferida no final do século X, que a imposição das cinzas era então um gesto praticado por todos.

No final do século XII, por ocasião do Sínodo de Benevento (1091), a prática da imposição das cinzas é recomendada pelo Papa Urbano II (†1099) tanto aos leigos como aos clérigos.

Estátua do Papa Urbano II em Clermont (França)

A quarta-feira que marca o início da Quaresma, até então denominada sobretudo in capite ieiunni (no início do jejum), passa a ser mais conhecida como dies cinerum (dia das cinzas) ou feria quarta cinerum (quarta-feira de cinzas).

Entre os séculos XI e XII começam a difundir-se vários costumes em torno das cinzas: as orações de bênção das cinzas; a prática de prepará-las com os ramos abençoados no Domingo de Ramos do ano anterior; o gesto de impô-las sobre a cabeça aos homens e traçando uma cruz na testa às mulheres...

“O gesto de se cobrir de cinzas tem o sentido de reconhecer a própria fragilidade e mortalidade, que necessita ser remida pela misericórdia de Deus. Longe de ser um gesto puramente exterior, a Igreja o conservou como símbolo da atitude do coração penitente que cada batizado é chamado a assumir no itinerário quaresmal. (...) [Esse gesto] abre à conversão e ao compromisso de renovação pascal” (Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia, n. 125) [5].

A celebração da imposição das cinzas

Desde o início a imposição das cinzas era um rito penitencial que tinha lugar fora da Missa.  Em Roma, onde vigorava a “Liturgia estacional”, o Papa abençoava e impunha as cinzas aos Cardeais e ao clero romano na célebre Basílica de Santa Anastasia al Palatino (associada à Missa da Aurora do Natal), que era a igreja ad collectam, isto é, da “reunião” desse dia, de onde partia a procissão.

Seguia-se, com efeito, a procissão penitencial, na qual muitos iam a pés descalços (nudis pedibus), até a igreja titular desse dia, a Basílica de Santa Sabina all’Aventino, onde o Papa celebrava a Missa.

O Bem-aventurado Cardeal Alfredo Ildefonso Schuster (†1954) indica em seu Liber Sacramentorum que diante da Basílica havia um pequeno cemitério, onde a procissão parava para que os fiéis recordassem o mistério da morte, expresso na fórmula da imposição das cinzas: “Meménto, homo, quia pulvis es, et in púlverem revertéris (Gn 3,19).

Basílica de Santa Sabina all'Aventino:
Igreja estacional da Quarta-feira de Cinzas

A escolha de Santa Sabina como “igreja estacional” para esse dia remonta ao século V. Provavelmente tal escolha se deva à sua localização no alto do monte Aventino, uma das sete colinas originais de Roma, exprimindo assim nosso desejo de, durante a Quaresma, subir ao monte santo da Páscoa (cf. Cerimonial dos Bispos, n. 249).

Atualmente o Papa continua a presidir a Missa da Quarta-feira de Cinzas em Santa Sabina. A “coleta”, porém, foi transferida para a igreja de Santo Anselmo all’Aventino, reduzindo assim drasticamente a procissão penitencial.

Além disso, a imposição das cinzas já não se faz antes da procissão, mas sim após a Liturgia da Palavra. Assim, a responsabilidade de impor as cinzas ao Papa recai, segundo a tradição, sob o Cardeal Presbítero do Título de Santa Sabina, que desde 1996 é o Cardeal Jozef Tomko.

Nas ocasiões extraordinárias em que o Papa celebrou nesse dia na Basílica de São Pedro, porém, quem lhe impôs as cinzas foi o Arcipreste da Basílica Vaticana (que até a Quarta-feira de Cinzas de 2021 era o Cardeal Ângelo Comastri, substituído então pelo Cardeal Mauro Gambetti).

Até a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II (1962-1965), independentemente da Liturgia estacional, a bênção e a imposição das cinzas tinham lugar no início da celebração, antes da procissão de entrada (à semelhança da bênção das velas na Festa da Apresentação do Senhor e da bênção dos ramos no Domingo de Ramos e da Paixão do Senhor).

Atualmente a imposição das cinzas é realizada após a homilia, como parte da Liturgia da Palavra: o propósito de conversão, com efeito, é a nossa “resposta” à escuta da Palavra de Deus.

Assim, à célebre fórmula de imposição das cinzas inspirada no livro do Gênesis, foi acrescida outra, à escolha, tomada do Evangelho: “Paenitémini, et crédite Evangélio”, isto é, “Convertei-vos e crede no Evangelho” (Mc 1,15).

Cardeal Tomko impõe as cinzas ao Papa Francisco

Notas:

[1] Nesse sentido, a Constituição do Concílio Vaticano II sobre a sagrada Liturgia, Sacrosanctum Concilium (1963), exorta a recuperar a dimensão batismal própria da Quaresma, unida à sua dimensão penitencial (nn. 109-110).

[2] Inicialmente o rito de admissão dos pecadores à penitência pública tinha lugar na segunda-feira da I semana da Quaresma. O Papa, Bispo de Roma, presidia o rito na Basílica de San Pietro in Vincoli (São Pedro “em cadeias”), em alusão ao poder de “ligar e desligar”, de “atar e desatar” dado ao Apóstolo (cf. Mt 16,19; 18,18). Posteriormente, o rito foi transferido para a quarta-feira da semana anterior, de modo a completar os 40 dias de penitência até a Páscoa (excluídos os domingos).

[3] Além dos penitentes, eram “expulsados” da celebração também os catecúmenos, de modo que pudessem participar de maneira plena da Eucaristia com a recepção dos sacramentos na Vigília Pascal. O Ritual da Iniciação Cristã de Adultos (RICA) indica no n. 19 da sua Introdução que tal prática deve ser conservada nos ritos do catecumenato, dado o seu sentido “pedagógico”, ou melhor, “mistagógico” (RITUAL DA INICIAÇÃO CRISTÃ DE ADULTOS. Tradução portuguesa para o Brasil da edição típica. São Paulo: Paulus, 2001, p. 22).

[4] A Carta Circular Paschalis Sollemnitatis, promulgada pela Congregação para o Culto Divino em 1988, recomenda fomentar as celebrações penitenciais tanto durante a Quaresma (nn. 13-15) quanto na Semana Santa (n. 37) (cf. CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO. Paschalis Sollemnitatis: A preparação e celebração das festas pascais. Brasília: Edições CNBB, 2018. Coleção: Documentos da Igreja, n. 38).

[5] CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E A DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS. Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia. São Paulo: Paulinas, 2003, pp. 112-113.

Referências:

ADAM, Adolf. O Ano Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica. São Paulo: Loyola, 2019, pp. 72-73.

AUGÉ, Matias. Ano Litúrgico: É o próprio Cristo presente na sua Igreja. São Paulo: Paulinas, 2019, pp. 155-159.190-191.

RIGHETTI, Mario. Historia de la Liturgia, vol. I: Introducción general; El año litúrgico; El Breviario. Madrid: BAC, 1955, pp. 752-755.

SCHUSTER, Cardeal Alfredo Ildefonso. Liber Sacramentorum: Note storiche e liturgiche sul Messale Romano; vol. III: Il Testamento Nuovo nel Sangue del Redentore (La Sacra Liturgia dalla Settuagesima a Pasqua). Torino-Roma: Marietti, 1933, pp. 38-46.

THURSTON, Herbert. Ash Wednesday. in: The Catholic Encyclopedia, vol. 1, 1907. Disponível em: New Advent.

Postagem publicada originalmente em 20 de fevereiro de 2012. Revista e ampliada em 01 de janeiro de 2022.

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