“Hoje a Igreja te convida ao pão vivo que dá vida: vem com ela celebrar!”
(Sequência Lauda Sion, 3ª estrofe).
Na quinta-feira da II semana após o Pentecostes, isto é, na quinta-feira após o Domingo da Santíssima Trindade, 61 dias após a Páscoa, a Igreja de Rito Romano celebra a Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo, conhecida popularmente como Corpus Christi (Corpo de Cristo) ou Corpus Domini (Corpo do Senhor).
Esta é uma das festas “estáticas” ou “temáticas”, que surgiram no Ocidente no segundo milênio da Era Cristã, e que celebram “ideias” teológicas ou devoções (Santíssima Trindade, Sagrado Coração de Jesus, Cristo Rei...).
Em contrapartida, no primeiro milênio desenvolveram-se
as festas “dinâmicas”, que celebram eventos da história da
salvação (Páscoa, Natal, Epifania, Ascensão, Pentecostes...).
1. As origens da festa
de Corpus Christi
As raízes mais
remotas dessa festa encontram-se no florescimento da devoção eucarística durante a Idade Média, sobretudo nos séculos XII e XIII.
Como o discurso excessivamente rigorista da época afastava
as pessoas da Comunhão, pois tinham medo de comungar em pecado, surge uma piedade
eucarística desvinculada da Celebração, centrada no desejo de “ver” a hóstia
consagrada. Com efeito, em 1200 em Paris temos o primeiro registro do gesto de
elevar a hóstia após a consagração, que rapidamente popularizou-se e perdura
até hoje.
Sacramento da Eucaristia - Atribuído a Maso di Banco (Campanário da Catedral de Santa Maria del Fiore, Florença) |
Ao mesmo tempo, essa devoção eucarística surge como reação a
alguns teólogos que negavam a presença real de Cristo nas espécies consagradas,
como Berengário de Tours (†1088). Além disso, surge nesse período a heresia dos
cátaros, os quais afirmavam que toda matéria era má, negando portanto o valor da
Eucaristia.
A doutrina da transubstanciação será, portanto, afirmada no
IV Concílio de Latrão (1215), preparando as definições mais amplas do Concílio
de Trento (1545-1563) [1].
A festa de Corpus
Christi propriamente dita tem em Santa Juliana de Liège (†1258) sua
primeira incentivadora. Esta religiosa agostiniana do Mosteiro de
Mont-Cornillon, na Diocese de Liège (Bélgica), teria tido uma série de visões
com uma lua cheia muito luminosa, com uma pequena parte escura. A lua cheia
seria o Ano Litúrgico e a parte escura a festa que faltava, isto é, a festa em
honra da Eucaristia.
Visão de Santa Juliana (Philippe de Champaigne - Barber Institute of Fine Arts, Birmingham) |
A festa da Eucaristia por excelência é a Páscoa,
particularmente a Quinta-feira Santa, com a Missa da Ceia do Senhor. Porém,
como a partir do pôr-do-sol da Quinta-feira entramos já no primeiro dia do
Tríduo Pascal, o dia do Cristo Crucificado, essa celebração é marcada pelo
drama da Paixão.
Assim, é justo que a Igreja possa celebrar de maneira
festiva o mistério da Eucaristia, louvando a Deus por sua presença no meio de
nós (algo análogo à celebração festiva da Santa Cruz como “árvore da salvação”
dia 14 de setembro).
Juliana partilhou as visões com seu diretor espiritual, João
de Lausanne. Este consultou o provincial dos dominicanos, Hughes de Saint-Cher e
o Arquidiácono de Liége, Jacques Pantaléon de Troyes. Como estes apoiaram a
iniciativa, o Bispo de Liège, Robert de Thourotte, instituiu a festa para sua Diocese em 1246, fixando-a na quinta-feira após a Oitava de Pentecostes.
Em 1261 o Arquidiácono Jacques Pantaléon foi eleito Papa,
assumindo o nome de Urbano IV. Imediatamente o então Bispo de Liège, Henri de
Gueldre, pediu-lhe que estendesse a festa de Corpus Christi para toda a Igreja. Porém, não foi prontamente
atendido.
Papa Urbano IV |
Dois anos depois, em 1263, um sacerdote de Praga (República Tcheca), chamado Pedro, celebrava a Missa na igreja de Santa Cristina em Bolsena (Itália), retornando
de uma peregrinação a Roma. Durante a consagração, o sacerdote teria duvidado
da presença real de Cristo nas espécies eucarísticas. Neste momento, a hóstia
teria jorrado sangue, manchando o corporal e até mesmo a pedra do pavimento.
O milagre de Bolsena (Francesco Trevisani, 1704, igreja de Santa Cristina, Bolsena) |
O corporal manchado com o Sangue foi então levado ao Papa
Urbano IV, que se encontrava em Orvieto, sede da Diocese à qual pertencia
Bolsena. Este acontecimento fez com que o Papa decidisse finalmente instituir a
festa de Corpus Christi para toda a Igreja, através da Bula Transiturus de hoc mundo - “Estando para
partir deste mundo” (cf. Jo
13,1), de 11 de agosto de 1264 [2].
Contudo, Urbano IV veio a falecer apenas dois meses depois,
no dia 02 de outubro, impedindo que a Bula tivesse o alcance
desejado. Foram seus sucessores Clemente V (†1314) e João XXII (†1334) a
promover definitivamente a festa, acolhida inicialmente nos
mosteiros, mas logo difundida por toda a Igreja.
2. As orações da Missa
Segundo a tradição, o Papa Urbano IV teria encarregado Santo
Tomás de Aquino (†1274) de compor a Liturgia da nova festa. Atribuem-se ao
“Doutor Angélico” as três orações presidenciais da Missa [3], a sequência Lauda Sion e os hinos da Liturgia das
Horas: Pange, lingua (Vésperas), Sacris solemniis (Ofício das Leituras) e
Verbum supernum (Laudes).
Santo Tomás de Aquino apresenta a Liturgia de Corpus Christi ao Papa Urbano IV (Taddeo di Bartolo, 1403, Philadelphia Museum of Art) |
Embora alguns estudiosos questionem
essa autoria, as três orações da Missa refletem perfeitamente a teologia
eucarística de Santo Tomás. Na Suma
Teológica (III, q. 73, a. 4), este apresenta o sacramento sob uma tríplice
dimensão:
- em relação ao passado, é memorial da Paixão, como indica a coleta: “Deus, qui nobis sub sacraménto mirábili passiónis tuae memóriam
reliquísti...” - “Senhor Jesus Cristo, que neste admirável sacramento nos
deixastes o memorial da vossa Paixão...”;
- em relação ao presente, é sacramento de comunhão, como indica a oração sobre as oferendas: “Ecclésiae tuae, quaesumus, Dómine, unitátis
et pacis propítius dona concéde, quae sub oblátis munéribus mýstice designántur”
- “Concedei, ó Deus, à vossa Igreja os dons da unidade e da paz, simbolizados
pelo pão e o vinho que oferecemos na sagrada Eucaristia”;
- em relação ao futuro, é prefiguração da glória celeste, como indica a oração após a
Comunhão: “Fac nos, quaesumus, Dómine,
divinitátis tuae sempitérna fruitióne repléri, quam pretiósi Córporis et
Sánguinis tui temporális percéptio praefigúrat” “Dai-nos, Senhor Jesus,
possuir o gozo eterno da vossa divindade, que já começamos a saborear na terra,
pela comunhão do vosso Corpo e do vosso Sangue” [4].
Rafael, "Disputa do Sacramento" (Stanza della Segnatura, Palácio Apostólico - Vaticano) |
Essa tríplice dimensão é
sintetizada na antífona do cântico evangélico (Magnificat) das II Vésperas da Solenidade, também atribuída a Tomás
de Aquino, “O sacrum convivium”:
“O sacrum convivium in quo Christus sumitur:
recolitur memoria passionis eius, mens impletur gratia et futurae gloriae nobis
pignus datur. Alleluia”
“Ó
banquete tão sagrado, em que Cristo é alimento, a memória é celebrada de seu
santo sofrimento [passado]; nossa mente
se enriquece com a graça em seu fulgor [presente];
da futura glória eterna nos é dado o penhor [futuro]. Aleluia.” [5].
Com a reforma litúrgica do Concílio
Vaticano II, as orações foram mantidas, sendo acrescentada apenas a opção de
utilizar um dos dois novos Prefácios da Santíssima Eucaristia [6], bem como leituras
para os três anos do ciclo festivo (A-B-C):
Ano A: Dt 8,2-3.14b-16a; Sl 147; 1Cor 10,16-17; Jo 6,51-58
Ano B: Ex 24,3-8; Sl 115; Hb 9,11-15; Mc 14,12-16.22-26
Ano C: Gn 14,18-20; Sl 109; 1Cor 11,23-26; Lc 9,11b-17
Cabe ressaltar, porém, a mudança no
nome da celebração: enquanto no Missal de 1962 esta era chamada “Festum Sanctissimi Corporis Christi”
(Festa do Santíssimo Corpo de Cristo), após a reforma litúrgica se acrescenta a
referência ao Sangue do Senhor: “Sollemnitas
Sanctissimi Corporis et Sanguinis Christi” (Solenidade do Santíssimo Corpo
e Sangue de Cristo) [7].
O Missale Romanum de 1962 prescrevia ainda a Missa votiva da
Santíssima Eucaristia para as quintas-feiras (em referência ao dia da Última
Ceia), com as mesmas orações da festa de Corpus
Christi. O atual Missal conservou essa celebração, sem a referência a um
dia específico, acrescentando também outras opções de oração [8].
3. A procissão
eucarística
A Bula Transiturus de hoc
mundo, que instituiu a festa de Corpus
Christi em 1264, não menciona em nenhum momento a procissão eucarística no
final da Missa. Porém, esta rapidamente popularizou-se, sendo registrada pela
primeira vez na cidade de Colônia (Alemanha) em 1279, de onde se estendeu para outras
dioceses da Alemanha, França e Itália no início do século XIV.
Inicialmente o Santíssimo Sacramento era transportado dentro
de um cálice ou cibório fechado, às vezes coberto com um véu, como na
Quinta-feira Santa. Contudo, o desejo de “ver” a hóstia consagrada deu origem
ao ostensório (do latim ostendere,
mostrar), vaso sagrado que possui um invólucro de vidro pelo qual a hóstia pode
ser vista.
Surgiram então os mais variados modelos de ostensórios: cruzes com a hóstia
no encontro das duas traves; imagens de Cristo com a hóstia no lugar do coração...
Alguns, sobretudo na Espanha, atingiram tamanhos monumentais, constituindo
verdadeiras obras de arte.
Ostensório da Catedral de Toledo (Enrique de Arfe - 1514-1524) |
Ostensório da Catedral de Sevilla (Juan de Arfe - 1580-1587) |
Com o tempo se desenvolveu o costume de parar a procissão em
algumas “estações”, nas quais se dava a bênção eucarística. Inicialmente essas
estações eram nas igrejas da cidade, mas logo a procissão se estendeu aos
campos onde, em analogia às procissões penitenciais das Rogações, se detinha em
quatro estações.
Em cada uma das quatro “estações” se lia o início de um dos
Evangelhos em direção a um dos pontos cardeais e se faziam preces na intenção
da Igreja e do mundo. Com o tempo, porém, na maioria dos lugares a procissão
perdeu este caráter de súplica, centrando-se no louvor e no testemunho público
da fé na Eucaristia.
Sobre a procissão, o Diretório
sobre Piedade Popular e Liturgia recomenda em seu n. 162 que “os elementos
característicos da piedade popular, como o enfeite das ruas e das janelas, a
homenagem das flores, os altares onde será colocado o Santíssimo nas paradas do
percurso, os cantos e as orações, todos levem a manifestar a própria fé em
Cristo, unicamente voltados para o louvor do Senhor” [9].
Por exemplo, não convém que imagens e símbolos da Virgem
Maria e dos santos, bem como outros elementos de devoções particulares ou de
determinados grupos, “roubem” o protagonismo que pertence só ao Senhor.
Procesión de Corpus a Sitges (Arcadi Mas i Fontdevila -1887 - Cau Ferrat Museum) |
A procissão eucarística, com efeito, é oportunidade para que
nos reconheçamos povo de Deus a caminho e proclamemos a nossa fé em Cristo, o
Emmanuel, Deus-conosco. O tema da “Igreja peregrina”, com efeito, foi reforçado pelo Concílio Vaticano II, sobretudo na Constituição
Dogmática Lumen Gentium.
4. Conclusão
Concluindo este breve percurso sobre a história da
Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo, gostaríamos de recordar dois
princípios fundamentais propostos no n. 161 do Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia:
- “o supremo ponto de referência da piedade eucarística é a
Páscoa do Senhor; de fato, segundo a visão dos Santos Padres, a Páscoa é a festa da Eucaristia e, por
outro lado, a Eucaristia é antes de tudo celebração da Páscoa, isto é, da
Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus”;
- toda forma de devoção cristã tem uma intrínseca referência ao Sacrifício Eucarístico [à Celebração Eucarística, à Missa], seja
porque dispõe à celebração, seja porque prolonga as orientações cultuais e existenciais
por ela suscitadas. Assim, a devoção eucarística “decorre do Sacrifício” e, ao
mesmo tempo, “tende à Comunhão sacramental” [10].
Notas:
[1] Para as condenações da heresia de Berengário, confira os
nn. 690.700 de DENZINGER, Heinrich. Compêndio
dos símbolos, definições e declarações de fé e moral. São Paulo: Paulinas;
Loyola, 2007, pp. 248.251.
Para a definição do IV Concílio de Latrão, cf. n. 802 (p. 284).
Para as definições do Concílio de Trento, cf. nn. 1635-1661 (pp. 419-426).
[2] cf. alguns
parágrafos da Bula nos nn. 846-847 de DENZINGER, op. cit., pp. 298-299. No site da Santa Sé essa está disponível
na íntegra em latim e em espanhol.
[3] Oração do dia ou coleta, oração sobre as oferendas e
oração após a Comunhão. Compõem a chamada eucologia menor (uma vez que a Oração
Eucarística é a eucologia maior). Eucologia, por sua vez, significa “conjunto
de orações”.
[4] Os textos latinos são tomados do Missale Romanum, Editio typica tertia, 2002; os textos em português
são de: MISSAL ROMANO, Tradução
portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. 10ª edição. São Paulo:
Paulus, 2006, pp. 381-382.
[5] OFÍCIO DIVINO. Liturgia
das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da 2ª edição típica.
São Paulo: Paulus, 1999, v. III, p. 559.
[6] MISSAL ROMANO, op.
cit, pp. 439-440. O Prefácio da Santíssima Eucaristia I (Eucaristia, sacrifício e sacramento de
Cristo) é inspirado na Liturgia Ambrosiana, enquanto o II (Os frutos da Santíssima Eucaristia) é de
nova composição. O Missale Romanum de
1570 prescrevia o Prefácio do Natal, recordando o “Verbo que se fez carne”,
enquanto o Missale de 1962 indicava o
Prefácio Comum.
[7] Com essa mudança, foi suprimida a Festa do Preciosíssimo Sangue de Jesus, instituída pelo Papa Pio IX em 1849. Não obstante, esta permanece em
alguns calendários próprios (como na Terra Santa) e como Missa votiva (MISSAL
ROMANO, op. cit., p. 945).
[8] MISSAL ROMANO, op.
cit., pp. 942-943.
[9] SAGRADA CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E A DISCIPLINA
DOS SACRAMENTOS. Diretório sobre Piedade
Popular e Liturgia. São Paulo: Paulinas, 2003, p. 140.
[10] ibid., p.
139.
Referências (além das
já citadas nas notas):
ADAM, Adolf. O Ano
Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica.
São Paulo: Loyola, 2019, pp. 123-127.
AUGÉ, Matias. Ano
Litúrgico: É o próprio Cristo presente na sua Igreja. São Paulo: Paulinas,
2019, pp. 265-269.
BERGAMINI, Augusto. Cristo,
festa da Igreja: História, teologia, espiritualidade e pastoral do ano
litúrgico. São Paulo: Paulinas, 1994, pp. 430-432.
RIGHETTI, Mario. Historia
de la Liturgia, v. I: Introducción general; El año litúrgico; El Breviario.
Madrid: BAC, 1955, pp. 869-875.
Postagem publicada originalmente em 02 de junho de 2012. Revista e ampliada em 01 de junho de 2021.
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