sábado, 2 de junho de 2012

A história da Solenidade de Corpus Christi

Hoje a Igreja te convida ao pão vivo que dá vida: vem com ela celebrar!”
(Sequência Lauda Sion, 3ª estrofe).

Na quinta-feira da II semana após o Pentecostes, isto é, na quinta-feira após o Domingo da Santíssima Trindade, 61 dias após a Páscoa, a Igreja de Rito Romano celebra a Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo, conhecida popularmente como Corpus Christi (Corpo de Cristo) ou Corpus Domini (Corpo do Senhor).

Esta é uma das festas “estáticas” ou “temáticas”, que surgiram no Ocidente no segundo milênio da  Era Cristã, e que celebram “ideias” teológicas ou devoções (Santíssima Trindade, Sagrado Coração de Jesus, Cristo Rei...).

Em contrapartida,  no primeiro milênio desenvolveram-se as festas “dinâmicas”, que celebram eventos da história da salvação (PáscoaNatal, Epifania, Ascensão, Pentecostes...).

1. As origens da festa de Corpus Christi

As raízes mais remotas dessa festa encontram-se no florescimento da devoção eucarística durante a Idade Média, sobretudo nos séculos XII e XIII.

Como o discurso excessivamente rigorista da época afastava as pessoas da Comunhão, pois tinham medo de comungar em pecado, surge uma piedade eucarística desvinculada da Celebração, centrada no desejo de “ver” a hóstia consagrada. Com efeito, em 1200 em Paris temos o primeiro registro do gesto de elevar a hóstia após a consagração, que rapidamente popularizou-se e perdura até hoje.

Sacramento da Eucaristia - Atribuído a Maso di Banco
(Campanário da Catedral de Santa Maria del Fiore, Florença) 

Ao mesmo tempo, essa devoção eucarística surge como reação a alguns teólogos que negavam a presença real de Cristo nas espécies consagradas, como Berengário de Tours (†1088). Além disso, surge nesse período a heresia dos cátaros, os quais afirmavam que toda matéria era má, negando portanto o valor da Eucaristia.

A doutrina da transubstanciação será, portanto, afirmada no IV Concílio de Latrão (1215), preparando as definições mais amplas do Concílio de Trento (1545-1563) [1].

A festa de Corpus Christi propriamente dita tem em Santa Juliana de Liège (†1258) sua primeira incentivadora. Esta religiosa agostiniana do Mosteiro de Mont-Cornillon, na Diocese de Liège (Bélgica), teria tido uma série de visões com uma lua cheia muito luminosa, com uma pequena parte escura. A lua cheia seria o Ano Litúrgico e a parte escura a festa que faltava, isto é, a festa em honra da Eucaristia.

Visão de Santa Juliana
(Philippe de Champaigne - Barber Institute of Fine Arts, Birmingham)

A festa da Eucaristia por excelência é a Páscoa, particularmente a Quinta-feira Santa, com a Missa da Ceia do Senhor. Porém, como a partir do pôr-do-sol da Quinta-feira entramos já no primeiro dia do Tríduo Pascal, o dia do Cristo Crucificado, essa celebração é marcada pelo drama da Paixão.

Assim, é justo que a Igreja possa celebrar de maneira festiva o mistério da Eucaristia, louvando a Deus por sua presença no meio de nós (algo análogo à celebração festiva da Santa Cruz como “árvore da salvação” dia 14 de setembro).

Juliana partilhou as visões com seu diretor espiritual, João de Lausanne. Este consultou o provincial dos dominicanos, Hughes de Saint-Cher e o Arquidiácono de Liége, Jacques Pantaléon de Troyes. Como estes apoiaram a iniciativa, o Bispo de Liège, Robert de Thourotte, instituiu a festa para sua Diocese em 1246, fixando-a na quinta-feira após a Oitava de Pentecostes.

Em 1261 o Arquidiácono Jacques Pantaléon foi eleito Papa, assumindo o nome de Urbano IV. Imediatamente o então Bispo de Liège, Henri de Gueldre, pediu-lhe que estendesse a festa de Corpus Christi para toda a Igreja. Porém, não foi prontamente atendido.

Papa Urbano IV

Dois anos depois, em 1263, um sacerdote de Praga (República Tcheca), chamado Pedro, celebrava a Missa na igreja de Santa Cristina em Bolsena (Itália), retornando de uma peregrinação a Roma. Durante a consagração, o sacerdote teria duvidado da presença real de Cristo nas espécies eucarísticas. Neste momento, a hóstia teria jorrado sangue, manchando o corporal e até mesmo a pedra do pavimento.

O milagre de Bolsena
(Francesco Trevisani, 1704, igreja de Santa Cristina, Bolsena)

O corporal manchado com o Sangue foi então levado ao Papa Urbano IV, que se encontrava em Orvieto, sede da Diocese à qual pertencia Bolsena. Este acontecimento fez com que o Papa decidisse finalmente instituir a festa de Corpus Christi para toda a Igreja, através da Bula Transiturus de hoc mundo - “Estando para partir deste mundo” (cf. Jo 13,1), de 11 de agosto de 1264 [2].

Contudo, Urbano IV veio a falecer apenas dois meses depois, no dia 02 de outubro, impedindo que a Bula tivesse o alcance desejado. Foram seus sucessores Clemente V (†1314) e João XXII (†1334) a promover definitivamente a festa, acolhida inicialmente nos mosteiros, mas logo difundida por toda a Igreja.

Relicário do corporal de Bolsena
(Ugolino di Vieri, 1337-1338, Museu da Catedral de Orvieto)

2. As orações da Missa

Segundo a tradição, o Papa Urbano IV teria encarregado Santo Tomás de Aquino (†1274) de compor a Liturgia da nova festa. Atribuem-se ao “Doutor Angélico” as três orações presidenciais da Missa [3], a sequência Lauda Sion e os hinos da Liturgia das Horas: Pange, lingua (Vésperas), Sacris solemniis (Ofício das Leituras) e Verbum supernum (Laudes).

Santo Tomás de Aquino apresenta a Liturgia de Corpus Christi ao Papa Urbano IV
(Taddeo di Bartolo, 1403, Philadelphia Museum of Art)

Embora alguns estudiosos questionem essa autoria, as três orações da Missa refletem perfeitamente a teologia eucarística de Santo Tomás. Na Suma Teológica (III, q. 73, a. 4), este apresenta o sacramento sob uma tríplice dimensão:

- em relação ao passado, é memorial da Paixão, como indica a coleta: “Deus, qui nobis sub sacraménto mirábili passiónis tuae memóriam reliquísti...” - “Senhor Jesus Cristo, que neste admirável sacramento nos deixastes o memorial da vossa Paixão...”;

- em relação ao presente, é sacramento de comunhão, como indica a oração sobre as oferendas: “Ecclésiae tuae, quaesumus, Dómine, unitátis et pacis propítius dona concéde, quae sub oblátis munéribus mýstice designántur” - “Concedei, ó Deus, à vossa Igreja os dons da unidade e da paz, simbolizados pelo pão e o vinho que oferecemos na sagrada Eucaristia”;

- em relação ao futuro, é prefiguração da glória celeste, como indica a oração após a Comunhão: “Fac nos, quaesumus, Dómine, divinitátis tuae sempitérna fruitióne repléri, quam pretiósi Córporis et Sánguinis tui temporális percéptio praefigúrat” “Dai-nos, Senhor Jesus, possuir o gozo eterno da vossa divindade, que já começamos a saborear na terra, pela comunhão do vosso Corpo e do vosso Sangue” [4].

Rafael, "Disputa do Sacramento"
(Stanza della Segnatura, Palácio Apostólico - Vaticano)

Essa tríplice dimensão é sintetizada na antífona do cântico evangélico (Magnificat) das II Vésperas da Solenidade, também atribuída a Tomás de Aquino, “O sacrum convivium”:

O sacrum convivium in quo Christus sumitur: recolitur memoria passionis eius, mens impletur gratia et futurae gloriae nobis pignus datur. Alleluia

“Ó banquete tão sagrado, em que Cristo é alimento, a memória é celebrada de seu santo sofrimento [passado]; nossa mente se enriquece com a graça em seu fulgor [presente]; da futura glória eterna nos é dado o penhor [futuro]. Aleluia.” [5].


Com a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II, as orações foram mantidas, sendo acrescentada apenas a opção de utilizar um dos dois novos Prefácios da Santíssima Eucaristia [6], bem como leituras para os três anos do ciclo festivo (A-B-C):
Ano A: Dt 8,2-3.14b-16a; Sl 147; 1Cor 10,16-17; Jo 6,51-58
Ano B: Ex 24,3-8; Sl 115; Hb 9,11-15; Mc 14,12-16.22-26
Ano C: Gn 14,18-20; Sl 109; 1Cor 11,23-26; Lc 9,11b-17

Cabe ressaltar, porém, a mudança no nome da celebração: enquanto no Missal de 1962 esta era chamada “Festum Sanctissimi Corporis Christi” (Festa do Santíssimo Corpo de Cristo), após a reforma litúrgica se acrescenta a referência ao Sangue do Senhor: “Sollemnitas Sanctissimi Corporis et Sanguinis Christi” (Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo) [7].

O Missale Romanum de 1962 prescrevia ainda a Missa votiva da Santíssima Eucaristia para as quintas-feiras (em referência ao dia da Última Ceia), com as mesmas orações da festa de Corpus Christi. O atual Missal conservou essa celebração, sem a referência a um dia específico, acrescentando também outras opções de oração [8].

Diogo de Contreiras - Porta de sacrário

3. A procissão eucarística

A Bula Transiturus de hoc mundo, que instituiu a festa de Corpus Christi em 1264, não menciona em nenhum momento a procissão eucarística no final da Missa. Porém, esta rapidamente popularizou-se, sendo registrada pela primeira vez na cidade de Colônia (Alemanha) em 1279, de onde se estendeu para outras dioceses da Alemanha, França e Itália no início do século XIV.

Inicialmente o Santíssimo Sacramento era transportado dentro de um cálice ou cibório fechado, às vezes coberto com um véu, como na Quinta-feira Santa. Contudo, o desejo de “ver” a hóstia consagrada deu origem ao ostensório (do latim ostendere, mostrar), vaso sagrado que possui um invólucro de vidro pelo qual a hóstia pode ser vista.

Surgiram então os mais variados modelos de ostensórios: cruzes com a hóstia no encontro das duas traves; imagens de Cristo com a hóstia no lugar do coração... Alguns, sobretudo na Espanha, atingiram tamanhos monumentais, constituindo verdadeiras obras de arte.

Ostensório da Catedral de Toledo
(Enrique de Arfe - 1514-1524)
Ostensório da Catedral de Sevilla
(Juan de Arfe - 1580-1587)

Com o tempo se desenvolveu o costume de parar a procissão em algumas “estações”, nas quais se dava a bênção eucarística. Inicialmente essas estações eram nas igrejas da cidade, mas logo a procissão se estendeu aos campos onde, em analogia às procissões penitenciais das Rogações, se detinha em quatro estações.

Em cada uma das quatro “estações” se lia o início de um dos Evangelhos em direção a um dos pontos cardeais e se faziam preces na intenção da Igreja e do mundo. Com o tempo, porém, na maioria dos lugares a procissão perdeu este caráter de súplica, centrando-se no louvor e no testemunho público da fé na Eucaristia.

Sobre a procissão, o Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia recomenda em seu n. 162 que “os elementos característicos da piedade popular, como o enfeite das ruas e das janelas, a homenagem das flores, os altares onde será colocado o Santíssimo nas paradas do percurso, os cantos e as orações, todos levem a manifestar a própria fé em Cristo, unicamente voltados para o louvor do Senhor” [9].

Por exemplo, não convém que imagens e símbolos da Virgem Maria e dos santos, bem como outros elementos de devoções particulares ou de determinados grupos, “roubem” o protagonismo que pertence só ao Senhor.

Procesión de Corpus a Sitges
(Arcadi Mas i Fontdevila -1887 - Cau Ferrat Museum)

A procissão eucarística, com efeito, é oportunidade para que nos reconheçamos povo de Deus a caminho e proclamemos a nossa fé em Cristo, o Emmanuel, Deus-conosco. O tema da “Igreja peregrina”, com efeito, foi reforçado pelo Concílio Vaticano II, sobretudo na Constituição Dogmática Lumen Gentium.

4. Conclusão

Concluindo este breve percurso sobre a história da Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo, gostaríamos de recordar dois princípios fundamentais propostos no n. 161 do Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia:

- “o supremo ponto de referência da piedade eucarística é a Páscoa do Senhor; de fato, segundo a visão dos Santos Padres, a Páscoa é a festa da Eucaristia e, por outro lado, a Eucaristia é antes de tudo celebração da Páscoa, isto é, da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus”;

- toda forma de devoção cristã tem uma intrínseca referência ao Sacrifício Eucarístico [à Celebração Eucarística, à Missa], seja porque dispõe à celebração, seja porque prolonga as orientações cultuais e existenciais por ela suscitadas. Assim, a devoção eucarística “decorre do Sacrifício” e, ao mesmo tempo, “tende à Comunhão sacramental” [10].

Salvador Eucarístico
(Juan de Juanes - Museo de Bellas Artes de Valencia)

Notas:

[1] Para as condenações da heresia de Berengário, confira os nn. 690.700 de DENZINGER, Heinrich. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral. São Paulo: Paulinas; Loyola, 2007, pp. 248.251.
Para a definição do IV Concílio de Latrão, cf. n. 802 (p. 284).
Para as definições do Concílio de Trento, cf. nn. 1635-1661 (pp. 419-426).

[2] cf. alguns parágrafos da Bula nos nn. 846-847 de DENZINGER, op. cit., pp. 298-299. No site da Santa Sé essa está disponível na íntegra em latim e em espanhol.

[3] Oração do dia ou coleta, oração sobre as oferendas e oração após a Comunhão. Compõem a chamada eucologia menor (uma vez que a Oração Eucarística é a eucologia maior). Eucologia, por sua vez, significa “conjunto de orações”.

[4] Os textos latinos são tomados do Missale Romanum, Editio typica tertia, 2002; os textos em português são de: MISSAL ROMANO, Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. 10ª edição. São Paulo: Paulus, 2006, pp. 381-382.

[5] OFÍCIO DIVINO. Liturgia das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da 2ª edição típica. São Paulo: Paulus, 1999, v. III, p. 559.

[6] MISSAL ROMANO, op. cit, pp. 439-440. O Prefácio da Santíssima Eucaristia I (Eucaristia, sacrifício e sacramento de Cristo) é inspirado na Liturgia Ambrosiana, enquanto o II (Os frutos da Santíssima Eucaristia) é de nova composição. O Missale Romanum de 1570 prescrevia o Prefácio do Natal, recordando o “Verbo que se fez carne”, enquanto o Missale de 1962 indicava o Prefácio Comum.

[7] Com essa mudança, foi suprimida a Festa do Preciosíssimo Sangue de Jesus, instituída pelo Papa Pio IX em 1849. Não obstante, esta permanece em alguns calendários próprios (como na Terra Santa) e como Missa votiva (MISSAL ROMANO, op. cit., p. 945).

[8] MISSAL ROMANO, op. cit., pp. 942-943.

[9] SAGRADA CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E A DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS. Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia. São Paulo: Paulinas, 2003, p. 140.

[10] ibid., p. 139.

Referências (além das já citadas nas notas):

ADAM, Adolf. O Ano Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica. São Paulo: Loyola, 2019, pp. 123-127.

AUGÉ, Matias. Ano Litúrgico: É o próprio Cristo presente na sua Igreja. São Paulo: Paulinas, 2019, pp. 265-269.

BERGAMINI, Augusto. Cristo, festa da Igreja: História, teologia, espiritualidade e pastoral do ano litúrgico. São Paulo: Paulinas, 1994, pp. 430-432.

RIGHETTI, Mario. Historia de la Liturgia, v. I: Introducción general; El año litúrgico; El Breviario. Madrid: BAC, 1955, pp. 869-875.

Postagem publicada originalmente em 02 de junho de 2012. Revista e ampliada em 01 de junho de 2021.

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