O sábado que antecede o V Domingo da Quaresma é conhecido na
tradição bizantina como o “Sábado do Akathistos”,
uma vez que neste dia se entoa este célebre hino em honra da Mãe de Deus.
O Akathistos
(“não sentado” em grego, indicando que deve ser entoado em pé) é uma composição
anônima dos séculos V-VI, após os Concílios de Éfeso (431) e Calcedônia (451),
que proclamaram a maternidade divina de Maria e a dupla natureza de Cristo,
divina e humana.
Possui 24 estrofes, mesmo número de letras do
alfabeto grego, divididas em duas partes: as primeiras 12 são inspiradas nos
Evangelhos da infância do Senhor (Mt 1-2; Lc 1-2), enquanto as 12 últimas cantam a fé da Igreja
sobre a Virgem Maria.
As estrofes intercalam-se entre longas e breves. As
estrofes longas (ímpares) saúdam a Virgem com 12 invocações tomadas da Escritura e da
tradição da Igreja, concluindo com a aclamação: “Ave, Virgem e Esposa!”. As estrofes breves (pares), por sua vez, geralmente
são dirigidas a Cristo, na forma de uma antífona seguida da aclamação “Aleluia!”.
São as invocações da Escritura que ilustram o “ícone
do Akathistos”, ou dos “Louvores à
Mãe de Deus no hino Akathistos”, um
ícone de caráter “didático”, que passaremos a apresentar na sequência.
Cumpre notar, porém, que algumas das referências do ícone não
se encontram no texto do nosso hino propriamente dito, mas sim no Cânon de São
José, o Hinógrafo, que costuma ser entoado em algumas ocasiões junto com o Akathistos.
O ícone:
A moldura do ícone do Akathistos
costuma ser formada por pequenos quadros retratando suas 24 estrofes. No centro
temos a Virgem Maria, objeto dos louvores do hino, sentada em um trono.
Ícone do Akathistos do séc. XVI |
Em algumas versões do ícone ela está com o Menino ao colo, e
aponta para Ele com a mão direita (como no ícone da Hodigítria), indicando que todo louvor a ela tem como destinatário
na verdade o próprio Cristo.
Em outras versões ela está sentada sozinha no trono e tem a
mão levantada, como que recusando os louvores. O Menino, neste caso, está sobre
a Virgem, geralmente como o último e mais nobre fruto da “Árvore de Jessé” (Is
11), que os circunda. Jesus, com efeito, é aqui o Emanuel, Deus-conosco (Is
7,14).
Ícone do Akathistos do séc. XVIII (Note-se a "árvore de Jessé" em volta da Mãe e do Filho) |
Em volta da Mãe e do Filho encontramos uma série de
personagens do Antigo Testamento com os pergaminhos das profecias messiânicas
ou com alguns símbolos que prefiguram atributos de Maria. Trata-se da chamada
“leitura tipológica” do Antigo Testamento, muito querida pelos Padres da
Igreja, na qual este é lido como “tipo”, isto é, modelo, profecia do Novo.
A relação entre os dois Testamentos é expressa pelos
pequenos globos azuis que aparecem nos símbolos veterotestamentários: dentro
deste globo ou orbe é possível vislumbrar a silhueta de Maria com o Menino
Jesus, indicando que esses símbolos apontam para o mistério da Encarnação.
Apresentaremos os personagens do Antigo Testamento com imagens da iconostase da Catedral da Apresentação de Maria em Hajdúdorog (Hungria), sede da Igreja Católica Húngara. À exceção de Moisés e Jeremias (e de Balaão, que não é representado), todos os demais são retratados com os atributos do ícone.
Começamos nosso percurso
pelos personagens à direita do ícone, de cima para baixo (em sentido horário):
1. Profeta Ezequiel
com a porta do Templo
No canto superior direito do ícone encontramos o profeta
Ezequiel segurando uma porta. Trata-se da porta oriental do templo de
Jerusalém, que permaneceria fechada até a vinda do Senhor: “Esta porta ficará
fechada. Não se abrirá e ninguém entrará por ela, porque por ela entrará o
Senhor, Deus de Israel” (Ez 44,2).
Esta profecia foi interpretada pela Igreja como alusão ao
mistério da virgindade perpétua de Maria: seu ventre abriu-se apenas para
acolher o Verbo Encarnado. No Akathistos,
a Virgem é celebrada como “porta do mistério” e “porta da salvação”:
Ave, ó porta do
augusto mistério! (Estrofe n. 15)
Ave, ó porta de quem
quer salvar-se! (Estrofe n. 19) [1].
2. Patriarca Jacó com
a escada
Abaixo de Ezequiel temos Jacó, filho de Isaac e neto de
Abraão, que segura nas mãos uma escada. Esta é a escada que une o céu à terra,
com a qual o Patriarca sonha (Gn 28,10-19).
Maria é invocada como a “escada”, pois foi através dela que
o Filho desceu à terra, como canta a 3ª estrofe do hino:
Ave, ó escada sublime
por quem Deus nos veio!
Ave, ó ponte que os
homens ao céu encaminha! [2].
3. Juiz Gedeão com um
velo de lã
No Livro dos Juízes,
Gedeão pede a Deus um sinal de que seriam vitoriosos contra os inimigos: ele
deixa um velo de lã fora da tenda durante a noite e este é molhado pelo
orvalho, enquanto o terreno em volta fica seco; no dia seguinte acontece o
oposto: o velo permanece seco e todo o terreno é molhado pelo orvalho (Jz
6,36-40).
A lã que permanece incólume é tradicionalmente interpretada em alusão à
virgindade de Maria. Em contrapartida, a lã encharcada de água é interpretada na
VI ode do Cânon de José, o Hinógrafo em alusão à intercessão da Mãe, que
extingue o fogo da “idolatria”:
De vós, ó Virgem,
nasceu o orvalho que apagou as chamas da idolatria;
Por isso nós vos
clamamos: Salve, tosão coberto de orvalho, previsto por Gedeão!
Na mesma linha, a estrofe VII do Akathistos canta:
Ave, que o culto do
fogo extinguistes!
Ave, que aplacas o
fogo dos vícios! [3].
4. Profeta Daniel com
uma montanha
No início do Livro de
Daniel este interpreta um sonho do rei: uma grande estátua (representando
os reinos deste mundo) é destruída por uma pedra que, sem intervenção humana,
se desprende de uma montanha (Dn 2,31-45).
Essa imagem é associada à concepção e ao nascimento de
Cristo, que ocorreram sem intervenção do homem, como canta a Ode 5 do Cânon de
José:
Salve, montanha não
cavada e abismo insondável!
5. Profeta Isaías com uma
brasa em uma tenaz
Por fim, no canto inferior direito do ícone é retratado o
profeta Isaías, sustentando uma brasa acesa segurada por uma tenaz, em alusão à
sua vocação, na qual um serafim toca seus lábios com essa brasa, purificando-o
para a missão (Is 6,5-7).
Esta brasa acesa é associada ao próprio Cristo, que
purificou a Virgem já em sua concepção, como indica o dogma da Imaculada
Conceição: a Virgem Maria foi preservada da mancha do pecado original “em
previsão dos méritos de Cristo”.
Assim, se Cristo é a brasa que purifica de todo o pecado,
Maria é a tenaz que a sustenta, pois através dela Ele veio a nós. Por isso a 5ª
estrofe do Akathistos canta:
Ave, ó incenso das
preces aceitas!
Ave, purificação do
universo! [4].
Após os profetas do
lado direito do ícone, no centro da sua parte inferior, sob a Virgem Maria,
encontramos um personagem sui generis:
6. Balaão e a
estrela
Balaão é mencionado no Livro
dos Números: é uma espécie de “profeta” convocado pelo rei de Moab para
amaldiçoar o povo de Israel, seus inimigos. Porém, graças à intervenção divina,
Balaão abençoa Israel e profere um oráculo messiânico: “Eu o vejo, mas não
agora; eu o contemplo, mas não de perto. Uma estrela sai de Jacó, e um cetro se
levanta de Israel” (Nm 24,17).
No ícone o personagem é retratado em um estado de “confusão”
ao contemplar uma estrela sobre a sua cabeça. Maria, com efeito, é celebrada na
9ª estrofe do Akathistos como a “mãe da estrela”, que é Cristo. Cumpre notar
que esta estrofe canta a adoração dos magos do Oriente, que foram justamente
guiados por uma estrela.
Ave, que a estrela
perene geraste! [5].
Ainda sobre a imagem da estrela, Maria é associada à aurora
que precede o nascer do sol da justiça, que é Cristo, como cantam as estrofes nn.
1 e 21:
Ave, ó estrela que o
sol anuncias!
(...)
Ave, do místico sol o
lampejo!
Ave, ó astro da flama
perene!
Ave, ó clarão que
iluminas as almas! [6].
Prosseguimos nossa
análise com os personagens do lado esquerdo do ícone, desta vez de baixo para cima
(sempre em sentido horário):
7. Reis Davi e/ou Salomão
com o templo
Davi ou Salomão, ou mesmo os dois juntos, aparecem no canto
inferior esquerdo sustentando o templo de Jerusalém, que ajudaram a construir.
Se o título de “templo” ou “santuário” do Senhor é aplicado
pelo Apóstolo Paulo a cada fiel (1Cor 3,16-17), quanto mais este título pode
aplicar-se à Virgem Maria, que carregou em seu seio o próprio Filho de Deus e
conservou fielmente em seu coração a sua Palavra.
Por isso, as estrofes n. 15 e n. 23 do Akathistos cantam:
Ave, morada do Deus
infinito!
Ave, mansão gloriosa
do Verbo encarnado!
(...)
Ave, ó casa de Deus e
do Verbo! [7].
8. Profeta Moisés com a sarça
ardente
Moisés é mostrado segurando a sarça ardente na qual Deus se
manifesta no Livro do Êxodo (cap. 3).
Os Padres da Igreja sempre associaram a sarça que “ardia no fogo sem
consumir-se” (Ex 3,2) como uma prefiguração da virgindade perpétua de Maria.
Assim o afirma claramente a 8ª ode do Cânon de José, o
Hinógrafo:
Moisés compreendeu
pela sarça o grande mistério de vosso parto, ó Virgem Santa e Imaculada (...),
por isso nós vos louvamos por todos os séculos!
9. Sacerdote Aarão com uma vara
florida
Junto a Moisés vemos seu irmão Aarão, sumo-sacerdote da
primeira aliança, que segura seu bastão que milagrosamente floriu como sinal de
sua eleição (Nm 17,16-26). Em relatos apócrifos este fenômeno repete-se com
José, indicando sua eleição como esposo de Maria.
Esta, com efeito, é associada ao bastão de Aarão, do qual
floresceu “a flor da imortalidade”, Jesus Cristo. Assim, na VII Ode do Cânon de
José, cantamos:
Salve, ramo místico,
que produzistes uma flor que não murcha!
No Akathistos
propriamente dito uma imagem similar aparece na V estrofe:
Ave, ó ramo de planta
incorrupta! [8].
10. Profeta Jeremias com as
tábuas da Lei
Pode nos parecer um pouco estranho ver o profeta Jeremias
segurando as tábuas da Lei, uma vez que este atributo sempre é associado a
Moisés. Porém, aqui se faz referência a um trecho do Livro de Baruc, considerado na Ortodoxia como parte da obra de
Jeremias, uma vez que Baruc era o “escriba” do profeta.
O texto de Br 3,36–4,4 fala da sabedoria personificada como
a Lei, que “apareceu sobre a terra e viveu entre os homens” (Br 3,38). Esta é
considerada, com efeito, uma profecia da Encarnação: “O Verbo se fez carne e
habitou entre nós” (Jo 1,14).
Maria, portanto, é associada no Akathistos à arca da aliança, que continha as tábuas da Lei: ela é
a arca da nova aliança, pois traz em seu ventre a Palavra encarnada.
Canta, com efeito, a estrofe n. 23 do hino:
Ave, no espírito, arca
dourada! [9]
A V Ode do Cânon de José, o Hinógrafo, por sua vez,
complementa:
Salve, puríssima Mãe
de Deus, tabernáculo do Verbo!
Salve, admirável
concha que produzistes a pérola divina!
11. Profeta Habacuc com uma
montanha
Por fim, o último personagem, no canto superior direito, é o
profeta Habacuc, que sustenta uma montanha. Em sua profecia, ele anuncia a
vinda de Deus a partir de uma montanha, que é coberta por sua glória (Hab
3,3-4).
A montanha coberta pela glória de Deus é associada à Virgem
Maria no momento da Encarnação do Verbo, conforme anunciado pelo anjo: “O
Espírito virá sobre ti, e o poder do Altíssimo te cobrirá com sua sombra” (Lc
1,35).
Canta, pois, a Ode n. 4 do Cânon de José o Hinógrafo:
Em nossos hinos
clamamos a Vós com fé, ó digna de todo louvor:
Salve, montanha
fecunda, fertilizada pelo Espírito!
Habacuc com a montanha |
“Digna de todo louvor, Santa Mãe do Verbo,
Santíssimo entre todos os Santos, recebe, nesse canto, a nossa oferta.
Salva o mundo de todo perigo; de todos os males e dos castigos futuros
livra-nos,
a nós que cantamos: Aleluia!”
Estrofe n. 24 do Akathistos [10].
Notas:
[1] SPERANDIO, João Manoel; TAMANINI, Paulo Augusto (orgs.). Ofícios Litúrgicos Bizantinos: Akathistos, Paraklesis e outros. Teresina: Editora da Universidade Federal do Piauí, 2015, pp. 19.21.
[2] ibid., p. 13.
[3] ibid., p. 16.
[4] ibid., p. 14.
[5] ibid., p. 16.
[6] ibid., pp. 12.22.
[7] ibid., pp.
19.23.
[8] ibid., p. 14.
[9] ibid., p. 23.
[10] ibid., p. 24.
Fontes:
Imagens: Wikimedia Commons
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